Infeliz o país que precisa de heróis e ainda mais infeliz aquele cujos historiadores ajudam a criar esses heróis ou transformá-los em vilões. Três vezes Zumbi não se trata de uma biografia de Zumbi, mas bom estudo de caso sobre como a história é “filha do seu tempo”, nas palavras do historiador Jacques Le Goff. Ou seja, por mais que se queira objetiva e documental, na maioria das vezes a história é construção social interessada, uma visão do passado a dar força a ideais do presente.
Zumbi é emblemático porque há raros registros documentais dele, que impediriam uma biografia, mas não interpretações. Na literatura colonial, “zumbi” era título de guerreiros corajosos e não um indivíduo; no século XIX, que queria refazer o país em “civilização”, ele é transmutado em “pessoa”, a oposição exemplar bárbara ao que o Brasil seria e sua coragem foi exaltada para dar maior estatura a seu algoz, um bandeirante; o marxismo do século XX trocou seu protagonismo pelo coletivo simbólico de Palmares, exemplo de “resistência” contra a opressão, razão do nome do grupo VAR-Palmares, do qual participava a presidente Dilma.
Por fim, o movimento gay resolveu entronizá-lo em seu panteão. O diapasão, porém, era o mesmo: ícone de luta contra todo o tipo de repressão. Triste: Zumbi é, de novo, um “escravo”, agora da história, “acorrentado” a ideologias. Nessa “biografia das biografias”, a ironia é ler como muitos dos historiadores questionados, observou Lilia Schwarcz numa resenha, foram os primeiros a denunciar o mesmo processo de construção da memória nacional. “Não há história de um homem, herói ou líder, mas a construção da verdade do passado que pactuamos como nacional e criou o que chamamos ‘identidade brasileira’”. Zumbi é consagrado como líder revolucionário, capaz de abalar as bases de sustentação das classes dominantes desde os tempos do Brasil colonial. Logo, não bastam apenas bons historiadores, mas também é preciso leitores atentos que não se curvem ao status que se dá às letras impressas num papel, em livros ou jornais.
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