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Ciência

O físico integral

Sergio Rezende concilia sua produção científica com a prática política de uma visão nacionalista da ciência brasileira

Rezende: “Agora posso ser pesquisador em tempo integral”

LÉO RAMOSRezende: “Agora posso ser pesquisador em tempo integral”LÉO RAMOS

Sergio Machado Rezende está feliz. “Estou no auge de minha carreira científica”, ele contou no dia 15 de maio em sua sala – ou gabinete, como ele chama – no segundo andar do Departamento de Física da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em Recife. “Posso ser pesquisador em tempo integral, como nunca antes tinha conseguido ser no Brasil, e tenho a satisfação de ter feito muita coisa.” Ele não parou de fazer pesquisa e escrever artigos científicos mesmo quando ocupava cargos administrativos: com responsabilidades crescentes, foi chefe do Departamento de Física, que ajudou a formar, na década de 1970, diretor do Centro de Ciências Exatas e Naturais da UFPE, primeiro di-retor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Pernambuco (Facepe), secretário de Ciência e Tecnologia de Pernambuco, presidente da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e ministro da Ciência e Tecnologia.

Quando era ministro, de 2005 a 2010, Rezende publicou 26 artigos em respeitadas revistas de física – uma média de cinco por ano ou um a cada dois meses. Seis deles ele assinou sozinho, como autor único. “Em 2007 vi alguns estudos experimentais e achei que poderia encontrar as explicações para os resultados”, ele diz. Como conseguia trabalhar em Brasília e ao mesmo tempo se deixar levar pelas equações matemáticas sobre o comportamento dos elétrons em materiais condutores? “Organizando o tempo e a cabeça para manter a motivação para a pesquisa. E o que é pesquisa? É fazer o que ninguém fez! Quando sai algo bacana em uma revista, é a mesma satisfação de fazer um gol de bicicleta!”

Jornal do Brasil de 27 de dezembro de 1967: notícia do retorno

Jornal do Brasil de 27 de dezembro de 1967: notícia do retorno

Um quadro em sua sala é uma fotografia em que Rezende está entre o presidente Lula e Pelé, com uma dedicatória de Pelé: “Gol é alegria!”. “Até o ginásio, o que eu mais gostava era jogar futebol”, conta Rezende. Duas semanas depois de chegar a Recife, em 1972, ele e um bedel montaram um campo de futebol em frente à Escola de Engenharia, então um dos únicos prédios da universidade, e durante anos os estudantes e professores do Departamento de Física se reuniam toda quarta-feira à tarde para jogar. “Voltávamos zerados no dia seguinte”, recorda-se o botafoguense que armava o jogo e também fazia gols – ele só deixou o gramado aos 54 anos por causa de um problema no joelho. Sem solenidade, atencioso e gentil, Rezende tem 72 anos. Não parece ter mais de 60. “Disfarço bem. A explicação é genética. Meu pai, Leo, morreu com 92 anos e minha mãe, Elsa, tem 100 anos.”

Nascido no Rio, Rezende trabalha em física há quase 50 anos. Há quase 10 ele se dedica à spintrônica, uma área da microeletrônica fundamentada na perspectiva de propagação de informações por meio do spin, o movimento de um elétron ao redor de si mesmo. Por meio de trabalhos teóricos e experimentais feitos com seus estudantes e colegas, ele procura entender e ampliar a interação de spins de materiais condutores como ferro, níquel, manganês e cobalto.

Em novembro de 1947, na primeira comunhão, com os pais, Léo e Elsa, e a irmã mais velha, Eliza.

Arquivo Familiar Em novembro de 1947, na primeira comunhão, com os pais, Léo e Elsa, e a irmã mais velha, Eliza.Arquivo Familiar

Foi um professor do Colégio de Aplicação da Universidade do Brasil, Luiz Eduardo Machado, astrônomo do Observatório Nacional, que o fez começar a gostar de física. “Aquele professor valorizava o raciocínio como forma de resolver os problemas”, lembra-se. A contragosto do pai, um advogado que queria que ele fosse médico, Rezende foi estudar engenharia eletrônica, a área que lhe parecia mais próxima da física, na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro. Logo ele se destacou como um dos melhores da turma.

Um dos professores, Luiz Carlos Bahiana, incentivou-o a ir para o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos, onde ele próprio tinha feito o doutorado. O rapaz hesitou: “Mas será que vou ser aceito?”. O professor garantiu: “Claro que vai!”. Rezende se inscreveu e, com base no currículo e em uma carta de recomendação de Bahiana, o MIT o aceitou, levando-o a outro problema: não tinha como se manter lá. Ele havia perdido o prazo para pedir bolsa de estudos para uma agência federal e outra não lhe deu, argumentando que só apoiava estudantes de universidades públicas. Em seguida ele viu em um jornal um anúncio da Fundação Fullbright para estudantes brasileiros, inscreveu-se e foi o único do Brasil a conseguir. “Lembro de quando subi a escadaria do MIT pela primeira vez”, ele recorda, “sentindo o peso da responsabilidade. ‘Será que vou conseguir?’”

Aos poucos ele acertou o passo com seu trabalho sobre as propriedades magnéticas de ferrites, um material usado em eletrônica, e tirou nota máxima em várias disciplinas, até mesmo em uma conduzida por um professor que havia se recusado a orientá-lo quando chegou: foi o único 10 da turma, que o deixou mais confiante. Ele terminou o mestrado e emendou com o doutorado, dessa vez com uma bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Quase quatro anos depois, já casado e com duas filhas pequenas, achou que era hora de retornar ao Brasil. Nessa época o Itamaraty reuniu estudantes e pesquisadores brasileiros nos Estados Unidos, motivando-os a voltar. Rezende recebeu um convite para ir a uma dessas reuniões, não pôde, mas já tinha decidido: “Além da pressão familiar”, ele conta, “eu achava que voltar era uma obrigação minha”. Em 1967 o Jornal do Brasil o entrevistou e noticiou: “O primeiro que veio do Norte”.

Em 1972, no laboratório do então nascente Departamento de Física da UFPE, Rezende (o terceiro, da esq. para a dir. ), Maurício Coutinho e Cid Araújo

Arquivo Familiar Em 1972, no laboratório do então nascente Departamento de Física da UFPE, Rezende (o terceiro, da esq. para a dir.), Maurício Coutinho e Cid AraújoArquivo Familiar

“Oportunidade histórica”
Rezende lecionou no Departamento de Física da PUC durante três anos, depois se mudou com a família para Campinas, como professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Seis meses depois mudaram-se outra vez, agora para Recife, com a missão de ajudar a formar o Departamento de Física da UFPE. “Vim para ficar três anos e fiquei, porque as coisas começaram a dar certo”, conta Rezende.

Ele guarda até hoje um bilhete em que o físico Sérgio Marcarenhas, professor da Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos, lhe escreveu em 1970: “Estamos vibrando que você possa aceitar esta oportunidade histórica”. Depois de convencer o Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Tecnológica (CNPq) a apoiar o novo grupo em Recife, Mascarenhas argumentou que Rezende faria o meio de campo entre os outros cinco professores mais jovens e físicos mais experientes, que trabalhavam nos Estados Unidos e, Mascarenhas apostava, aceitariam se mudar para Recife. Rezende entrevistou cinco dos seis supostos interessados, mas nenhum aceitou o convite. Durante alguns anos ele foi o único doutor do grupo que ocupava o terceiro andar do prédio da engenharia e havia se organizado para dar aulas pela manhã e fazer pesquisa à tarde.

Em 1967, com David Bullock, no MIT.

Arquivo Familiar Em 1967, com David Bullock, no MIT.Arquivo Familiar

“Aprendemos a fazer barulho, comemoramos quando saiu o primeiro paper do grupo, mas também passamos por muitos embates”, Rezende relata. “Diziam que nós nos julgávamos elitistas e PhDeuses.” A credibilidade científica facilitou a aprovação de um financiamento para construir o prédio atual, inaugurado em 1982. Do atual corpo de 40 professores, três outros do grupo inicial – Cid Araújo, José Rios Leite e Maurício Coutinho Filho – continuam no departamento.

O Departamento de Física da UFPE, um dos melhores do país, se expandiu para além do magnetismo, a área inicial, e hoje abriga equipes em outros campos, como óptica, supercondutividade, polímeros, semicondutores e ressonância magnética; cada grupo expõe as primeiras páginas dos artigos mais recentes em murais na entrada dos respectivos territórios, o que não é muito comum em universidades e institutos brasileiros.

Em 1998, Rezende com Arraes

Arquivo Familiar Em 1998, Rezende com ArraesArquivo Familiar

“Sergio Rezende foi um pioneiro em levar a ciência brasileira para o Nordeste”, comenta Sérgio Mascarenhas. O Departamento de Física foi o núcleo a partir do qual se fez o Centro de Ciências Exatas e da Natureza (CCEN), que reúne também os departamentos de Química, Matemática e Estatística. Como terceiro diretor do centro, Rezende exercitou sua habilidade de conciliador, bastante valorizada por quem o conhece: “O CCEN é o resultado de um processo de convencimento de lideranças potenciais, para formarmos um grupo com objetivos semelhantes. Se não trabalharmos de modo coletivo, não conseguiremos fazer um bom trabalho”.

Em 1987 Rezende tentou ser reitor, não foi eleito, mas descobriu algo importante: não poderia ser político nem concorrer a cargos eletivos. “Não sei fazer promessas e depois não cumprir. Prefiro dizer não quando necessário, explicando por que não.” Em 1989, o governador Miguel Arraes o convidou para assumir a diretoria científica da recém-criada Facepe, instalada em três salas do Instituto de Tecnologia de Pernambuco (Itep), em frente à UFPE.

Coube a ele a tarefa de elaborar as modalidades e os formulários de pedidos de apoio financeiro para pesquisadores e estudantes, com base no que havia visto nas fundações de São Paulo (FAPESP) e do Rio de Janeiro (Faperj). Em julho de 1990, no auditório do Itep, Rezende apresentou os formulários e as modalidades de apoio, agradeceu aos políticos de Pernambuco, que haviam incentivado a criação da fundação, e lembrou que qualquer pedido seria julgado por especialistas com base no mérito das propostas, “não por bilhetinhos de pessoas influentes”, ele ressaltou. Arraes o procurou em seguida para dizer que os colegas haviam se surpreendido com tamanha franqueza e que ele próprio jamais pediria uma bolsa para quem quer que fosse.

Em campo em 1982 (primeiro agachado à direita)

Arquivo Familiar Em campo em 1982 (primeiro agachado à direita)Arquivo Familiar

Plano do governo
Rezende conheceu o então candidato a presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) de 1998, em Natal. Rezende o ajudou a elaborar o plano de governo, Lula gostou de sua visão nacionalista sobre ciência e tecnologia, que implicava a valorização e integração das instituições de ensino e pesquisa, e o convidou para ser ministro assim que assumiu a Presidência. Rezende disse que ainda não estava preparado para um cargo tão alto, mas não escapou inteiramente: em 2003 ele assumiu a presidência da Finep, o que lhe permitiu, diz ele, “ver o ministério por dentro, não por cima, e interagir com os institutos de pesquisa”.

Em 2005 ele foi para o ministério e começou a trabalhar com sua equipe em um plano de ação de ciência e tecnologia. “Eu dizia: ‘Se não fizermos, alguém vai fazer’. Desde o início eu dizia que era para ser um plano do governo, não do MCT, com a participação indispensável dos outros ministérios. Lula falou com os outros ministros e fizemos tudo sem dizer que era do MCT.” Anunciado em 2007, o Plano de Ação em Ciência, Tecnologia e Inovação – Pacti 2007-2010 previa investimentos de R$ 41 bilhões e promovia a integração entre as ações do governo federal em cooperação com os governos municipais e estaduais. Uma das iniciativas mais visíveis foram os 122 Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs), criados dentro do CNPq. Rezende acredita que os INCTs contribuíram para descentralizar a produção científica nacional. “Cinco INCTs estão no Amazonas”, ele diz. “O maior gargalo ainda são empresas. A maioria ainda não acredita que podemos inovar e que a inovação pode mudar a vida delas.”

Em 2013, no laboratório

LÉO RAMOS Em 2013, no laboratórioLÉO RAMOS

“Acompanhei a criação do ministério, conheci todos os ministros e posso afirmar, por experiência própria, que Sergio Rezende mudou a ciência e tecnologia no país”, diz Mascarenhas. “Sergio Rezende é um exemplo que merece ser mostrado não só à juventude como aos políticos, por ser um cientista que encara como obrigação social a necessidade de tirar o país de nosso atraso centenário.” Pouco antes de sair do ministério, Rezende reuniu seus artigos e reflexões sobre política científica e tecnológica, publicados desde 1970, no livro Momentos da ciência e tecnologia no Brasil – Uma caminhada de 40 anos pela C&T (Vieira e Lent, 2010). Em 2010, ao retomar a vida de pesquisador em tempo integral, ele chegava às oito da manhã à universidade. “Hoje minha inquietação está voltada inteiramente para a ciência. Quero fazer mais coisas novas.”

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