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Pesquisa na quarentena

“O impacto da pandemia na saúde mental é algo que todos teremos de enfrentar”

Disseminação do coronavírus levou o neurocientista Stevens Rehen a adiar um sabático nos Estados Unidos e a trazer os pais para morar em casa

O neurocientista trabalhando em casa, durante a pandemia

Alice Rehen

Meu laboratório no Rio de Janeiro é especializado em criar, a partir de células reprogramadas, tipos celulares presentes no cérebro humano. Produzimos neuroesferas e organoides cerebrais e os utilizamos para estudar como infecções causadas por vírus ou certos compostos afetam o desenvolvimento cerebral. Um de nossos artigos científicos mais recentes foi publicado em março de 2020 na revista PLOS Neglected Tropical Diseases. Identificamos que a saxitoxina, produzida por uma cianobactéria, amplifica os estragos do vírus zika sobre o tecido cerebral. Descrevemos alterações marcantes em organoides cerebrais humanos expostos simultaneamente ao vírus zika e à saxitoxina. Os resultados foram confirmados em camundongos. 

Há quase 10 milhões de domicílios no país sem água na torneira, o que obriga muitas famílias a recorrer a poços e reservatórios. Durante a última grande seca (2012-2017), a saxitoxina foi identificada em pelo menos metade dos reservatórios de água do Nordeste brasileiro. Sua presença pode explicar por que houve mais casos de bebês com malformações causadas pelo vírus zika naquela região do que em qualquer outra parte do mundo. Nossa conclusão é de que o impacto do vírus foi mais grave nos pobres e que a falta de saneamento básico ajudou a provocar microcefalia. 

Organoides cerebrais também são usados pela equipe para decifrar os efeitos neuroquímicos de substâncias psicodélicas, compostos que ativam receptores do neurotransmissor serotonina. A expectativa é entender como a ativação desses receptores por psicodélicos altera a plasticidade neural e compreender, do ponto de vista molecular e celular, seu potencial terapêutico para depressão, estresse pós-traumático e doenças neurodegenerativas.

Eu estava com um sabático marcado para julho de 2020. Parte dele seria realizada na Universidade da Califórnia em San Diego, onde fiz meu pós-doutorado, seguida de um período no Instituto Usona e na empresa Promega, em Madison, todos nos Estados Unidos. Iria com minha esposa, Helena Borges, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro [UFRJ], e nossos dois filhos. Planejávamos receber ainda integrantes da minha equipe no Rio para imersões científicas no exterior. A proposta seria ampliar a utilização de nosso modelo de organoides cerebrais para estudar doenças neurodegenerativas, com foco no Alzheimer, e as alterações moleculares associadas à exposição do tecido neural aos psicodélicos. A princípio, nossos colaboradores nos Estados Unidos sugeriram que adiássemos a ida para o final deste ano, mas, em virtude da evolução da pandemia nos dois países, teremos que aguardar. O novo plano é viajar em meados de 2021. 

Há 25 anos sou professor da UFRJ e, em virtude de um convênio acadêmico estabelecido entre a universidade e o Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor), há seis anos sou também cientista colaborador do instituto. O Idor é uma entidade privada sem fins lucrativos que oferece um ambiente de integração com a área clínica, setores de inovação, além de infraestrutura e agilidade de resposta a parceiros privados. Uma característica marcante do Idor é sua capacidade de manter relações sinérgicas com diferentes instituições de pesquisa, principal motivação para ter estabelecido essa colaboração. 

No começo da pandemia, interrompemos as atividades do meu laboratório e passei a dedicar de seis a oito horas diárias para reuniões virtuais com alunos e colaboradores. Terminava o dia esgotado. Dediquei-me também à leitura de artigos científicos sobre a Covid-19, ajudando na integração das áreas básicas com a clínica do Idor. Intensifiquei minha participação nas redes sociais, em palestras virtuais, na redação de artigos para jornais e na gravação de podcasts e programas de TV. 

Em virtude de o instituto estar associado à Rede D’Or São Luiz, pude acompanhar em tempo real a evolução clínica da pandemia. O que parecia uma doença pulmonar com risco maior para idosos revelou-se uma doença de amplo espectro clínico, capaz de afetar múltiplos órgãos em jovens e adultos.

Diante dos sinais de que o vírus atingia outros órgãos além dos pulmões, decidimos utilizar nossos modelos biológicos para estudar o Sars-CoV-2.  A retomada obedeceu planejamento cuidadoso. Na suspeita de contaminação de algum membro da equipe, fazemos a testagem.  Nos experimentos com o novo coronavírus, as células e os organoides cultivados no Idor são transportados para infecção na UFRJ e Fiocruz em espaços com nível 3 de biossegurança. Em seguida, trazemos de volta DNA, RNA ou proteína das preparações para análise no instituto.

Mais do que a rotina de pesquisa, a vida em família passou por uma reviravolta. O primeiro desafio: o ensino a distância de nossos filhos. Alice, de 12 anos, adaptou-se relativamente bem. Para Gael, de 8, foi mais difícil. Tímido para usar a plataforma digital, precisava de orientação constante. Helena foi a mais demandada. A pandemia sabotou a carreira das mulheres cientistas muito mais do que a dos homens e pouca atenção tem sido dada pelas instituições a esse respeito. Tenho me esforçado em combater esse efeito em casa e também em meu laboratório, mas não é o suficiente diante do machismo tão enraizado em nossa sociedade patriarcal. 

A falta de exercício foi o segundo desafio. Compramos um rolo de treino que transformou nossa bicicleta em uma “bike de spinning caseira. Pedalamos de 20 a 30 minutos por dia, o que ajuda no equilíbrio mental. 

O confinamento, o medo de adoecer, a confusão política e econômica ao redor fragilizam todos, principalmente os idosos. O impacto da pandemia na saúde mental é algo que todos teremos de enfrentar. Que o digam meus pais. Minha mãe tem doença pulmonar obstrutiva crônica e necessita de oxigênio externo. Em quatro meses, visitei-os brevemente por duas vezes. Eu de máscara, praticamente besuntado de álcool, em um canto da sala e eles do outro lado, sem abraços. 

Diante de um cenário com crianças debruçadas sobre telas e confinadas num apartamento e meus pais isolados e ansiosos em outro, Helena e eu tomamos uma decisão radical. Viemos todos morar juntos numa casa alugada, com espaço e bastante sol.  

Tenho trabalhado mais do que nunca, independentemente da gestão remota da equipe. Ao longo de 2020 já publicamos sete artigos científicos, fruto dos esforços de alunos e pós-docs brilhantes e colaborações produtivas. Nesse período submeti ainda projetos nacionais e internacionais para a captação de recursos.

A pandemia trouxe reflexões importantes sobre o que é realmente importante na vida. No ano passado, viajei 12 vezes ao exterior e outras tantas pelo Brasil. Passei praticamente metade do ano fora de casa. Penso que de agora em diante a primeira opção será videoconferência, e não o deslocamento para ministrar uma palestra fora da cidade. Aliás, minha impressão é de que muitos passaram a pensar da mesma forma. Quase 900 pessoas responderam a uma enquete que fiz no Twitter. Setenta e dois por cento das pessoas disseram que optarão por videoconferência a viagens de trabalho de curta duração no mundo pós-Covid.

Nos próximos meses, além das tarefas domésticas e da coordenação das pesquisas, precisarei me dedicar às aulas remotas para turmas de graduação em fisioterapia, farmácia, física médica e enfermagem na UFRJ. Será preciso evitar a “fadiga de zoom”, intercalando conteúdo gravado com momentos de interação ao vivo, além de bate-papos organizados com profissionais convidados das respectivas carreiras e módulos sobre alterações neurológicas associadas à infecção por Sars-CoV-2. Para complementar o novo desafio, pelos próximos 15 dias ficarei responsável pela rotina das crianças. Helena precisará se afastar para um tratamento médico.

É um momento repleto de questionamentos e incertezas. A tragédia brasileira da Covid, amplificada pela falta de liderança e gestão de saúde pública, fez aumentar meu engajamento em divulgação científica e minha admiração por aqueles que enfrentam as desigualdades sociais, o racismo e lutam pelo meio ambiente. O cientista precisa ocupar as redes sociais e fazer coro com quem quer preservar a democracia. Talvez minha única certeza seja a de continuar a produzir boa ciência, de preferência, que ajude a mitigar os efeitos da pandemia sobre a saúde mental de todos nós.

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