Azeite de leos– São pré-colombianos. Precisamos limpar a área.
Prossegue uma dissertação sobre as condições específicas daquele sítio. O lavrador e sua mulher olham o rosto robusto e o movimento dos lábios do rapaz; as palavras se fundem; blocos de imagens uma hora ou outra compõem um quadro legível de sensações. Em seguida submergem em uma massa de sílabas sobrepostas.
– E a nossa casa?
O jovem lamenta com gestos brandos e some na escuridão atrás dos montes como um véu.
– Mais pra cima.
Os tratores levantam as bocas cheias de terra e placas de cal, despejam-nas nos arredores do casebre; formam uma vala com uma ilha incrustada em seu centro. O homem anda vagaroso entre os operários, velozes de um lado para outro; agacha-se perto de uma árvore; observa os aventais brancos ao vento enquanto um naco de terra escorre entre seus dedos feito areia fina. Ao longe cavalos trinam as patas na lama enrijecida, puxam os arados e somem sob a pátina em ruínas de casas caiadas amarelas e brancas. Agora são esses, os ditos que vêm me enfeitiçar e carregar minha vida. Sempre tem alguém brincando com a gente, e por trás de tudo talvez Deus deve brincar com todo mundo. Sua mulher vem com o vento à distância. O vestido esvoaça, os olhos apertados pelos infinitos grãos vermelhos; flutua como um tecido rasgando ar. Diz três palavras e carrega o esposo atrás de si. Alguns latidos, serras brandas; o sol mingua, sustenta-se um pouco mais no horizonte. Mancha de amarelo-sangue e de tristeza a faca azul do oeste.
– Preciso fazer um reparo nisso – bate com as mãos grossas nos batentes do umbral. Pisa no pórtico da cozinha; os ferrolhos doentes e os degraus rancorosos deixam escapar alguns gemidos.
– Não precisa de mais nada. Agora não precisa de mais nada – ela responde dobrando a quina da parede em direção ao quarto do filho anoitecido.
Pelo postigo quebrado de vidro, fita em silêncio. Os homens à beira da vala tomam nota e recolhem cacos em pequenos odres de cores diferentes. É isso que eles querem? Mas não sabem direito para que querem? Ninguém consegue me explicar o porquê das coisas? O porquê de seu mistério ou de sua razão? Vai à pia e envolve carinhosamente a gamela de barro, as mãos espalmadas com toda sua superfície; entorna a água até a boca de uma caneca. Ninguém sabe de nós, aqui. O homem do governo vem e faz as suas coisas. Mas correção nem sempre é justiça. Quem nos ouvirá se a gente gritar? O advogado da cidade vai vir atrás da nossa voz? Ou vem só pra dizer que não estamos mesmo do lado da verdade? A escuridão cobre tudo. Apenas o lusco-fusco de insetos na mata forra toda a dimensão a perder de vista. Aqui é o esquecimento. Aquilo que ninguém conhece. Ninguém sabe que existe. Nem na imaginação. Não, é mais que esquecimento. É um tipo de morte. Isso. Têm muitos mortos debaixo de mim agora. Debaixo desse assoalho. Bate com os pés nas ranhuras azinhavradas e elas gemem descontínuas. Sim, estar assim. Quieto com as mãos trançadas no joelho. Senta-se na cadeira de fórmica, ombros retesados. Intui movimentos através do vidro, acima do forno de lenha. Esses idiotas vão continuar se mexendo como estopa? Mosquitos brancos debaixo das luzes de mercúrio. Esse tempo vai passando, a gente sente ele passar. É uma lesma. Cresce e diminui. Deixa um rastro de gosma nojenta. Assim as coisas vão se fazendo. Vão passando. Vagarosas. Sempre passando. Para sempre.
Os dias e as noites das estações deslizam pela memória e se retraem dentro da casa. Os três não saem mais; as rachaduras crescem como trepadeiras. Toupeiras fixam os esgares do sol entre moinhos. As luzes se refratam formando uma constelação de sal; os corpos dos bichos de buchos cheios estendidos nos tapumes. Os restos de comida sob as moscas. Os detritos da gente se acumulam nas ruelas sem calçadas, formando mapas. Quanto tempo faz? Parece que foi ontem. Esses sujeitos chegaram aqui com suas maletas. Todas as noites os vultos circundam a casa e se misturam com as roupas; mexem-se no varal e farfalham em busca de sentidos ocultos sob os sinais do tempo; espelham seus reflexos nos cacos da vidraça apodrecida. Por todo lado a gente está cercado. Por todas as portas tem gente. Um idoso de óculos enfia a cara pela fresta da janela; pede um copo d’água. Segura o arreio do cavalo. Relincha enorme, a cabeça deformada entre os restos das contas de vidro. Olha para mim. Quem ele pensa? Repito o velho ritual; satisfaço o homem. Parte limpando a boca com a manga da camisa sem dizer palavra. Que horas são? Descerro as mãos dos joelhos e percebo. Eu me perdi; todos estão dormindo. É madrugada e apenas o jovem, à beira da vala, observa cansado um caco sob a luz trêmula.
Vou me aproximando assim bem de manso e quando ele me percebe estou muito perto. Ele sente a lâmina brilhar sua ponta do outro lado, as costas no respaldo do meu braço, a garganta presa dentro da minha mão esquerda. Sinto o calor escorrer nos meus dedos. Seguro ele assim, de manso, os pés sem tocar o chão, por um momento me encho de tanto sonho era como se todo aquele silêncio da mata verde e nós dois ali era como se a gente fosse uma única vida batendo um só coração até a hora em que eu ouço o som fofo do seu corpo dentro do poço, e a chuva começa forte como sempre, enlameando tudo, limando as paredes de terra, e forra seu corpo com delicadeza de um manto, ele ali desaparece debaixo de um tapete vermelho líquido.
Tira a mulher do sono, o filho às costas. A barraca de lona diminui atrás dos passos na estrada até se transformar em um ponto de névoa diluído na mata; e finalmente some na mais completa escuridão que funde a terra e o firmamento. Ao cruzarem as fronteiras e o breu das propriedades vizinhas, a carabina desperta. Sai da tocaia com o chapéu em meia-lua. Mira na direção precisa entre o rastro de uma nuvem avermelhada e as luzes difusas do último horizonte. Eles vão ver. Dessa vez esses animais não escapam.
Rodrigo Petronio é escritor. Autor, organizador e editor de dezenas de obras. Atualmente é professor da pós-graduação em argumento e roteiro do curso de cinema da FAAP. Ministra oficinas de escrita criativa e cursos livres na Casa do Saber, na Fundação Ema Klabin e no Museu da Imagem e do Som (MIS), onde criou e coordena o Núcleo de Narratividade.
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