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Resenhas

O gigante anão

Pesquisa questiona o mito do Estado brasileiro inchado

Nem é preciso ter um grande projeto político. Para angariar votos basta falar, raivosamente, do tamanho imenso do Estado brasileiro, de sua ineficiência e de como tudo seria melhor se as instituições de mercado tivessem a liberdade desejada. Mas a retórica nem sempre vem acompanhada de fatos e números concretos. Desconfiado, o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos escarafunchou dados e seu último livro, O ex-Leviatã brasileiro, traz revelações capazes de abalar as crenças de um neoliberal com o mínimo de senso crítico. Partindo do pressuposto de que o Estado nacional foi montado por Vargas (daí o entusiasmo liberal em decretar o fim do legado varguista na última década), Santos revela a importância do aparato legado por Getúlio no desenvolvimento econômico e social do país e, pasmem, mostra que somos não apenas um Estado menor em números relativos e absolutos do que boa parte de seus “colegas”, mas com uma rara eficiência. “Desde 1984 que insuspeitos relatórios de agências internacionais produzem dados comprovando que o Brasil possui um Estado mais para sovina do que para perdulário”, escreve. Para Santos, o pseudogigantismo estatal é uma névoa que distorce a questão essencial: o Estado brasileiro estava onde não devia ao preço de não estar ali onde a responsabilidade social de um Estado moderno comandaria. “O ex-Leviatã (leia-se, o Estado varguista) operou preferencialmente segundo uma lógica privada e oligarquizante em benefício de poucos. Muito concretamente, isso quer dizer que a natureza das políticas governamentais obedece ao modelo em que seus custos são genericamente distribuídos (toda a população paga por ele), enquanto os benefícios são consumidos por uma minoria.” É dessa maneira que se desmontou a obra de Vargas. “É na percepção do Estado como anão socialmente preconceituoso e impotente, antes do que como gigante, que está a origem da sonegação do conflito”, avisa Santos. O que nos restou, segundo ele, seria um Estado regular, antes que produtor, um novo Leviatã, um Leviatã disfarçado, um malicioso Leviatã contemporâneo, sucessor da era Vargas, putativamente extinta. Engana-se também, avisa Santos, quem atribui as mazelas nacionais ao excesso de funcionários públicos, vistos, há muito, como modelos de mediocridade. “A participação do funcionalismo público brasileiro no emprego total continua significativamente baixa, mesmo quando se tomam todos os níveis de governo. No caso brasileiro, o federal, estadual e municipal”, observa o cientista político. Para os que pregam o clientelismo político, Santos retruca com dados. “O excesso de pessoal na administração pública, particularmente no que concerne ao governo central, se localiza nas ocupações mais modestas: pessoal de limpeza, vigias, ascensoristas, porteiros. Se os funcionários públicos devessem suas posições à troca por votos e, inversamente, se os eleitores só escolhessem candidatos em retorno de favores recebidos, seria difícil a interpretação de resultados da pesquisa recente”, pondera. Santos até admite o clientelismo brasileiro, mas ressalva que ele se encontra confinado à periferia do sistema eleitoral, com escassa eficácia causal sobre o desempenho da máquina do governo. A troca, então, teria sido duvidosa e o entusiasmo pelo enterrro da herança varguista um engodo? “Para evitar o Leviatã hobbesiano, despudorado ou franco, ou o clientelismo distributivo, o risco contemporâneo está embebido na possibilidade de que, sob disfarce de uma poliarquia frugal, consolidem-se as algemas de cristal de um Leviatã disfarçado mantenedor da ordem de um clientelismo concentrado. O trajeto foi memorável.” Sem dúvida. E cruel. Segundo o pesquisador, injetou-se na sociedade uma ânsia pelo surgimento de forças organizadas, alheias ao poder formal, como forma de colocar obstáculos no suposto caminho expansionista do Estado. O problema, lembra ele, é que essas instituições já chegam “viciadas” na privatização, na predação do Estado. “Os grupos de interesse do Brasil ambicionariam barrar a tendência à monopolização decisória do Estado, não para torná-lo plural, democrático e acessível à diversidade dos grupos sociais, fortes ou fracos, mas para substituir o monopólio do poder estatal pela oligarquia de um sistema fechado de poderosos grupos de interesse. O sorriso do velhinho está cada vez mais cínico.

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