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Fisiologia

O peso através das gerações

Entre ratos, efeitos do consumo excessivo ou da falta de comida podem ser transmitidos para filhos e netos

Podcast: Maria Martha Bernardi

 
     
Experimentos com ratos feitos por pesquisadores de universidades de São Paulo reforçam a ideia de que o excesso de peso pode ser um fenômeno que transcende gerações – e não apenas porque os filhos tendem a herdar dos pais genes que favorecem o acúmulo de energia e os tornam predispostos à obesidade ou porque vivem em um ambiente com disponibilidade excessiva de comida. Alterações na oferta de alimento para as fêmeas um pouco antes ou durante a gravidez parecem aumentar, por mecanismos ainda pouco compreendidos, a probabilidade de que tenham filhos e até netos com sobrepeso.

Em uma série de testes, a bióloga Maria Martha Bernardi e sua equipe na Universidade Paulista (Unip) alimentaram algumas ratas no início da vida reprodutiva e outras já grávidas com uma dieta bastante calórica e aguardaram para ver o que acontecia com a primeira geração de filhotes e também com os filhos desses filhotes. Tanto os roedores que nasceram de mães superalimentadas quanto os da geração seguinte apresentaram mais predisposição a desenvolver sobrepeso.

A tendência de ganho excessivo de peso ocorreu mesmo quando os filhos e os netos dessas ratas foram alimentados apenas com a dieta padrão de laboratório. Segundo Martha, esses resultados indicam que o período em que o feto está se desenvolvendo no útero é crucial para definir a regulação do metabolismo do animal e, ao menos, o da geração seguinte.

Se essas mudanças aparecessem apenas na primeira geração, o mais natural seria imaginar que alterações hormonais provocadas pela dieta materna teriam afetado os filhotes. Como o efeito avança até a segunda geração, os pesquisadores suspeitam que a propensão a ganhar peso seja mantida por mecanismos epigenéticos: alterações no padrão de ativação e desligamento dos genes provocadas por fatores ambientais, como a dieta, e transmitidas às gerações seguintes. Essas mudanças no perfil de acionamento dos genes não alteram diretamente a sequência de “letras químicas” do DNA, apesar de serem herdadas através das gerações. Embora o grupo de Martha não tenha analisado o padrão de atividade dos genes, dados obtidos por cientistas mundo afora indicam que mudanças no perfil de ativação gênica sem alteração na sequência de DNA podem acontecer tanto em animais quanto em seres humanos.

Dieta que engorda
Curiosamente, não foi só a superalimentação materna durante a gestação que parece ter mexido com o perfil de ativação de seus genes e deixado filhos e netos com tendência a engordar. Em um dos experimentos, realizado em parceria com pesquisadores das universidades de São Paulo (USP), Federal do ABC (UFABC) e Santo Amaro (Unisa), 12 fêmeas de ratos receberam 40% menos comida do que o considerado normal para as roedoras prenhes, enquanto oito ratas do grupo de controle foram alimentadas com a dieta habitual de laboratório.

As fêmeas que passaram fome durante a gestação ganharam menos da metade do peso das ratas que puderam comer à vontade. Os filhotes das mães submetidas à restrição alimentar nasceram menores e continuaram mais magros durante algum tempo, ainda que recebessem a mesma quantidade de comida que os filhos das ratas que não passaram fome. Só na idade adulta a diferença desapareceu e os dois grupos de roedores alcançaram peso semelhante, embora os filhos das ratas famintas apresentassem uma proporção maior de gordura corporal – em especial, de uma forma de gordura que se acumula entre os órgãos (gordura visceral), associada a maior risco de problemas cardiovasculares.

046_Obesidade_02negreirosA diferença mais importante surgiu na segunda geração. Os netos de ratas que haviam comido pouco enquanto estavam prenhes nasceram menores, mas, depois de adultos, eram um pouco (de 10% a 15%) mais pesados que os netos das ratas alimentadas normalmente. Eles tinham mais gordura visceral e também sinais de inflamação no cérebro. Esse ganho extra de peso ocorreu mesmo com as fêmeas da primeira geração, portanto, mães desses animais, tendo sido alimentadas normalmente. É como se a privação de alimento experimentada pelas ratas da geração inicial provocasse uma reprogramação metabólica duradoura em seus descendentes, afirmam os pesquisadores em artigo publicado em maio de 2016 na revista Reproduction, Fertility and Development.

O trabalho da equipe paulista, nesse ponto, confirma pesquisas anteriores que já haviam encontrado uma associação entre episódios de fome na gravidez e o nascimento de filhos com propensão ao aumento de peso e aos problemas de saúde a ele associados. Embora não tenham identificado o mecanismo específico por trás desse efeito, Martha Bernardi e sua equipe suspeitam que compostos produzidos pelo organismo das mães da geração inicial, parcialmente privadas de comida na gestação, ativem genes que favorecem o rápido ganho de peso no filhote. Assim, os sinais químicos emitidos pelo corpo materno funcionariam como um alerta de que o ambiente é de escassez e que é preciso usar com máxima eficiência os recursos alimentares disponíveis. Essa sinalização recebida pelo organismo do filhote poderia fazer toda a diferença, representando a chance de crescer e sobreviver em um ambiente com privação de alimento. “Mas também pode levar à obesidade, caso a oferta de alimentos volte a se normalizar depois que ele nasce”, explica Martha.

Estudos realizados nas décadas anteriores mostraram uma situação muito parecida com a descrita acima entre os descendentes das mulheres que ficaram grávidas durante o chamado Hongerwinter (inverno da fome, em holandês), quando os exércitos nazistas que recuavam na Holanda diante do avanço dos Aliados cortaram boa parte do transporte de suprimentos para o país entre o fim de 1944 e o começo de 1945, no final da Segunda Grande Guerra. Tanto os filhos quanto os netos das sobreviventes do Hongerwinter apresentavam taxas de obesidade e problemas metabólicos acima do esperado para a população geral.

Inflamação no cérebro
Em outro estudo, Martha e seus colegas forneceram alimentação hipercalórica – uma mistura de ração padrão mais um suplemento líquido rico em diferentes tipos de gordura – para 10 ratas logo após o desmame, enquanto outro grupo de fêmeas recebeu a alimentação normal e serviu de controle. Conforme o esperado, as ratas submetidas à dieta hipercalórica quando bebês ficaram acima do peso, ainda que não obesas, ao chegar à puberdade. Efeitos semelhantes foram observados em suas filhas: eram ratas que, quando adultas, apresentaram sobrepeso e alterações metabólicas, como o acúmulo de gordura visceral, embora tenham sido tratadas apenas com uma dieta balanceada durante toda a vida. Também publicado na Reproduction, Fertility and Development, esse trabalho e outros estudos do grupo indicam que o sobrepeso foi o desencadeador de processos inflamatórios que afetaram o cérebro da mãe e da prole, de forma aparentemente duradoura.

Se parece estranho imaginar que o excesso de peso pode levar a uma inflamação cerebral, é preciso lembrar que as células de gordura não são meros depósitos de calorias. Os adipócitos, como são chamados, produzem uma grande variedade de substâncias, entre as quais moléculas desencadeadoras de inflamações, que chegam à corrente sanguínea e, a partir dela, ao hipotálamo, região do cérebro associada, entre outras funções, ao controle da fome.

Trabalhos do grupo da Unip ainda não publicados indicam ainda que essa inflamação pode atingir outras áreas cerebrais dos roedores. A hipótese dos pesquisadores é de que o processo inflamatório no órgão esteja ligado à reprogramação do organismo transmitida da mãe para os filhotes, incluindo aí alterações no controle do apetite que podem se manter durante a vida adulta.

046_Obesidade_252_03negreirosPara Alicia Kowaltowski, pesquisadora do Instituto de Química da USP que estuda a relação entre a dieta e os mecanismos de produção de energia das células, é bastante forte a possibilidade de que a tendência ao sobrepeso e à obesidade seja passada de uma geração para outra por meios que não envolvem a herança de genes favorecedores do ganho de peso. “A questão é saber quais são os mecanismos que estão por trás desses fenômenos”, conta a pesquisadora.

Entre tais mecanismos, um candidato que tem ganhado força são as transformações epigenéticas. O prefixo grego epi significa superior, e na palavra epigenética, cunhada nos anos 1940 pelo embriologista inglês Conrad Waddington, designa a área da biologia que estuda as modificações químicas motivadas pelo ambiente que levam à ativação ou inativação dos genes e alteram o funcionamento do organismo. Uma das modificações químicas mais comuns e simples sofrida pelos genes é a chamada metilação. Nela, um grupo metila, formado por um átomo de carbono e três de hidrogênio (CH3), acopla-se a um trecho de DNA, impedindo que ele seja lido pelo maquinário da célula. O resultado é o silenciamento daquela região. Estudos com dezenas de espécies de animais, plantas e fungos já mostraram que o perfil de metilação pode ser transmitido de uma geração para outra e afetar as características da prole.

Influência paterna
O papel das mães no sobrepeso dos filhos parece cada vez mais sólido. E quanto ao papel do pai? “Há alguns indícios de que a influência paterna também pode ocorrer, mas eles são menos claros”, diz Martha Bernardi. Por um lado, faz sentido que influências epigenéticas possam ser transmitidas pelo lado paterno – assim como outras células do organismo, os espermatozoides podem ser afetados por alterações no padrão de ativação dos genes produzidas por influência do ambiente. Se tais mudanças não forem totalmente eliminadas após o encontro entre as células sexuais masculinas e os óvulos, o novo indivíduo gerado pela fecundação poderia carregar parte da memória epigenética de seu pai.

Um estudo de 2015, feito por uma equipe da Universidade de Copenhague, na Dinamarca, e liderado por Romain Barrès, mostrou que esse cenário é plausível ao estudar os espermatozoides de 16 homens obesos e outros 10 com peso normal. No caso dos voluntários obesos, os padrões epigenéticos, como os de metilação, concentravam-se em genes ligados ao desenvolvimento do sistema nervoso, em especial os que são importantes para o controle do apetite (e, portanto, do peso), o que não ocorria com os homens magros.

Barrès e seus colegas fizeram outra comparação sugestiva entre as marcações epigenéticas dos espermatozoides dos obesos antes da cirurgia de redução de estômago e as desses mesmos participantes após a operação. Resultado: depois da cirurgia, o padrão epigenético das células lembrava o de homens com peso normal.

“O mais importante a respeito dessas descobertas é sugerir que tais modificações podem ocorrer em células germinativas, ou seja, os óvulos e espermatozoides, e ser transmitidas para gerações seguintes”, diz o médico Licio Augusto Velloso, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp), que estuda os mecanismos celulares e moleculares ligados à origem da obesidade e do diabetes. “Os estudos epigenéticos avançaram muito na última década e se espera que, num futuro não muito distante, o mapeamento de fatores ambientais e de seu impacto em diferentes aspectos da epigenética nos ajude a prevenir doenças importantes”, afirma Velloso.

Enxergar o excesso de peso pelo prisma epigenético pode trazer mais uma peça relevante para o quebra-cabeça da epidemia global de obesidade e de doenças metabólicas ligadas a ela. Historicamente associado à saúde e à fartura, o excesso de peso se tornou um problema de grandes proporções primeiro nos países ricos, mas hoje é cada vez mais comum em países mais pobres – a começar pelo Brasil, onde quase 60% da população adulta está acima do peso considerado saudável, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Muitos países em desenvolvimento passaram rapidamente de um contexto em que a desnutrição era um problema grave para outro em que a obesidade é muito mais preocupante.

Artigos científicos
JOAQUIM, A. O. et al. Maternal food restriction in rats of the F0 generation increases retroperitoneal fat, the number and size of adipocytes and induces periventricular astrogliosis in female F1 and male F2 generations. Reproduction, Fertility and Development. 31 mai. 2016.
JOAQUIM, A. O. et al. Transgenerational effects of a hypercaloric diet. Reproduction, Fertility and Development. 25 ago. 2015.

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