Imprimir PDF Republicar

Resenha

O personalismo negro de Guerreiro Ramos

Negro sou: A questão étnico-racial e o Brasil: Ensaios, artigos e outros textos (1949-73) | Muryatan S. Barbosa (org.) | Zahar | 320 páginas | R$ 74,90

“Sou negro, identifico como meu o corpo em que o meu eu está inserido, atribuo à sua cor a suscetibilidade de ser valorizada esteticamente e considero a minha condição étnica como um dos suportes do meu orgulho pessoal.” Esta afirmação de Guerreiro Ramos (1915-1982), presente no texto “O problema do negro na sociologia brasileira”, original de 1954, é destacada como epígrafe da coletânea Negro sou: A questão étnico-racial e o Brasil: Ensaios, artigos e outros textos (1949-73). A partir de tal autoidentificação e autoafirmação, ele construiu sua perspectiva sobre a questão étnico-racial em contexto nacional, olhando para “o negro desde dentro”. Essa é a tônica da antologia organizada pelo historiador Muryatan S. Barbosa, autor da tese de doutorado, também publicada em livro, sobre o personalismo negro de Guerreiro Ramos.

No emaranhado de temas, em fases específicas de sua vida, a preocupação com a questão étnico-racial ocupou parte das abordagens sociológicas, assaz diversificadas, de Guerreiro. Sua trajetória de vida, marcada pela inserção em múltiplos campos de atuação – o jornalismo, a política, o funcionalismo público e a academia –, resultou em produções de leituras sociológicas sobre saúde, mortalidade infantil, padrão de vida, desenvolvimento e modernização, sociologia da administração e das organizações. Acrescente-se aí a veia poética do autor, a exemplo do livro intitulado O drama de ser dois (1937), no qual se revela um homem “dilacerado pelas contradições interiores”, conforme o verso de seu poema “O canto da alegria triste”.

Em seu necessário recorte temático, Muryatan Barbosa agregou textos, entre inéditos e outros dispersos em publicações já esgotadas, que se articulam à luz de uma proposta que encontra eco num tipo de produção, hoje mais profícua, de intelectuais negras e negros que vêm consideravelmente contribuindo com o debate étnico-racial, sob pontos de vista de forte base crítica e denunciantes do racismo no país. A propósito, a crítica à colonialidade e à branquitude se constituiu como marcador presente na sociologia de Guerreiro Ramos, manifestada em textos que dialogaram com a pressuposição de uma “democracia racial” no Brasil e que propuseram uma sociologia autóctone descolonizadora, revelando, portanto, a atualidade de seus textos.

A apresentação do livro, assinada pelo organizador, contextualiza ações estigmatizantes de racismo sofrido por Guerreiro, taxado por seu inimigo político, Carlos Lacerda (1914-1977), nas páginas da Tribuna da Imprensa do Rio de Janeiro, de “malandro”, “preto racista”, “cafuzo racista” ou mesmo em sua ficha no Conselho de Segurança Nacional como “mulato metido a sociólogo”. Porém, Guerreiro é dimensionado como um intelectual reativo a tais estigmatizações. Ele próprio, a partir do processo de sua militância e do envolvimento no Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado por Abdias do Nascimento (1914-2011) em 1944, engajou-se na luta antirracista, buscando uma redefinição do “problema do negro” com base em “uma posição científica de caráter funcional, isto é, proporcionadora da autoconsciência ou do autodomínio da sociedade brasileira”. Em razão disso, concluiu que, “antes de estudar a situação do negro tal como é efetivamente vivida”, importa examinar criticamente a literatura de caráter histórico e socioantropológico, então produzida no e sobre o Brasil por autores nacionais e estrangeiros e denunciar sua alienação. Literatura essa que serve como “material ilustrativo do que há de problemático na condição do negro na sociedade brasileira”.

Negro sou é um título bem apropriado por dimensionar objetivamente o pensamento de Guerreiro. O marco temporal da publicação dos textos originais, de 1949 a 1973, apesar de uma lacuna entre 1958 e 1971, indica que a questão racial atravessou toda a vida desse intelectual, como preocupações teóricas e de militância – embora, assim como Guerreiro, não vejo teoria e militância como apartadas, tendo em vista que todo militante é um intelectual, num sentido sartreano do termo. O título é, por si, revelador de um modo de se fazer sociologia em “mangas de camisa”, isto é, uma “sociologia em ato”, aquela que se propõe interventora na realidade social, como elemento de transformação nos rumos do país rumo a uma modernização inclusiva.

Márcio Ferreira de Souza é professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia e autor do livro Guerreiro Ramos e o desenvolvimento nacional (Fino Traço, 2009).

Republicar