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CÉSAR LATTES, 100

O físico que via além

Seus estudos alavancaram experimentos com raios cósmicos e o emprego de aceleradores na física de partículas

Lattes no cíclotron de Berkeley em março de 1948

Nat Farbman / The LIFE Picture Collection / Shutterstock

Em 11 de julho deste ano, o físico Cesare Mansueto Giulio Lattes (1924-2005) faria 100 anos. Nascido em Curitiba de um casal abastado de imigrantes do noroeste da Itália, César Lattes, como era comumente chamado, foi um personagem singular da ciência brasileira. Ainda muito jovem, já morando na capital paulista, conseguiu se destacar em meio a uma brilhante geração de físicos e matemáticos formados nas décadas de 1930 e 1940 na então recém-criada Universidade de São Paulo (USP), como Marcello Damy (1914-2009), Mário Schenberg (1914-1990) e Oscar Sala (1922-2010).

Seus estudos realizados logo após o fim da Segunda Guerra Mundial impulsionaram duas áreas correlatas, mas que usam abordagens diferentes para tentar entender a origem e o papel das partículas subatômicas, menores do que o átomo: a pesquisa dos raios cósmicos que caem sobre a Terra e a chamada física (dos aceleradores) de partículas.

Como investigador do mundo diminuto escondido dentro do átomo, propôs um aprimoramento nas chamadas emulsões nucleares, um tipo especial de chapa fotográfica então usada para registrar a passagem de partículas subatômicas de vida efêmera, de frações de microssegundo. A ideia possibilitou aumentar a sensibilidade das emulsões e lhe permitiu ver antes o que outros não enxergavam ou só vislumbrariam mais tarde.

Arquivo pessoal César LattesSem paletó, Lattes posa entre o irmão Davide, a mãe Carolina e o pai GiuseppeArquivo pessoal César Lattes

Em 1947, quando trabalhava na Universidade de Bristol, no Reino Unido, Lattes foi codescobridor de um novo tipo de partícula subatômica, o méson pi, hoje denominado píon, produzido por raios cósmicos que caem sobre a Terra. A função primordial do méson pi é manter o núcleo atômico coeso e, assim, evitar o escape de prótons e nêutrons de seu interior. As chapas aprimoradas possibilitaram divisar os rastros das partículas em registros obtidos na França e sobretudo na Bolívia. No ano seguinte, Lattes foi o primeiro a observar o mesmo píon, dessa vez produzido artificialmente no interior do acelerador de partículas da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos (ver texto). Em 1950, a melhoria no método fotográfico de detecção de partículas e a identificação do píon renderiam o Nobel de Física a seu ex-chefe de laboratório em Bristol, o britânico Cecil Powell (1903-1969).

Mesmo sem ter recebido o Nobel, Lattes angariou rapidamente respeito e fama. A engenhosidade prática garantiu ao brasileiro uma ascensão meteórica e seus trabalhos realizados na juventude repercutiram dentro e fora do país. No Brasil, no auge de sua popularidade, foi tratado como celebridade científica, como ocorrera antes com os médicos sanitaristas Carlos Chagas (1879-1934) e Oswaldo Cruz (1872-1917). Foi tema de enredo de escola de samba e capa de revista.

Com seu prestígio científico, foi um dos fundadores do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) em 1949 e apoiou a criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em 1951 (ver texto). Fez tudo isso antes de completar 27 anos. “Não há livro sobre a história da física no século passado que não fale da importância do trabalho do Lattes com o píon”, comenta o historiador da física Olival Freire Junior, da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e atualmente diretor científico do CNPq. “Lattes é considerado um gênio nos moldes do matemático John Nash [1928-2015].”

Como o colega norte-americano, que ganhou o Nobel de Economia de 1994 por sua contribuição à teoria dos jogos, Lattes enfrentou problemas mentais. Nash tinha esquizofrenia, condição que o alienava da realidade em certos momentos e causava alucinações. Lattes alternava períodos de normalidade com episódios de depressão extrema e de euforia exacerbada, um quadro mais ou menos compatível com o transtorno bipolar. “A doença mental o levou a ser internado algumas vezes e atrapalhou sua carreira. Ele talvez pudesse ter produzido mais se não tivesse enfrentado esse problema”, comenta o filósofo e historiador da ciência Antonio Augusto Passos Videira, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e pesquisador colaborador do CBPF. “Mas isso não tira o mérito do seu trabalho.”

Arquivo pessoal César LattesRetrato de Lattes aos 19 anos na formatura do curso de física da USP em 1943Arquivo pessoal César Lattes

Lattes era um entusiasta da física experimental e, não raro, um crítico dos matemáticos e dos teóricos (Albert Einstein foi um dos seus alvos preferenciais ao longo da vida). “Só interessa o que você pode detectar ou o que você pode induzir a partir do que você detectou”, disse, em uma entrevista não publicada, que faz parte do acervo do físico mantido na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), seu último local de trabalho. “Lattes dominava o saber fazer científico”, explica Heráclio Duarte Tavares, da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), historiador da ciência que tem estudado nos últimos anos a trajetória do físico.

Embora tenha sido um dos primeiros pesquisadores a mostrar o potencial dos aceleradores de partículas para gerar novos conhecimentos sobre o mundo subatômico, Lattes acabou dedicando a maior parte da carreira a estudos com raios cósmicos. Essa foi a área em que iniciou e terminou sua carreira científica.

Antes de se fixar em São Paulo no início dos anos 1930, a família Lattes morou em Curitiba, em Porto Alegre e, por seis meses, na italiana Turim. Na capital paulista, César Lattes concluiu em 1938 o equivalente ao ensino médio no Colégio Dante Alighieri, tradicional estabelecimento privado de ensino básico fundado por imigrantes italianos que existe até hoje. Uma conexão familiar permitiu que o adolescente Lattes, com apenas 15 anos, fosse aceito como aluno da graduação na nascente física na USP.

Seu pai, Giuseppe, era gerente de câmbio do Banco Francês e Italiano em São Paulo e tinha um cliente especial: Gleb Wataghin (1899-1986), o ítalo-ucraniano que fora atraído a São Paulo para implantar em 1934 o curso de física na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP, antecessora da atual FFLCH. O salário de Wataghin, que estudava raios cósmicos, era pago no banco em que Giuseppe trabalhava.

Universidade de BristolMembros do laboratório H. H. Wills, da Universidade de Bristol, chefiado por Powell (sentado à esquerda de terno e gravata). Lattes é o quarto na segunda leva de sentados da esquerda para a direitaUniversidade de Bristol

Um dia, Lattes pai perguntou ao físico se ele não aceitaria conversar com seu filho, que gostava de ciências. O imberbe Lattes, que chegou a pensar em ser professor primário, foi falar com Wataghin e os dois se acertaram. As normas de ingresso na universidade tinham então uma certa flexibilidade e o garoto, depois de passar por testes acadêmicos, foi aceito no curso. Outro correntista do banco, o italiano Giuseppe Occhialini (1907-1993), que também dava aulas de física na USP, logo se tornou uma referência para Lattes filho.

Talento precoce, terminou a graduação em 1943, aos 19 anos. Não defendeu tese de doutorado, mas isso nunca foi um problema. Já em 1948, em razão da descoberta do píon, a USP lhe concedeu o título de doutor honoris causa. Depois de formado, Lattes ficou um tempo estudando raios cósmicos em experimentos de campo com dois colegas italianos também graduados em física pela USP, Ugo Camerini (1925-2014) e Andrea Wataghin (1926-1984), filho de Gleb. Em 1946, viajou ao Reino Unido e se juntou a Occhialini, que já estava na Universidade de Bristol fazendo pesquisas no grupo de Powell.

Era a segunda temporada do italiano no Reino Unido. Entre 1931 e 1934, trabalhara no respeitado Laboratório Cavendish do Departamento de Física da Universidade de Cambridge, então sob a chefia de Patrick Blackett (1897-1974). Foi o responsável, ao lado do chefe britânico, por aprimoramentos na chamada câmara de Wilson, ou câmara de nuvens, um recipiente fechado que usa um vapor supersaturado para detectar o caminho da radiação ionizante, como partículas provenientes de raios cósmicos. O aparelho melhorado foi usado pela dupla para confirmar a existência do pósitron, o antielétron de carga positiva. Em 1948, Blackett ganhou, sozinho, o Nobel de Física por esses trabalhos. Uma curiosidade: durante sua passagem em meados da década de 1920 por Cambridge, um jovem Robert Oppenheimer (1904-1967), que sofria de depressão, teria deixado uma maçã envenenada sobre a mesa de Blackett, seu supervisor. A cena, fictícia ou real, aparece no início da cinebiografia Oppenheimer, ganhadora do Oscar de 2024, sobre o físico norte-americano, “pai” da bomba atômica.

Reprodução Nature | Alicia IvanissevichRastros deixados pelos mésons (acima) observados pelo grupo de Bristol em chapas fotográficas (abaixo)Reprodução Nature | Alicia Ivanissevich

Foi a relação estabelecida na USP com Occhialini que possibilitou a ida de Lattes para Bristol em 1946. No Reino Unido, o brasileiro tomaria contato com emulsões nucleares expostas a raios cósmicos obtidas pelo italiano em uma montanha de cerca de 2.800 metros nos Pirineus franceses, o Pic du Midi. As chapas fotográficas mais sensíveis pareciam ter flagrado rastros produzidos por partículas da classe dos mésons. Para ter certeza da descoberta, Lattes propôs realizar um experimento semelhante em um local mais elevado nos Andes bolivianos. No monte Chacaltaya, a uma altitude de 5.421 metros, a chance de, com a versão mais adequada das chapas fotográficas, registrar partículas desse tipo provenientes de raios cósmicos seria muito maior. E assim foi.

Um episódio não muito conhecido quase pôs fim precocemente à ascendente carreira de Lattes. Em abril de 1947, antes de ir à Bolívia para realizar o experimento de campo, Lattes teria de passar pelo Brasil. Como a viagem era financiada pelos britânicos, foi aconselhado a comprar uma passagem aérea de uma companhia estatal, a British South American Airways (BSAA). Era um voo cansativo, que durava mais de um dia. Saía de Londres e fazia escalas em Lisboa, Dacar e Natal antes de chegar ao Rio de Janeiro, o destino final.

Lattes não seguiu o conselho. Um funcionário da embaixada brasileira de Londres lhe dissera que as aeronaves britânicas eram bombardeiros de guerra adaptados e o serviço de bordo deixava a desejar. “Sugestão do interlocutor: vá pela brasileira Panair. Razões: aviões novinhos, comida boa e aeromoças bonitas”, contou o jornalista Cássio Leite Vieira no livro César Lattes – Arrastado pela história, uma breve biografia de Lattes publicada em 2017 pelo CBPF que pode ser baixada gratuitamente na internet. O físico brasileiro voou de Panair e provavelmente escapou da morte. O avião britânico caiu em Dacar. “Há relatos de que não houve sobreviventes”, escreveu Leite Vieira.

Depois da confirmação da descoberta do píon no experimento na Bolívia e, em 1948, no acelerador de Berkeley, Lattes voltou ao Brasil com prestígio em alta. Logo após participar da criação do CBPF e do CNPq, permaneceu no Rio de Janeiro durante a maior parte da década de 1950. Passou uma temporada nos Estados Unidos, entre 1955 e 1957, nas universidades de Chicago e Minnesota. “Sua produção científica nesse período foi baixa – provavelmente, decorrência de seu estado de saúde mental, marcado por episódios de depressão”, relatou Leite Vieira em seu livro.

Em 1960, Lattes voltou, como catedrático, ao local onde sua carreira começara, a USP. Dois anos depois, iniciou um grande projeto internacional de pesquisa, a chamada Colaboração Brasil-Japão (CBJ), que durante quatro décadas estudou os raios cósmicos, em especial no laboratório de física montado em Chacaltaya, na Bolívia. “Lattes poderia ter ficado no exterior”, diz o historiador da ciência Climério Paulo da Silva Neto, do Instituto de Física da UFBA. Mas sempre foi nacionalista, queria desenvolver a ciência brasileira e priorizava fazer parcerias com os sul-americanos e com países de fora da Europa e que não fossem os Estados Unidos

Arquivo pessoal César LattesLattes desembarca no Brasil em 1948Arquivo pessoal César Lattes

A volta à instituição que o formara não foi definitiva. Em 1967, pouco depois de ter passado um ano na Universidade de Pisa, na Itália, onde trabalhou mais com geocronologia, Lattes transferiu-se para a Unicamp, que havia sido criada no ano anterior. A razão da saída foi uma discordância por uma vaga de professor titular na USP. Levou para Campinas os projetos da CBJ. A nova universidade instalada no interior paulista foi o lugar em que Lattes passou maior tempo como professor e pesquisador, até sua aposentadoria em 1986 e morte, aos 80 anos, em 2005.

Embora vindo de família abastada, Lattes sempre foi visto como uma pessoa simples e acessível. Adorava animais. Deu entrevistas dizendo que gostaria de ter sido veterinário se não tivesse se tornado físico. Há muitas histórias em torno de um de seus cachorros, o Gaúcho, um perdigueiro que era sua sombra na Unicamp nos anos 1970 e 1980. O cão participava de suas aulas, frequentava o laboratório, acompanhava-o em viagens de carro. “Meu marido [José Augusto Chinellato, professor da Unicamp] defendeu a tese de doutorado com o Gaúcho na sala”, lembra, com humor, a física Carola Dobrigkeit Chinellato. Também docente na mesma universidade, a pesquisadora foi igualmente orientada por Lattes no doutorado e, como o marido, passou a investigar os raios cósmicos.

Amigos e colegas dizem que Lattes, embora predominantemente gentil e humilde, nem sempre era uma pessoa fácil de conviver. Ele podia ser duro e até injusto em certas ocasiões. Um episódio histórico foi sua tentativa pública de desbancar a teoria da relatividade de Albert Einstein (1879-1955) em 1980. “Lembro de ele ter me ligado e dizer que queria fazer uma conferência para criticar o trabalho de Einstein”, conta o físico Roberto Leal Lobo, diretor do CBPF entre 1979 e 1982. “Estranhei o telefonema. Mas não havia como recusar o pedido do Lattes, que tinha sido fundador do centro.”

Lattes fez uma apresentação de suas ideias, polêmicas, no CBPF. E chamou a imprensa para o evento. “Ele [Einstein] apenas deu um chute ao gol. Acho que era débil mental. Mas o débil mental, às vezes, enxerga coisas que outros não enxergam. Deu dois chutes em gol: teoria do efeito fotoelétrico e teoria do corpo negro, a base da mecânica quântica. Mas no resto eu acho que ele é uma besta”, disse Lattes em reportagem publicada no antigo Jornal do Brasil em 15 de junho de 1980.

Na apresentação na ABC, o físico carioca Jayme Tiomno (1920-2011), então na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), defendeu as ideias de Einstein. “Mais tarde, Lattes se arrependeu desse episódio”, conta o físico Edison Shibuya, professor aposentado da Unicamp que foi orientado no doutorado pelo descobridor do píon, com quem trabalhou em pesquisas sobre raios cósmicos e conviveu por quase quatro décadas. “Lattes viu que as medidas usadas por ele para testar a relatividade podiam ter sofrido a interferência de um equipamento.”

Lattes foi casado e teve quatro filhas, três ainda vivas. Nenhuma estudou física ou se tornou pesquisadora. Teve também um irmão, Davide, que foi dono de construtora. Nas universidades por que passou, além dos trabalhos científicos, gerou algumas centenas de descendentes acadêmicos: pesquisadores orientados por ele no mestrado ou no doutorado, que, por sua vez, formaram novos alunos na pós-graduação (ver texto). Para um mestre, não há legado maior do que o sucesso de seus pupilos. Em abril de 2024, a Presidência da República incluiu o nome de Lattes no Livro dos heróis e heroínas da pátria.

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