Os partidos organizam a vida política antes e depois das eleições e exercem um papel-chave na relação dos municípios com os estados e a União. As políticas públicas são decididas por meio de uma articulação que passa pelas assembleias legislativas e pelo Congresso, ou seja, pelos parlamentares. Os deputados, embora possam começar a carreira de forma localizada, progressivamente adotam uma estratégia de dispersar seus votos em uma determinada região, o que os obriga a atender a demandas de suas bases municipais e, ao mesmo tempo, a tentar ampliá-las. Ao contrário do que diz o senso comum, não há um jogo de “toma lá, dá cá”, e sim existe no Brasil um sofisticado mecanismo de conexão entre os diferentes níveis de poder.
Essas conclusões resultam da pesquisa Instituições políticas e gastos públicos: um estudo dos estados brasileiros, conduzida de 2009 a 2013, sob a liderança do cientista político George Avelino Filho, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV). Apoiado pela FAPESP na modalidade Projeto Temático, o trabalho, que procura elucidar determinadas características do funcionamento do sistema político no país, desdobra-se agora numa segunda etapa sob o título As instituições políticas subnacionais: um estudo comparativo dos estados brasileiros. “Foram feitos poucos estudos para entender como a política ocorre nos estados. Nossa intenção foi ampliar para a política no nível estadual o que já se sabe para o sistema político como um todo”, diz Avelino.
Segundo o pesquisador, há uma discussão na ciência política brasileira que gira em torno da fraqueza dos partidos, da possível existência de “distritos informais”, e de como isso se reflete na atuação dos parlamentares. Ao serem eleitos com votos concentrados em uma região, nos chamados “distritos informais”, os deputados privilegiariam políticas públicas mais fragmentadas. O fenômeno, conhecido como pork barrel, implica uma política de benefícios econômicos ou serviços concentrados em uma área circunscrita geograficamente.
O primeiro passo em seu estudo foi ampliar o olhar também para os municípios, uma vez que o federalismo brasileiro, diferentemente da maioria das federações no resto do mundo, envolve três níveis de governo. Desde a redemocratização e com mais força desde a Constituição de 1988, os prefeitos são responsáveis pela implementação de importantes políticas públicas, como as de saúde e educação. “Queremos entender o estado como um agregado de municípios e, mais que isso, também como locais de votação”, pondera Avelino. E, ao destrinchar o voto também no nível dos locais de votação, o estudo possibilitou a análise mais detalhada dos resultados eleitorais, aumentando a compreensão de como os deputados vêm sendo eleitos.
Um dos pesquisadores envolvidos, o economista Ciro Biderman, também professor da FGV, propôs a adaptação do índice G, um indicador que mede o grau de concentração geográfica dos setores produtivos, amplamente utilizado em trabalhos de economia regional, às campanhas dos deputados. Assim, pensando-se em uma eleição no Amapá, por exemplo, seria aritmeticamente esperado que um candidato obtivesse 60% dos seus votos em Macapá, já que essa é a proporção de eleitores da capital relativamente ao estado como um todo. Entretanto, se esse político adotar a estratégia de concentrar sua campanha em uma determinada região, pode-se esperar que os votos ali recebidos sejam proporcionalmente em número maior do que a distribuição percentual do eleitorado, elevando o indicador.
No estudo coordenado por Avelino o índice G foi aplicado inicialmente às eleições em São Paulo e depois estendido para todos os estados brasileiros, no período de 1996 a 2010. O que se descobriu foi que o perfil dos deputados eleitos tende a ser concentrado em termos municipais, mas algo disperso regionalmente. “Não é difícil entender por que isso acontece. O deputado precisa buscar apoio para além dos lugares onde é mais conhecido, precisa viajar, mas isso é caro e não pode ser aleatório. O maior cabo eleitoral são os prefeitos, e é na organização partidária que ele encontra maior eficiência para sua campanha”, diz Avelino. Assim, uma liderança local começa se elegendo em sua cidade natal, depois parte para expandir sua atuação regionalmente e, por último, por ter se tornado conhecido como parlamentar pode desconcentrar seus votos.
A desconcentração de votos, algo equivalente a uma “estadualização” da candidatura, faz parte de uma estratégia de diversificar os riscos e, em alguns casos, alçar voos maiores nas eleições majoritárias estaduais (Senado e governo), mas também pode representar o fim de uma carreira política. “Este é um momento de fragilização, ou seja, os candidatos saem de uma zona de conforto para a diversificação total dos ativos eleitorais, correndo o risco de não serem competitivos em nenhum lugar, o que aumenta muito a probabilidade de perderem a eleição”, explica Avelino.
Seu estudo comprovou que existe, de fato, uma articulação interpartidária entre prefeitos e deputados federais, e que esta opera dentro da lógica de uma busca de recursos federais para os governos locais e com obtenção posterior de dividendos eleitorais. Ao cruzar os dados das últimas eleições em um universo de 5.221 municípios com menos de 200 mil habitantes, os pesquisadores da FGV descobriram que os prefeitos são responsáveis por um acréscimo de cerca de 20% dos votos que são destinados, dois anos depois, para os candidatos de seu partido a deputado federal. Os primeiros precisam de recursos para governar, enquanto, uma vez eleitos, os parlamentares não terão vida longa sem apoio local para manter e expandir sua base eleitoral.
Partidos com alta capilaridade como o PMDB, que nas eleições de 2008 elegeu cerca de 1.200 prefeitos, no universo dos 5.221 municípios estudados, preservam sua força – e seu poder de barganha – nas eleições municipais. Os prefeitos peemedebistas têm sido os grandes cabos eleitorais nas disputas para o Congresso. “Queremos ver como as decisões de políticas públicas se relacionam com a questão político-partidária”, diz Biderman. Uma hipótese a ser testada é se a força dos eleitos, traduzida nos votos de prefeitos e deputados, traz dividendos concretos para as localidades. “As decisões das políticas públicas levam em consideração os votos, e por outro lado o tipo de voto é que vai definir a política pública a ser adotada”, diz.
Os dados da pesquisa indicam que a ligação é mais forte entre prefeitos e deputados federais do que entre prefeitos e deputados estaduais. Essa diferença pode ser explicada pela descentralização dos poderes político e administrativo que reforçou as transferências de programas e repasses constitucionais federais para os municípios.
A literatura da ciência política revela que a eleição de um presidente americano acaba por influenciar a votação de muitos congressistas do mesmo partido. Esse efeito, denominado de coattail (“pegar carona”, em tradução livre), ocorre de cima para baixo e em uma mesma disputa. Em outras palavras, um presidente bem avaliado tende a aumentar as chances dos candidatos a deputado federal de seu partido. Ao aplicar esse método para as eleições brasileiras, há duas décadas, o pesquisador americano Barry Ames verificou que a influência se dava de baixo para cima, isto é, ocorria um efeito coattail reverso. Ele justificou os resultados afirmando que havia no Brasil uma espécie de “distrito informal”.
A pesquisa de Avelino tomou emprestada a expressão coattail reverso, porém chegou a resultados diferentes. São os partidos, e não os deputados, que organizam o desempenho nas eleições nos estados, onde são eleitos todos os legisladores federais. “Por que será que o Congresso se empenhou tanto na queda da verticalização?”, indaga o pesquisador. A resposta é que os partidos têm se preocupado, desde a redemocratização, com a liberdade que têm de costurar apoios diferentes nos planos nacional e estadual como forma de aumentar suas chances nas eleições legislativas estaduais.
Em parceria com a Associação Brasileira de Ciência Política, os pesquisadores obtiveram acesso aos dados brutos do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Isso permitiu obter informações de uma eleição no nível de uma zona eleitoral. Em termos práticos, resultou da pesquisa a criação da plataforma Cepespdata, um software de consulta pública aos dados eleitorais (www.fgv.br/cepesp/cepespdata). De livre acesso, ela apresenta uma interface mais simplificada que a do TSE, facilitando a vida dos pesquisadores de qualquer instituição. Também com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística é possível agregar os votos no nível de uma micro ou mesorregião, isto é, conjuntos de municípios que identificam nichos mais articulados econômica e socialmente dentro de um estado.
A plataforma tem permitido aos pesquisadores fazer uma série de cruzamentos inéditos, alguns com resultados surpreendentes. Assim, estados como Rondônia, Paraná, Espírito Santo e São Paulo apresentaram níveis de concentração eleitoral acima do esperado na eleição de 2010, ao contrário de Sergipe, Rio Grande do Norte, Piauí, Acre e Amapá. Dos nove estados do Nordeste, apenas Ceará e Alagoas tiveram um nível de concentração de seus deputados federais maior do que aquele que seria esperando pela fragmentação partidária. Esses dados contradizem a visão popular de que as regiões mais pobres são dominadas por uma política mais tradicional, baseada em redutos eleitorais e concentração de votos – sepultando de vez a existência dos “currais eleitorais” no país.
Em outra vertente de investigação do projeto, os pesquisadores mapearam a formação dos secretariados de 14 estados no período de 1994 a 2010. O objetivo é explorar a diversidade dos estados brasileiros para entender melhor como essas coalizões são compostas e se é possível relacioná-las com a coalizão nacional.
Essas análises necessitam de uma observação local, e por isso os pesquisadores decidiram formar uma rede federativa de pesquisa, composta por cientistas políticos e outros especialistas com experiência em governos subnacionais. Os estudos prosseguirão no segundo projeto temático aprovado em continuidade ao primeiro, e a ideia é que essa rede cubra os 27 estados. Prevê-se realizar um estudo de caso para cada realidade estadual e alimentar o banco de dados do Cepespdata, de forma a permitir comparações entre os estados.
Os primeiros achados são promissores por revelar algo que foge do senso comum ou de ideias preconcebidas – e, em geral, negativas – sobre a política no Brasil. Mas, segundo os responsáveis pelo estudo, ainda há um longo caminho a percorrer. Avelino sugere reformas pontuais que visem fortalecer as siglas partidárias como mecanismos de representação, como o fim ou disciplina das coligações para as eleições legislativas e o fortalecimento da fidelidade partidária. “No primeiro caso, teríamos a redução do número de partidos, tornando a competição eleitoral mais compreensível para o eleitor. No segundo, aumentaríamos os custos de saída – mudanças – de partidos, o que incentivaria os políticos a investirem em seus partidos atuais. Não podemos esquecer que os partidos políticos continuam sendo o melhor meio de representação dos setores populares e de sua inclusão ao sistema político democrático. Se desejamos uma sociedade mais igualitária temos de reforçar esse importante mecanismo de inclusão”, conclui.
Projeto
Instituições políticas e gastos públicos: um estudo dos estados brasileiros (nº 2008/03595-7); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável George Avelino Filho (FGVSP); Financiamento R$ 293.504,60 (FAPESP).
Artigos científicos
AVELINO, G. et al. Articulações intrapartidárias e desempenho eleitoral no Brasil. Revista de Ciências Sociais. v. 55, n. 4, p. 987-1.013. 2012.
AVELINO, G. et al. A concentração eleitoral nas eleições paulistas: medidas e aplicações. Revista de Ciências Sociais. v. 54, n. 2, p. 319-47. 2011.