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Obituário

O fascínio dos arquivos

A historiadora Heloísa Bellotto ajudou a modernizar a gestão documental no Brasil

Bellotto durante seminário, em novembro de 2007, com especialistas na área de arquivística, na Fundação FHC

Acervo Fundação Pres. F. H. Cardoso

Para alguém que trabalha com arquivos no Brasil, é grande a probabilidade de ter cruzado os caminhos da historiadora Heloísa Liberalli Bellotto, como aluno, colega ou leitor. Bellotto, que morreu em São Paulo em 1o de março aos 88 anos, fundou cursos, lecionou em vários estados do país, além de Portugal e Espanha, e é autora de obras de referência em arquivologia no Brasil.

Seu principal legado teórico foi o desenvolvimento do processo de identificação de documentos a partir dos conceitos de espécie e tipo, segundo a historiadora Ana Maria Camargo, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), coautora com Bellotto no Dicionário de terminologia arquivística (Secretaria de Cultura, 1996). A espécie designa a estrutura de um documento de acordo com suas funções. Por exemplo, contratos e relatórios são espécies. Os tipos dizem respeito ao uso daquela espécie: contratos de locação ou trabalho, relatórios de pesquisa ou auditoria.

“Esse foi um desenvolvimento importante para a arquivologia, algo que não foi feito nem na Espanha, país onde ela se especializou e é muito avançado nesse campo”, comenta Camargo. “Heloísa conseguiu inserir no trato com os arquivos o que há de mais importante neles: sua funcionalidade, a relação indissolúvel entre os documentos e as atividades que lhes deram origem.”

De acordo com o historiador Thiago Nicodemo, coordenador do Arquivo Público do Estado de São Paulo, o trabalho de Bellotto proporcionou uma evolução significativa na gestão documental. “Ela ajudou a pensar que o arquivo não é um lugar onde se depositam papéis velhos, mas o cérebro de uma operação que permite saber onde as coisas estão, para que não haja perda”, resume.

Nascida no Rio de Janeiro em 1935, Heloísa Bellotto se mudou para São Paulo aos 9 anos. Graduada em história pela USP, em 1959, e biblioteconomia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1956, a pesquisadora obteve seu doutorado em história também pela USP, em 1976, com uma tese intitulada “O governo do Morgado de Mateus: Primórdios da restauração da Capitania de São Paulo (1765-1775)”. Especializou-se em arquivística na Escuela de Documentalistas, em Madri, na Espanha, em 1977. Também realizou cursos de especialização nos Arquivos Nacionais de Paris, em 1979, e na Administração Nacional de Arquivos e Documentos dos Estados Unidos, em Washington, em 1987.

Em 1969, tornou-se pesquisadora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. A despeito de ter se aposentado em 1990, continuou orientando trabalhos de pós-graduação pela FFLCH. Em 1986, estruturou o curso de especialização em arquivística do IEB, um dos principais centros de formação da área em São Paulo. Durante duas décadas, passaram por esse curso mais de 600 estudantes, de todo o Brasil, da América Latina e da África. “Bellotto ajudou a profissionalizar a carreira do arquivista. Em São Paulo, por muito tempo os arquivos foram dependentes do curso do IEB”, comenta Nicodemo.

Bellotto foi fundadora do curso de graduação em arquivologia da Universidade de Brasília (UnB), em 1991. Sobre esse curso, declarou em entrevista ao site da universidade no ano passado que pôde colocar em prática suas principais ideias sobre a formação do arquivista: reduziu a proporção de aulas de história e biblioteconomia, ampliando o tempo dedicado ao direito e à gestão. Lecionou também na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), na Universidade Internacional da Andaluzia, em Huelva, Espanha, entre outras escolas.

Entre 1998 e 2011, foi consultora do projeto Resgate, ambiciosa iniciativa de digitalização dos documentos do Conselho Ultramarino do império português, instituição responsável pela administração das colônias. Hoje, os documentos estão preservados no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa. Bellotto coordenou a recuperação dos papéis relativos à capitania de São Paulo, além de preparar, tecnicamente, os pesquisadores para o trabalho. A historiadora afirmava que foi possível microfilmar e catalogar cerca de 300 mil documentos.

Bellotto estruturou o curso de especialização em arquivística do Instituto de Estudos Brasileiros

Segundo a historiadora Ana Canas Delgado Martins, diretora do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) e pesquisadora do Centro de História da Universidade de Lisboa, Bellotto também “marcou mais de uma geração de arquivistas” do outro lado do oceano Atlântico. Em 1989, foi professora no curso de ciências documentais da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. No período, publicou dois artigos nos Cadernos de Biblioteconomia, Arquivística e Documentação. “Esses textos despertaram ou acentuaram a necessidade de refletir sobre diversas facetas da prática de arquivista e aguçaram a vontade de atualizar e produzir conhecimento, coincidindo com uma fase de renovação dos arquivos e da formação dos arquivistas em Portugal”, afirma a diretora do AHU.

Canas, que conheceu Bellotto em 2006, ressalta a atenção que a pesquisadora da USP devotava aos demais. “Em particular a jovens que, do Brasil, integraram o Projeto Resgate e que, porventura, se sentiriam menos acompanhados em períodos como o Natal. A casa em que ficava, no bairro de Campo de Ourique, em Lisboa, foi também, um pouco, a casa deles”, diz.

Bellotto integrou o conselho consultivo da Biblioteca Mário de Andrade entre 2013 e 2016, durante a gestão de Luiz Armando Bagolin, hoje professor do IEB. “Quando eu disse a ela que precisaria de sua ajuda, já que não tinha experiência em arquivos e bibliotecas, ela prontamente concordou em ajudar, embora tenha comentado que eu não precisaria tanto de ajuda, já que era jovem e destemido”, recorda Bagolin. Confrontada com os problemas práticos da biblioteca, Bellotto respondeu que a principal medida a tomar seria insuflar vida no espaço, “trazer as pessoas e fazê-las se sentirem bem”. Sobre o período, Bagolin relata uma única frustração. “Ela me pediu que tentasse criar um curso de arquivologia, com a participação aberta aos jovens da periferia. Não consegui realizar esse objetivo”, diz.

Suas teorias sobre a tipologia documental e a diplomática (estudo da estrutura formal do documento, da sua natureza jurídica e de seu contexto de produção) foram expostas em livros como Arquivos permanentes: Tratamento documental (TA Queiroz, 1991), Diplomática e tipologia documental em arquivos (Briquet de Lemos, 2008) e Arquivo: Estudos e reflexões (UFMG, 2014). Segundo Camargo, este último contém a expressão mais completa de seu pensamento sobre espécies e tipos. Já o primeiro é amplamente adotado em cursos universitários e concursos públicos no Brasil.

Entre os projetos que deixa inacabados, consta o de publicar uma edição comentada dos diários de governo de Luís António de Sousa Botelho Mourão, o Morgado de Mateus (1722-1798), governador colonial da capitania de São Paulo no século XVIII, tema de seu doutorado e objeto dos livros Autoridade e conflito no Brasil colonial (Secretaria de Cultura, 2007) e Nem o tempo nem a distância: Correspondência entre o Morgado de Mateus e sua mulher (Aletheia, 2007). “Foi um tema da vida inteira. Ultimamente ela estava muito dedicada a esse trabalho monumental”, relata Camargo. “Agora planejamos fazer uma edição póstuma, como homenagem a ela.”

Heloísa Bellotto foi casada com o também historiador Manoel Lello Bellotto, falecido em 2011. Segundo Camargo, sua vasta biblioteca pessoal será doada para o arquivo geral da USP, cujo sistema ela ajudou a implementar. “É uma biblioteca extremamente especializada, além dos arquivos pessoais e de seus trabalhos por concluir”, resume Camargo.

Na entrevista à UnB, a historiadora resumiu sua visão sobre a arquivística afirmando que o fascínio da profissão é “poder organizar a informação contida nos documentos de modo a torná-la acessível aos que precisam dela”. E lembrava que “ninguém procura um documento por bel-prazer, mas porque ele lhe é necessário na vida profissional ou particular”. Por isso, “arquivos bem organizados são vitais para as pessoas, para a sociedade, para os países”.

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