Imprimir PDF Republicar

Resenha

O povoamento das Américas

Admirável novo mundo: Uma história da ocupação humana nas Américas | Bernardo Esteves | Companhia das Letras | 504 páginas | R$ 104,90

Quem eram, como e quando chegaram os primeiros humanos no último continente a ser alcançado pelas grandes migrações, a América? Esse é o cerne do livro escrito pelo jornalista Bernardo Esteves, fruto de 10 anos de pesquisas a partir de literatura científica, entrevistas com pesquisadores e visitas a instituições científicas e sítios arqueológicos.

Entretanto, para além de tentar esclarecer quem eram os primeiros habitantes e as possíveis rotas de acesso, o livro tem por intuito historicizar como a academia constrói e legitima os dados científicos a partir do “escrutínio acadêmico” e como os avanços metodológicos revolucionaram a pesquisa arqueológica.

O autor mostra que, desde o século XIX, questões políticas tentam legitimar a importância do cenário da América do Norte em detrimento dos resultados apresentados por pesquisadores da América do Sul. Dessa forma, é possível atentar para uma competição no que tange à primazia dos sítios arqueológicos mais antigos, numa disputa acirrada dos norte-americanos com os sul-americanos.

É sempre bom lembrar que há quem teça críticas para a corrida desenfreada pela descoberta do sítio “mais antigo da América”, apontando que essas pesquisas acabam enviesando os debates e não tratando do ponto principal da questão: a compreensão dos modos de vida, das relações humanas e ambientais envolvidas na ocupação da América.

Os 22 capítulos que compõem a obra têm como início o cenário brasileiro ainda no século XIX, a partir de Lagoa Santa, com as primeiras descobertas do naturalista dinamarquês Peter Lund (1801-1880) que lançaram a hipótese da antiguidade do povoamento da América por meio de achados em Minas Gerais.

Mas se diferentes pesquisadores elaboraram hipóteses para o povoamento da América ao longo do tempo, foi a partir de 1949 que houve a grande inflexão pela acurácia científica. Naquele ano, foi criado o método de datação por carbono 14, que conferiu maior precisão às pesquisas arqueológicas realizadas no mundo.

A partir dos achados arqueológicos mais antigos datados pelo método do carbono 14, Esteves discute essas descobertas no Velho Mundo que fornecem informações sobre a dispersão humana em direção às Américas. Em seguida, o autor destaca dados das Américas do Norte e do Sul, especialmente do Brasil, como na serra da Capivara (PI) e no sítio Santa Elina (MT), indicando que a chegada dos humanos na América é muito mais antiga do que se pensava anteriormente.

Outros capítulos exploram os desdobramentos interdisciplinares dessa questão, especialmente na área de genética. O autor ressalta a importância do estudo do genoma humano antigo, que forneceu informações cruciais sobre os deslocamentos populacionais, preenchendo lacunas em que o registro arqueológico era escasso.

Com o avanço da pesquisa genética, o método tem sido amplamente utilizado para investigar as migrações que deram origem às populações americanas. O interesse crescente sobre o tema tem envolvido cada vez mais pesquisadores de diferentes formações acadêmicas e, por vezes, resultando em interpretações divergentes. Apesar disso, a interdisciplinaridade vem permitindo parcerias corroborativas e maior aprofundamento no conhecimento científico.

O livro aborda também as questões éticas da pesquisa arqueológica, especialmente em relação aos povos originários. Historicamente associada a contextos coloniais, a arqueologia frequentemente construiu seu conhecimento do passado humano sem consentimento das comunidades envolvidas. O autor demonstra que, no Brasil, embora possa haver dissonâncias específicas, de modo geral as relações entre acadêmicos e comunidades indígenas vêm sendo desenvolvidas no sentido de originar pesquisas mais colaborativas.

Admirável novo mundo é um livro denso, que reúne informações científicas bastante relevantes, com linguagem acessível ao grande público. Além disso, traz uma grande contribuição aos arqueólogos pela riqueza de detalhes e histórias que medeiam as grandes pesquisas e debates dos resultados. Esses bastidores não costumam ser conhecidos a partir da leitura de artigos científicos ou por aqueles que não acompanham todas as pesquisas no tema. Seguramente, a obra incitará novas interpretações à luz de outras pesquisas e autores para além dos contemplados em suas páginas.

Cláudia R. Plens é arqueóloga e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Republicar