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Medicina

O formador de uma escola

Ivo Pitanguy inventou técnicas que fizeram avançar a cirurgia plástica e propagou-as a seus discípulos

Pitanguy: legado transmitido em curso de pós-graduação que já formou mais de 500 cirurgiões plásticos

FABIO MOTTA/AEPitanguy: legado transmitido em curso de pós-graduação que já formou mais de 500 cirurgiões plásticosFABIO MOTTA/AE

Ivo Pitanguy transformou o Brasil numa espécie de meca da cirurgia plástica ao atrair ricos e famosos de todos os cantos do planeta à clínica que comanda há mais de quatro décadas no Rio de Janeiro. Ele não renega o glamour associado a seu sobrenome, embora ressalve que os colunáveis e os chefes de Estado sejam minoria entre os cerca de 50 mil pacientes particulares já atendidos nos dois casarões contíguos da rua Dona Mariana, no bairro de Botafogo. A origem de quem está precisando de ajuda não lhe importa. Pitanguy dedica idêntico apuro técnico aos pacientes de sua clínica e às centenas de pessoas humildes operadas todos os anos na 38ª enfermaria da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, sob seu comando há mais de meio século e onde ele maneja seu bisturi todas as quartas-feiras, acompanhado por uma equipe de 40 médicos. Da mesma forma, o cirurgião não vê diferença entre a aflição de uma vítima de uma queimadura ou de deformidade congênita e o desconforto de um paciente com um nariz proeminente ou uma papada flácida. Acha que todos esses pacientes estão em busca de harmonia e de paz de espírito e são legitimamente merecedores de ajuda médica.

Mas o legado que mais orgulha Pitanguy é a escola que criou para propagar suas técnicas e idéias e para seguir empurrando as fronteiras da cirurgia plástica. Em 1960 ele fundou um curso de pós-graduação em cirurgia plástica na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Hoje já se contam 45 turmas formadas, num total de 500 alunos oriundos de mais de 50 países. A concorrência é acirrada: são mais de cem candidatos para preencher as dez vagas abertas anualmente. No curso, que também é vinculado ao Instituto de Pós-Graduação Médica Carlos Chagas, os alunos têm a chance de, ao longo de três anos, conhecer todos os ramos da cirurgia estética e reparadora, fazendo estágios tanto na clínica particular de Pitanguy quanto em serviços de atendimento a pacientes com deformidades congênitas, seqüelas de trauma, queimaduras e tumores em diversos hospitais públicos conveniados. “Sempre gostei de transmitir meus conhecimentos e de aprender com o dos outros numa espécie de missão que continuo levando adiante. Ensinar, criar uma escola, é responsabilidade inerente a quem acredita deter algum saber”, afirma Pitanguy.

Em 1974 os egressos dessa escola criaram a Associação dos Ex-alunos do Prof. Ivo Pitanguy (AExPI), que se reúne a cada ano num encontro e a cada dois anos num congresso para discutir os avanços da cirurgia plástica. Em comum, os discípulos comungam de uma mesma formação técnica e de um conjunto de convicções acalentadas pelo mestre, como aquela idéia de que qualquer desconforto com a própria imagem merece ser corrigido, embora exageros e expectativas irreais dos pacientes não devam ser fomentados. “A associação é uma espécie de confraria que compartilha a base técnica, princípios humanísticos e regras de exercício profissional”, diz o cirurgião plástico Carlos Alberto Jaimovich, atual presidente da AExPI. Formado na turma de 1975, desde 1995 ele trabalha no curso de pós-graduação como professor assistente de Pitanguy. Com mais de 400 membros ativos, a associação congrega atualmente também jovens cirurgiões formados por ex-alunos da escola. “Já há vários casos de filhos de cirurgiões formados que também ingressam no curso”, diz Jaimovich.

São numerosas as contribuições de Pitanguy à cirurgia plástica. Depois de se formar médico pela Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1946 e aperfeiçoar-se nos Estados Unidos, França e Inglaterra nos anos 1950, tornou-se conhecido pelo pioneirismo no atendimento a queimados e também por desenvolver uma técnica de redução de mamas num tempo em que poucos cirurgiões se arriscavam a operar os seios. Conhecida como “técnica em quilha invertida de navio”, é utilizada no mundo inteiro para diminuir e levantar mamas grandes e caídas. Só a equipe de Pitanguy acumula uma casuística de 10 mil operações. “A hipertrofia mamária deve ser corrigida a partir dos 16 anos de idade. A técnica nos deu grande satisfação porque permite preservar as funções das mamas e verificar sua saúde posteriormente”, diz o cirurgião.

Para entender a importância da contribuição de Pitanguy, é preciso levar em conta o contexto da cirurgia plástica quando ele começou a atuar. Ainda longe de ser considerada uma especialidade médica, limitava-se a um conjunto de técnicas a princípio voltadas para o tratamento de mutilados de guerra, queimados e vítimas de deformidades congênitas. “Havia cirurgiões capazes, mas tinham um perfil autodidata e muitas vezes suas técnicas só davam certo quando executadas por eles próprios”, afirma o discípulo Carlos Jaimovich. “O grande mérito de Pitanguy não reside apenas em haver desenvolvido técnicas originais, mas também em conseguir que essas técnicas fossem divulgadas e obtivessem bons resultados nas mãos de outros cirurgiões a quem foram generosamente ensinadas”, diz Jaimovich. “Não adianta criar uma técnica que, de tão complexa, só o seu inventor consegue utilizar. O importante na pesquisa clínica é a feasibility, a possibilidade de ser praticada por outros”, reforça Pitanguy. Diversas técnicas criadas ou aperfeiçoadas pelo cirurgião são voltadas para a harmonização do contorno corporal. Uma delas é a toracobraquioplastia, que refaz o contorno do tórax e dos braços em pacientes que perderam muito peso. Descrita na revista Plastic and Reconstructive Surgery muito tempo atrás, ganhou novo fôlego nos últimos anos, com o avanço das cirurgias de redução de estômago que promovem grandes perdas de massa corporal.

Sua contribuição para a cirurgia estética nasal rendeu-lhe uma homenagem. O cirurgião descobriu que a secção de um ligamento situado entre as cartilagens das narinas, cuja função é prender o músculo que reprime a ponta do nariz, tinha o condão de levantá-lo alguns milímetros, melhorando a sua aparência. A literatura médica passou a descrever o tal ligamento como “ligamento de Pitanguy”. Para engrossar lábios muito finos, desenvolveu uma cirurgia conhecida como “confecção do arco de cupido de Pitanguy”, que é realizada através de uma incisão na linha de demarcação da mucosa do lábio superior, aumentando seu contorno. O cirurgião também deixou sua marca em intervenções para a correção de orelhas de abano, de fissuras labiais, de mamilos invertidos ou hipertróficos ou ainda de aumento do queixo. Autor de mais de 800 trabalhos científicos, entre artigos, livros e capítulos de livros, Pitanguy manteve entre 1971 e 1997 uma publicação bimestral de divulgação da produção acadêmica de sua equipe, o Boletim de Cirurgia Plástica. Uma de suas obras mais conhecidas é Aesthetic and Plastic Surgery of the Head and Body, lançada em 1981, na Feira de Frankfurt. Dotado de 1.800 ilustrações em aquarela, foi fruto de uma paciente parceria entre Pitanguy e um desenhista alemão que, ao longo de quatro anos, se incumbiu de registrar diversas técnicas criadas pelo cirurgião.

Com seus cães no jardim da casa na Gávea, onde vive

Marizilda Cruppe/Agência O GloboCom seus cães no jardim da casa na Gávea, onde viveMarizilda Cruppe/Agência O Globo

A experiência que mais marcou sua carreira foi uma grande tragédia ocorrida na cidade de Niterói no dia 17 de dezembro de 1961. Um incêndio no Gran Circo Norte-Americano, instalado próximo à estação das barcas que conduz milhares de pessoas ao Rio todos os dias, matou 500 pessoas e deixou 2.500 feridas, na maioria crianças. Pitanguy ouviu a notícia quando ia de carro para a Santa Casa, desviou o roteiro, tomou a barca e organizou uma equipe para dar os primeiros socorros no meio do caos. O Hospital Antônio Pedro, fechado por uma greve de funcionários, foi reaberto para atender as vítimas. Com o Hospital Bethesda, em Washington, Pitanguy conseguiu um suprimento de 33 mil centímetros cúbicos de pele liofilizada, reserva destinada aos feridos da Marinha dos Estados Unidos, utilizada como enxerto numa técnica nunca antes realizada na América do Sul. Durante muitos anos, ele e sua equipe cuidariam das seqüelas daquele exército de pacientes. “Resultados como os obtidos durante aquela tragédia permitiriam reconhecer o valor da luta pela valorização da cirurgia plástica”, diz Pitanguy. Ele se refere ao desdém que enfrentou no Rio de Janeiro dos anos 1950, após ter se especializado nos Estados Unidos, França e Inglaterra. Seus apelos pela criação de serviços de cirurgia estética e reparadora demoraram a encontrar eco entre gestores de hospitais e autoridades da saúde, que alegavam falta de dinheiro mas, na verdade, viam a nova especialidade com preconceito.

Aos 82 anos de idade, Pitanguy segue com o fôlego de sempre. Viaja ao exterior com freqüência, opera duas vezes por semana em sua clínica e uma na Santa Casa e atende os pacientes no consultório no restante do tempo. Também reserva tempo para outras atividades, como encontros e reuniões da Academia Nacional de Medicina e da Academia Brasileira de Letras, onde desde 1990 ocupa a cadeira 22, cujo patrono é o patriarca José Bonifácio. Num dia típico, acorda às seis horas da manhã e se lança à piscina fria de sua casa no bairro da Gávea, hábito adquirido quando era nadador na adolescência em Belo Horizonte, cidade onde nasceu. “Meus netos já sugeriram que eu tivesse uma piscina aquecida, mas esse choque térmico de manhã é muito saudável”, diz o cirurgião, que ainda mantém um espaço para a prática de caratê – ele e a mulher, Marilu, casados desde 1955, são faixas pretas – e uma quadra de tênis para treinos freqüentes, também com os netos. Quando está na clínica, divide uma jornada em geral de 12 horas diárias entre o centro cirúrgico, o consultório e uma biblioteca de dois andares, onde dá aulas e prepara conferências. Atualmente toda sua produção acadêmica está sendo digitalizada, mas, apesar dos recursos tecnológicos, Pitanguy não se desvencilha de hábitos arraigados. Mantém, por exemplo, uma sala para preparação de slides de técnicas e cirurgias, embora o resultado final levado a conferências seja transferido para práticos CDs. A única concessão que fez em sua rotina foi deixar de trabalhar às sextas-feiras, dedicadas à mulher, aos quatro filhos e aos netos na casa de Itaipava, região serrana do Rio, ou na ilha particular que mantém em Angra dos Reis, que converteu em um criadouro de animais silvestres licenciado pelo Instituto Nacional do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Preocupado em deixar sucessores também na clínica particular, há tempos deixou de fechá-la quando viaja ao exterior – quatro médicos afinados com suas idéias atendem pacientes mesmo na sua ausência, enquanto sua filha Gisela, psicoterapeuta, coordena o trabalho de toda a equipe.

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