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Geografia

O novo mapa de relevo paulista

Quem sai de Bauru em direção a Marília, na porção centro-oeste do Estado de São Paulo, dificilmente nota que está ganhando terras mais altas. As diferenças de relevo são discretas porque tanto as rodovias quanto as ferrovias ocupam os terrenos mais baixos, próximos aos rios. No entanto, quando a viagem começa ao norte, em Assis ou em Cafelândia, por exemplo, e segue o mesmo destino, ficam claros os desníveis que marcam a subida do Planalto de Marília, que se destaca em meio ao vasto e plano interior paulista. Essas terras altas não faziam parte dos mapas mais antigos do Estado, mas podem agora ser apreciadas com facilidade no novo mapa de relevo paulista, elaborado pelos geógrafos Jurandyr Luciano Sanches Ross e Isabel Cristina Moroz, da Universidade de São Paulo.

Publicado com apoio da FAPESP, que aprovou um financiamento de R$ 45 mil para os primeiros mil exemplares, o novo mapa de relevo — ou geomorfológico — do Estado foi elaborado com base em 26 imagens de radar do Projeto RadamBrasil, um programa que mapeou o território nacional nos anos 70 e 80. No entanto, os trechos correspondentes a São Paulo permaneciam inéditos. As fotos de radar — perfeitamente adequadas para este tipo de levantamento porque indicam, por meio de sombras, a rugosidade, a topografia, o tipo de solo e a formação geológica do terreno, cobrindo uma área de 111 km por 166 km — foram aplicadas sobre a base cartográfica do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), que forneceu a rede de cidades, os limites de cada município, as bacias hidrográficas e os traçados das ferrovias e rodovias. Os geógrafos da USP, auxiliados por um grupo de estagiários, produziram inicialmente um mapa na escala 1:250 mil (um centímetro do mapa corresponde a 2,5 quilômetros), embora a versão final se apresente na escala 1:500.000, para facilitar o manuseio.

Três divisões básicas
O primeiro efeito do novo mapa é a visão de conjunto, que permite identificar as diferenças regionais de relevo paulista. O Estado de São Paulo é formado, a partir do leste, por um faixa de terras mais altas, seguida por uma área rebaixada e aplanada, tradicionalmente conhecida como Depressão Periférica Paulista, e por um conjunto de terras mais ou menos uniformes, aplanadas e altas, que cobrem quase todo o interior do Estado. São divisões clássicas, que vigoram desde o início do século e se mantiveram praticamente inalteradas no novo mapa elaborado, embora esta versão valorize as informações sobre a formação geológica, pouco consideradas nas classificações anteriores, e apresente um detalhamento bem maior. Outra inovação é que o novo mapa ressalta o dinamismo do relevo. “O relevo é um processo que vai sendo construído, com modificações permanentes, em velocidades extremamente baixas, comparadas com nossa vida”, acentua o professor Jurandyr Ross. Ao elaborar o mapa, a equipe da USP adotou um critério de classificação próprio, inspirado em estudos iniciados nos anos 20 por geógrafos alemães, desenvolvidos nos anos 60 por especialistas russos e adaptados à realidade brasileira já na década de 80. O relevo é visto como o resultado da interação de forças simultâneas e descontínuas, provenientes da superfície ou das camadas internas da Terra, a exemplo da erosão, no primeiro caso, e dos terremotos e dos movimentos das placas tectônicas, no segundo.

De acordo com essa abordagem, o relevo é classificado a partir das unidades morfoestruturais, que são os componentes básicos da crosta terrestre, diretamente resultantes do movimento das placas tectônicas. A cada unidade morfoetrutural corresponde uma ou mais unidades morfoesculturais, áreas obviamente menores, diferenciadas pela ação do clima e da erosão. É como se um gigantesco bloco de mármore fosse dividido e trabalhado por diferentes artistas. Cada unidade morfoescultural é dividida em compartimentos ainda menores. Num artigo publicado em 1992 na Revista do Departamento de Geografia da USP, Jurandyr Ross mostra como aplicar esse modelo ao relevo brasileiro. Ele propõe seis táxons ou unidades de classificação. O primeiro é a morfoestrutura, o segundo a morfoescultura, assim por diante, até o sexto táxon, que corresponde às formas de relevo produzidas pelos atuais processos erosivos, de origem natural ou humana, a exemplo dos depósitos formados ao longo de cursos de rios. No caso do relevo paulista, a escala adotada permitiu usar apenas até o terceiro táxon, que especifica a rugosidade do terreno e as altitudes.

Detalhando as unidades
Com base nesse critério, o mapa destaca as unidades morfoestruturais em três famílias de cores — lilás, verde e amarelo. Cada cor apresenta diversos tons: os mais fortes indicam as áreas mais elevadas e os mais claros, as mais rebaixadas. O conjunto de lilás representa as terras altas, a leste; o verde abarca tanto a Depressão Periférica quanto os extensos planaltos do interior paulista; e o amarelo engloba planaltos mais discretos e planícies em meio às outras duas unidades maiores. Associando as cores aos conceitos, as terras representadas em lilás correspondem à unidade morfoestrutural chamada de Cinturão Orogênico do Atlântico — orogênico, por ser uma área alta e bastante antiga, sujeita a intensa e contínua erosão. A essa unidade corresponde uma única unidade morfoescultural, o Planalto Atlântico, com 12 subdivisões. Esta área apresenta altitudes que variam entre 800 e 2000 metros. Nos trechos mais baixos, as altitudes acomodam-se entre 700 e 800 metros, como no Planalto de Guapiara, ao Sul do Estado. No entanto, há milhões de anos, lembra Jurandyr Ross, essa cadeia de montanhas atingia mais de 3000 metros de altitude e avançava de Santa Catarina à Bahia.

As áreas representadas em verde no mapa correspondem à mais extensa das três divisões básicas do relevo paulista, a Bacia Sedimentar do Paraná, por sua vez dividida em dois grandes conjuntos de terras (ou unidades morfoesculturais). O primeiro é o Planalto Ocidental Paulista, a Oeste, que cobre praticamente metade do Estado, com seis unidades menores, com altitudes entre 300 e 1000 metros. O outro é a Depressão Periférica Paulista, com três compartimentos menores, sem grandes contrastes entre si, com altitudes entre 500 e 700 metros, e situadas entre as terras mais altas, em tons lilás, a Leste, e o Planalto Paulista, a Oeste. O Planalto de Marília, a propósito, é uma das subdivisões do Planalto Ocidental Paulista, com altitudes semelhantes ao Planalto de São Carlos e de Franca, ao Norte do Estado, que também passavam despercebidos nas antigas representações do relevo paulista.Vê-se, assim, que o novo mapa deu conta dos três compartimentos tradicionais do relevo do Estado. Resta, porém, de acordo com o critério adotado, a terceira unidade morfoestrutural, que são as Bacias Sedimentares Cenozóicas de Depressões Tectônicas, encravadas em meio às outras duas unidades de relevo e representadas em amarelo. São áreas proporcionalmente pequenas, constituídas por um planalto,duas depressões e sete planícies (cinco litorâneas e duas fluviais). No único planalto desta divisão, o Planalto de São Paulo, localiza-se a capital do Estado e a região metropolitana sobre terrenos com 700 a 800 metros de altitude média, cercados pelas áreas mais altas do Cinturão do Atlântico.

Riqueza de informações
Para as 31 unidades morfoesculturais, o mapa detalha as formas de relevo, com as modelagens, altimetrias e declividades, além dos solos e a formação geológica dominantes. A combinação destas informações forma um retrato apurado de cada trecho. Assim, por exemplo, o Planalto Residual de Marília (residual por ter sobrevivido à erosão que rebaixou a maior parte do Planalto Ocidental Paulista) é formado por colinas com topos aplanados, com altitudes entre 500 e 650 metros, 10 a 20% de declividade, latossolos vermelhos-escuros e predomínio de arenitos e argilitos entre as rochas do subsolo. O terceiro táxon especifica os padrões semelhantes de relevo, por sua vez classificados de acordo com duas categorias básicas. A primeira são as formas denudacionais ou erosivas, comuns nas áreas altas, representadas pela letra D, com informações sobre o tipo de modelado predominante, como convexo (c), aguçado (a), tabular (t) ou plano (p). A segunda são as formas de acumulação, depósitos de materiais retirados das rochas, que ocorrem normalmente em áreas baixas, e indicadas pela letra A, seguidas pelo detalhamento de sua origem, que pode ser fluvial (f), marinha (m) ou lacustre (pl). Formam-se, assim, códigos como Da, para representar uma área formada por denudação (erosão), com topos aguçado, ou Apm, no caso de um terreno formado por acumulação em uma planície marinha.

Para cada tipo de relevo é acrescentada a informação sobre o seu desgaste, apresentada em um quadro inspirado no RadamBrasil, que é a Matriz dos Índices de Dissecação do Relevo. Esse quadro associa a distância entre os canais de drenagem (córregos e rios), na horizontal, de 1 a 5, e a declividade das formas de relevo, na vertical, com uma graduação expressa por números de 1 a 5. Combinando os números, seriam definidas com o número 11, por exemplo, as terras do Oeste de São Paulo, com relevo plano e pouco dissecado, percorrido por canais de drenagem (córregos e rios) escassos e pouco profundos. A informação completa do terceiro táxon é um código que representa o padrão da forma, por exemplo, de um Da11 ou Da34. Uma mesma forma de relevo pode, evidentemente, ter diversos tipos de relevo. A unidade Planalto e Serra da Mantiqueira, uma das 12 partes do Planalto Atlântico, apresenta superfícies do tipo Da25, Da34 e Dc24, entre outros. Um quadro à parte, denominado Parâmetros de Fragilidade Potencial, combina as classificações anteriores e permite uma leitura detalhada do estado ou do potencial erosivo do terreno.

Geografia e História
Cruzando as informações do mapa, é possível entender a história do desenvolvimento econômico paulista. Fica claro, por exemplo, que Ribeirão Preto, a norte do Estado, apresenta relevo pouco desgastado, solo fértil (latossolo e terra roxa) e clima favorável, quente e chuvoso. É, portanto, uma área privilegiada, cujas características geográficas e geológicas explicam a pujança agrícola e industrial. Do mesmo modo, as áreas próximas a Campinas e Mogi Guaçu, na Depressão Periférica, caracterizam-se pelo relevo pouco desgastado, clima quente e úmido e manchas de solos férteis — uma soma de condições naturais que igualmente facilita o desenvolvimento econômico. Uma leitura atenta do mapa explica também porque o café não poderia mesmo consolidar-se ao redor de São José dos Campos e as outras cidades do médio Vale do Paraíba: os terrenos são ondulados e os solos são ácidos. Superada a fase do café, a região encontra na industrialização sua verdadeira vocação, neste caso beneficiada pelas condições geográficas, por constituir um corredor de terras mais baixas, entre serras, unindo as duas capitais mais importantes do Brasil, São Paulo e Rio de Janeiro. Mais um exemplo: ao redor de Registro, no Planalto do Ribeira, a Sul do Estado, acumulam-se os fatores desfavoráveis à agricultura: morros altos, relevo dissecado, solos ácidos e rasos ou misturados com rochas, sujeitos a chuvas intensas e geadas.

Com elevada fragilidade também se mostra o município de Iguape, constituído por areias, argilas e cascalhos e sujeito a inundações periódicas. Segundo Jurandyr Ross, seriam áreas mais adequadas à preservação ambiental. Vem daí outra utilidade desse trabalho feito pelos geógrafos: mais do que apenas clarear os desníveis do relevo e tranqüilizar os viajantes, o novo mapa de relevo elaborado pelos especialistas da USP pode ajudar a reavaliar a ocupação das terras paulistas. “Este é um documento que serve para nortear os investimentos públicos e o planejamento físico, econômico e ambiental do Estado”, comenta Jurandyr.

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