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Sidney Storch Outra

O gigante que pula com uma perna só

Reitor da Universidade de Santo Amaro (Unisa), Sidney Storch Dutra é o representante da Região 3, que compreende os Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo, no conselho deliberativo do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB). Dutra é formado em Engenharia Eletrônica pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), tem especialização em Administração Financeira pela Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas e MBA na Sociedade de Desenvolvimento Empresarial de São Paulo. Atualmente, faz doutorado em Educação pela Universidade Andrews, dos Estados Unidos. Foi diretor-geral do Hospital São Vicente, de Curitiba, e diretor administrativo e financeiro da Amico Assistência Médica de São Paulo.

A Universidade de Santo Amaro funciona em dois campi na Zona Sul da cidade de São Paulo. Surgiu em 1968, como Organização Santamarense de Educação e Cultura (Osec). Ganhou o novo nome ao adquirir o status de universidade, em 1994. Tem 10 mil alunos e 800 professores, em 27 cursos superiores. O CRUB reúne reitores de dezenas de universidades brasileiras. Participa da busca de soluções para problemas como o financiamento dos hospitaisuniversitários e participa de projetos como a Ação da Cidadania contra a Fome e a Universidade Solidária.

A vigésima sétima Conferência Geral da Unesco sobre educação superior, realizada em novembro de 1993, em Paris, apresentou ao mundo uma definição sobre o que efetivamente é educação superior. Trata-se, afirma, de?todo tipo de estudos, treinamento ou formação para pesquisa em nível pós-secundário, oferecido por universidades ou outros estabelecimentos educacionais aprovados como instituições de educação superior pelas autoridades competentes do Estado.?

Essa definição tem a ver efetivamente com o papel das universidades no processo de desenvolvimento das nações e dos povos, tema central deste fórum. A proposta que trago para este seminário é a de que as universidades assumam, de fato, um papel de liderança no processo de desenvolvimento, no que tange à ciência e tecnologia. Essa é uma conclusão óbvia, devido ao fato de que as universidades dispõem de trunfos únicos para desempenhar este papel.

Isso está inerente à sua própria missão, que consiste, primeiramente, em formar os dirigentes de amanhã. Essa formação é papel da universidade. Ao mesmo tempo em que ela forma pessoas no nível superior, forma líderes. A pesquisa dentro da universidade deve, acima de tudo, procurar ampliar os horizontes e expandir as mentes. Assim, os líderes poderão, de fato, pensar no benefício do seu próximo e da sociedade.A natureza fundamental da existência da universidade é a de ser o motor do saber dentro da sociedade. Nos 35 anos que correram até 1995, o número de alunos matriculados em cursos superiores em todo o mundo multiplicou-se por mais de seis. Hoje, existem provavelmente 90 milhões de pessoas matriculadas no ensino superior. A afirmação de que a educação é a alavanca do conhecimento não é ouvida só no Brasil. Ela ocorre em todo o mundo.

Esse aumento quantitativo não foi acompanhado por um crescimento qualitativo no sentido e contexto do desenvolvimento das nações. Ficou constatado que ocasionou um aumento ainda maior na disparidade entre os países. No contexto mundial, 75% de novos conhecimentos no mundo provêm de um número restrito de países, a saber, Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra, Japão, França e Canadá. Esses países representam apenas 13% da população do globo. Praticamente todos os 87% restantes compram e consomem conhecimento, tecnologia e ciência.

Isso pode ser corroborado por um dado publicado na edição de março de 1995 da revista Science. De acordo com esse dado, a América Latina produz apenas 0,9% das pesquisas realizadas no mundo. Deve-se ressaltar que, destes 0,9%, 70% das pesquisas da América Latina são realizadas no Brasil. Portanto, apesar do número global não ser favorável, o Brasil é líder dentro do contexto da América Latina. Trata-se de um fator importante.

De qualquer forma, pode-se fazer o diagnóstico de que o Brasil é fundamentalmente um consumidor de conhecimento. Vamos analisar um pouco mais profundamente essa questão. Para isso, vou usar dados de um trabalho produzido pelo presidente da FAPESP, professor Carlos Henrique de Brito Cruz. Nele, é comparada a distribuição institucional da atividade de pesquisa e desenvolvimento no Brasil com a de outros países.Os dados mostram que existe uma diferença significativa. Nos Estados Unidos, Japão, Alemanha, França, Inglaterra, Itália e Canadá, a maior parte da atividade de pesquisa e desenvolvimento é realizada na indústria. No Brasil, ocorre exatamente o inverso. A pesquisa é realizada fundamentalmente na universidade. O trabalho também compara artigos científicos publicados e patentes registradas nos Estados Unidos. O Brasil aparece entre os países que produzem artigos científicos de maneira significativa, mas não está entre os que registram patentes.

Vale uma comparação com a Coréia, país que há 20 anos estava numa situação muito semelhante à do Brasil. Hoje, a Coréia aparece significativamente como grande publicadora de artigos científicos e registro de patentes, ou seja, possui as duas pernas que medem a questão da pesquisa e desenvolvimento de forma mais equilibrada. Todos devem concordar que no Brasil temos uma situação diferente, estamos com uma perna só, publicamos muito e quase não registramos patentes. Usando uma figura da mitologia brasileira, poderíamos afirmar que ainda sofremos da síndrome do Saci. O Brasil está pulando com uma perna só. Faz pesquisa nas universidades, mas não consegue transformar esta ciência e tecnologia em efetivo desenvolvimento para benefício de seu povo.

Na década de 80, o Brasil tinha uma situação até um pouco melhor que a da Coréia. Por volta de 1984 e 1985, porém, houve uma grande mudança na situação coreana. Naquele período, houve um significativo aumento nos investimentos das empresas em pesquisa e desenvolvimento, o que gerou um grande acréscimo no registro de patentes. É possível observar que o modelo coreano é quase uma cópia do modelo seguido nos Estados Unidos. Nesses países, quem paga a pesquisa básica é o governo, quem executa é a universidade. Na pesquisa aplicada, quem paga, fundamentalmente, é a indústria, com alguma participação do governo. A parcela governamental corresponde em grande parte à compra de patentes e de tecnologia, para que elas sejam trazidas para dentro do país. Quanto ao desenvolvimento de novos produtos, quem paga e quem realiza é o setor privado. É a outra perna do Saci.

Este modelo, no qual a universidade faz a ciência fundamental, a pesquisa básica, e a indústria aplica e desenvolve tecnologia, parece ser o que mais fomenta o desenvolvimento de forma rápida e segura. Não é função da universidade desenvolver produtos finais. Isso exige conhecimentos de características do mercado e um envolvimento comercial não pertinentes à universidade. A universidade faz a pesquisa básica e a indústria faz a pesquisa aplicada.

No modelo brasileiro, já existe uma perna. Está faltando a outra, que é a aplicação e o investimento do setor privado. As universidades podem e devem tomar a iniciativa, liderar e buscar esse processo. Durante muitos anos, a universidade brasileira esteve um pouco dissociada de sua real função. Isso ocorreu como uma reação ao regime militar, no qual a universidade, com raras exceções, esteve mais voltada para a questão política, para a implantação da democracia. No setor privado, não havia razão para investir em pesquisa e gerar novas tecnologias. Havia um exagerado protecionismo e a reserva de mercado, como no caso da informática, por exemplo.

Hoje, a sociedade brasileira paga por esses 20 anos de nossa história. Para solucionar o problema, o Brasil precisa ser ágil. Não pode demorar muito. A impressão é a de que as instituições não-públicas têm um pouco dessa agilidade. Devido a essa velocidade, as instituições privadas podem exercer um papel importantíssimo de atrair contratos de parceria com o setor público e rapidamente gerar expertise em determinados nichos de mercado. A partir daí, é possível ter o retorno desejado em termos de desenvolvimento que tanto se almeja, do qual o País tanto precisa, e que certamente nos conduzirá a um Brasil mais justo. Afinal, esta é a proposta fundamental deste fórum.

Concluindo, reafirmo que acima de tudo a função primeira das universidades ainda é a de combater a escassez de material humano. As grandes indústrias mundiais implantarão suas atividades de pesquisa e desenvolvimento onde houver potenciais de recursos humanos. Portanto, o aumento do investimento privado em ciência e tecnologia depende significativamente da nossa capacidade de recrutar e desenvolver talentos.

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