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Astrofísica

O lado escuro do Universo

Físicos selecionam as partículas candidatas a compor a matéria que ainda não pode ser detectada

S. COLOMBI/ IAPVisão frontal: o desvio da luz com que as galáxias apareçam alongadas quando observadas na direção do eixo mais longo do paralelepípedoS. COLOMBI/ IAP

Simpzillas e wimpzillas. Nada a ver com Godzilla, o monstro japonês pré-histórico em forma de dragão que há quase 50 anos aterroriza a população de Tóquio, ao menos no cinema. Simpzillas e wimpzillas são duas famílias de partículas subatômicas especiais que nos últimos anos têm provocado a imaginação dos físicos. Não sem motivo: elas poderiam explicar a estrutura atual do Universo. Ainda não foram encontradas, mas caso realmente existam, devem resolver um problema antigo, lançado em 1933 pelo astrofísico búlgaro Fritz Zwicky. Estudioso de conjuntos de galáxias, Zwicky afirmou que apenas a matéria comum (formada por prótons, nêutrons e elétrons) era insuficiente para explicar como as galáxias permaneciam unidas apenas pela gravidade, a única força capaz de agir em espaços tão vastos. Tal coesão só seria possível se existisse cem vezes mais matéria do que era possível observar. Zwicky chamou o que não pôde ver de matéria escura, por não absorver nem emitir luz.

Partículas hipotéticas, as simpzillas e as wimpzillas podem ser justamente os tão procurados componentes da matéria escura, responsável por 90% da massa do Universo – nove vezes a quantidade de matéria comum concentrada em planetas, estrelas e nuvens de gás. Ainda que não se tenha detectado a existência dessas partículas exóticas, já se avançou na seleção de hipóteses que possam explicar do que a matéria escura é feita. Em um estudo publicado em 6 de junho na Physical Review Letters, uma das mais importantes revistas científicas da área, a física brasileira Ivone Freire da Mota e Albuquerque, atualmente na Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos Estados Unidos, praticamente elimina a possibilidade de as simpzillas até mesmo existirem, ao menos como se imaginava, já que até agora não foram registradas pelos atuais telescópios de neutrinos e detectores de partículas.

Desse modo, as wimpzillas saem fortalecidas, embora ainda não se saiba como possam ser reconhecidas. Essa perspectiva valoriza a construção de novos observatórios, como o IceCube, que os norte-americanos devem inaugurar em dois anos na Antártida, e o Pierre Auger, projeto multinacional em fase final de construção na Argentina, com a participação de grupos de pesquisa de São Paulo, do Rio de Janeiro e da Bahia. “Existe uma real possibilidade de detectarmos as partículas formadoras da matéria escura”, afirma o físico Brian Fick, da Universidade de Utah, Estados Unidos, que há dez anos acompanha o avanço do Auger.

Independentemente de comprovações, há indícios de que a matéria escura realmente existe. Concentrada em uma espécie de esfera ao redor das galáxias, funcionaria como um tipo de cola que mantém o Universo unido. Dois anos atrás, físicos franceses, a partir de informações coletadas em um telescópio no Havaí, elaboraram um mapa tridimensional de um trecho do Universo que mostra o desvio na trajetória da luz provocada pela matéria escura, apresentada como uma rede que sustenta as galáxias. O mais difícil ainda é resolver o problema posto há 70 anos: de que a matéria escura é feita?

Como numa campanha eleitoral, existem vários tipos de partículas candidatas. As simpzillas e as wimpzillas, bastante populares entre os físicos, diferem apenas na forma como interagem com a matéria comum. As simpzillas interagem fortemente com a matéria comum, como indica seu próprio nome, abreviação de Strongly Interacting Massive Particle. Já com as wimpzillas, sigla de Weakly Interacting Very-Massive Particle, ocorre o contrário. A porção zilla indica apenas que tem massa muito elevada, até 100 bilhões de vezes superior à de um próton, que é de 1 gigaelétron-volt ou 1 GeV – originalmente usado como unidade de energia, o eletrón-volt também indica a massa das partículas, obedecendo à equivalência entre massa e energia proposta por Einstein na famosa fórmula (E=mc2 ), que estabelece que a energia (E) corresponde à massa da partícula (m) multiplicada pela velocidade da luz (c) elevada ao quadrado.

Neutralinos em alta
Invisíveis aos telescópios por não emitirem luz, as duas zillas só poderiam ser identificadas de maneira direta quando, ao atravessarem a Terra, colidirem com detectores de partículas instalados em laboratórios a centenas de metros abaixo da superfície. Ou, de modo indireto, pelo reconhecimento de outro tipo de partículas bastante energéticas, os neutrinos, emitidos quando as simpzillas se chocam e se aniquilam no centro do Sol, o mesmo acontecendo com as wimpzillas. Como por enquanto só é possível observar as candidatas à matéria escura quando interagem com a matéria comum, ao menos em tese seria mais fácil detectar as simpzillas que as wimpzillas.

No artigo da Physical Review Letters, escrito em parceria com Laura Baudis, da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, Ivone analisou as características de dois principais observatórios de partículas componentes da matéria escura já em funcionamento: o Edelweiss (Expérience pour Detecter les Wimps en Site Souterrain ou Experimento Subterrâneo para Detecção de Wimps), dotado de detectores de germânio puríssimo instalados a 1.600 metros de profundidade nos Alpes franceses, e o CDMS (Cryogenic Dark Matter Search, Busca Criogênica de Matéria Escura), com detectores de germânio e silício montados a 12 metros de profundidade sob o campus da Universidade Stanford.

Projetados para detectar um terceiro tipo de partícula candidata a compor a matéria escura – o neutralino, semelhante à wimpzilla por interagir pouco com a matéria comum, mas com massa milhões de vezes menor -, esses dois laboratórios poderiam também observar facilmente as simpzillas em sua forma supostamente mais natural, com uma massa de 1.000 GeV. Depois de comparar os dados recentes captados pelos equipamentos com as previsões teóricas para as simpzillas, Laura e Ivone concluíram: as simpzillas não devem existir. Ao menos, não com a massa prevista. “Caso existissem com essa massa, já teriam sido detectadas”, afirma Ivone. Mas esse raciocínio não exclui totalmente a chance de as simpzillas existirem. Pode ser que tenham uma massa pelo menos mil vezes maior e só seriam captadas pelos dois outros observatórios ainda em construção, o Pierre Auger, na Argentina, e o IceCube, na Antártida, que teriam melhores condições de filtrar as partículas mais energéticas.

Mesmo assim, as chances das simpzillas parecem pequenas. Saem fortalecidos os modelos que prevêem uma matéria escura composta por partículas que interagem pouco com a matéria comum, como as wimpzillas e seus similares de menor massa, os neutralinos, também chamados de wimps (partículas de massa elevada que interagem fracamente). São os neutralinos que atualmente respondem melhor às exigências impostas pelas simulações em computador e pelo modelo mais aceito hoje para explicar a origem do cosmos, o Big Bang, a gigantesca explosão que teria ocorrido 13,7 bilhões de anos atrás e originado o Universo. Teoricamente, os neutralinos seriam partículas estáveis o suficiente – não se transformariam facilmente em outras – a ponto de existirem desde o Big Bang. Por se movimentarem a velocidades inferiores à da luz, seriam capazes de interagir entre si e se aglomerar, gerando força gravitacional suficiente para unir a matéria comum em galáxias.

Bem cotada pelos físicos, a hipótese dos neutralinos explica bem a estrutura dos aglomerados com milhares de galáxias, mas não muito bem as galáxias isoladas. Era de esperar que a concentração da massa – tanto a matéria comum como a matéria escura – aumentasse progressivamente da borda em direção ao centro em galáxias espirais como a Via Láctea, até atingir o valor máximo no núcleo, onde a densidade de matéria é comprovadamente maior. As observações mostram que, a partir de um determinado ponto, a concentração de matéria escura nessas galáxias se torna constante, numa indicação de que o modelo teórico dos neutralinos talvez precise de ajustes. As propostas alternativas – há pelo menos outras quatro – também não resolvem esse impasse.

Foi exatamente porque a teoria ainda não consegue concordar com a realidade que Fritz Zwicky lançou a idéia da matéria escura. De lá para cá, não houve mais consenso sobre a composição do cosmos. Já se fala até em vários tipos de matéria escura, que, de acordo com a preferência dos físicos, pode ser fria, formada pelas zillas e pelos neutralinos, que viajariam relativamente devagar; quente, com partículas tão velozes que não se agrupariam jamais em galáxias; repulsiva; de outro tipo, que interage fortemente entre si, ou mesmo de uma categoria que se aniquilaria emitindo radiação. A escolher.

“Sem a matéria escura, o Universo teria permanecido uniforme demais para permitir a formação de galáxias, estrelas e planetas”, comentam os físicos Jeremiah Ostriker e Paul Steinhardt, ambos da Universidade Princeton, Estados Unidos, em um artigo da revista Science de 20 de junho. A maioria dos físicos aposta: se o modelo do Big Bang estiver mesmo correto e o Universo em expansão, cerca 27% do cosmos é composto de matéria escura e 70% de uma forma de energia também desconhecida, a energia escura. A matéria comum, que forma tudo o que conhecemos, somaria os 3% restantes.

Corrigindo Newton
Mas há físicos – um grupo restrito, é verdade – que duvidam da existência da matéria escura. Como alternativa, propõem uma saída que soou como heresia quando foi apresentada, há 20 anos, pelo físico israelense Mordehai Milgrom, hoje no Instituto Weizmann, em Israel. Segundo ele, nada haveria de errado com a massa das galáxias em rotação. O erro estaria onde poucos ousariam apontar: na fórmula da força de atração entre os corpos, a Lei da Gravitação Universal, deduzida em 1665 pelo físico inglês Isaac Newton.

A velocidade das nuvens de gás de uma galáxia, que giram em torno de um eixo imaginário, diminui conforme aumenta a distância em relação ao centro, segundo a lei da gravidade. Mas Milgrom constatou que essa velocidade se tornava constante a partir de uma determinada distância – eis um detalhe incoerente coma Lei de Newton. “Analisei as propriedades das galáxias e procurei as que apresentavam grandes diferenças em relação ao que se observa no Sistema Solar, onde a Lei da Gravitação de Newton reconhecidamente funciona bem”, comentou Milgrom à Pesquisa FAPESP. “Percebi que em sistemas galácticos a aceleração é muito inferior à observada no Sistema Solar ou na Terra.

A atração gravitacional nas extremidades da Via Láctea é 100 bilhões de vezes menor que a de um corpo em queda livre na Terra.” A conclusão a que chegou é de que a lei de Newton funcionava bem em regiões do espaço com aceleração muito elevada, mas não em regiões onde a aceleração é pequena, como os aglomerados de galáxias. A alternativa foi alterar a lei de Newton, rebatizada de Dinâmica de Newton Modificada ou simplesmente Mond (Modified Newtonian Dynamics), que até agora tem explicado de maneira satisfatória as observações de galáxias espirais feitas por satélites como o Chandra.

Mas também não é perfeita e emperra na hora de analisar os aglomerados contendo milhares de galáxias. “Os resultados da aplicação de Mond nos aglomerados indicam que ela atenua o problema da matéria escura, mas não o resolve”, comenta o físico Reuven Opher, da Universidade de São Paulo (USP), que emprega essa abordagem no estudo de aglomerados de galáxias. “A diferença entre usar Mond e a gravitação newtoniana é que a quantidade de matéria escura que se infere existir é menor no primeiro caso.” Enquanto Milgrom tenta aperfeiçoar seu modelo, os físicos que acreditam na matéria escura planejam testes que revelem finalmente a natureza dessa enigmática porção do Universo. No artigo da Science, Ostriker e Steinhardt estimulam a busca de alternativas variadas: às vezes pistas importantes aparecem onde menos se espera.

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