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Jacques Marcovitch

O primeiro lugar do sistema cabe à educação

O professor Jacques Marcovitch é reitor da Universidade de São Paulo (USP) desde novembro de 1997. Antes, entre 1994 e 1997, foi pró-reitor de Cultura e Extensão Universitária. Com 35 unidades espalhadas pelo Estado e um posto avançado em Marabá, na Amazônia Paraense, a USP é uma das maiores universidades do Hemisfério Sul. Foi criada na década de 30. Mas algumas de suas unidades são bem mais antigas. A Faculdade de Direito, por exemplo, é de 1827. A Escola Politécnica, de 1893.

Marcovitch formou-se em Administração em 1968, na própria USP. Em 1972, obteveo mestrado na Graduate School of Management da Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos. O doutorado, em Administração, foi conseguido na USP, com uma tese sobre Eficácia Organizacional. Marcovitch fez o pós-doutoramento em 1978, no International Management Institute, de Genebra, na Suíça. Sua experiência inclui a diretoria da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA), de 1983 a 1986, e a do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, entre 1988 e 1993. Entre 1987 e 1995, foi coordenador do Núcleo de Política e Gestão Tecnológica da USP.

Suas atividades de ensino e pesquisa estão concentradas nas áreas de Gestão da Inovação, Gestão da Cooperação Internacional, Gestão Tecnológica e Estratégia Empresarial. Como professor, além de lecionar nos cursos de graduação e pós-graduação de Administração, participa de programas de especialização e em cursos de desenvolvimento gerencial.

Penso que este evento começa num ambiente de realização da comunidade científica. O projeto Genoma Xylella, amplamente divulgado, mostrou a vitalidade e a capacidade de articulação dessa comunidade, para obter resultados reconhecidos internacionalmente. Sem dúvida, sempre haverá preconceitos, por parte de alguns. Mas acho que temos a capacidade de conseguir resultados que se destacam em escala internacional.Não se pode subestimar o momento histórico pelo qual passa a humanidade. O ser humano passou da comunicação pelo gesto para a comunicação pela fala e começou a se comunicar pela palavra escrita há apenas 7 mil anos. Só 500 anos atrás teve origem a comunicação impressa. Foi há poucos anos que se iniciou o uso da digitalização como forma de armazenar, acessar e comunicar informações.

Cada uma dessas migrações trouxe grandes mudanças. A migração do escrito para o impresso levou a humanidade a duas grandes revoluções, uma científica, por volta de 1600, e uma tecnológica, por volta de 1800. Pode-se dizer que a era digital, na qual a humanidade está entrando, antecipa duas grandes revoluções, semelhantes às anteriores mas ainda mais intensas, porque muito provavelmente ocorrerão simultaneamente.Medindo as tendências, observamos que nos últimos 100 anos, o Brasil e o Estado de São Paulo se destacaram mundialmente com relação à sua evolução demográfica. A população mundial, nesse período, aumentou de 1,6 bilhão para 6 bilhões de habitantes. Portanto, cresceu em torno de 3,5 vezes. Já o Brasil, que passou de 17 milhões para 170 milhões de habitantes, aumentou dez vezes em termos demográficos. Esse aumento, sem qualquer discussão, provoca dores de crescimento, semelhantes às de um jovem adolescente que cresce de maneira muito rápida.

Assim, as dificuldades do Brasil não são as de uma estrutura que sofre as dores terminais. Pelo contrário, são dores de crescimento. São elas as que devemos equacionar e enfrentar. Esse crescimento, único em escala mundial, ocorreu de maneira simultânea com um processo de urbanização que também se deu no menor prazo conhecido em todo o mundo. Em apenas 30 anos, passamos de uma relação de 75% para 25%, na comparação entre as populações rural e urbana, para exatamente o inverso.

Mas, se os brasileiros nunca foram tantos e nunca estiveram tão próximos, nunca estiveram tão distantes, na distribuição da renda e na dualidade socioeconômica. A distância entre os níveis socioeconômicos está crescendo, cobrando os preços de violência e de criminalidade dos quais todos são testemunhas.

As rupturas tecnológicas fazem parte dessas tendências. Mas, felizmente, no Brasil, e este fórum é um exemplo disso, estrutura-se uma consciência na qual as gerações presentes preocupam-se com as gerações ainda não nascidas. A idéia de um fórum que olha para os próximos 25 anos, mas estende seu horizonte até o final do século, constitui um exemplo dessa preocupação.

A universidade, que recebe hoje jovens de 18 anos, que devem viver até 2070, sabe como é importante esta visão voltada para o futuro. Pois também há notícias positivas. A esperança de vida aumentou, a qualidade de vida melhorou, a interdependência entre os atores sociais se ampliou. Mas, infelizmente, uma economia criminosa está crescendo. Um fundamentalismo de tipo religioso se instala pelo mundo, com a erosão do papel do Estado, quando, na nossa sociedade, por ser fragmentada, o Estado precisa consolidar-se.

Quais são os impasses? A tecnologia está avançando mais que as habilidades humanas. O desenvolvimento sustentado precisa de uma visão a-médio e longo prazo. A instabilidade monetária de um lado e uma estrutura partidária que acaba privilegiando o curto prazo de outro tornam difícil qualquer equacionamento de um desenvolvimento sustentado. A competição, que é natural na economia de mercado, não é natural numa sociedade. Queremos uma economia de mercado, mas não uma sociedade de mercado. Não se pode substituir o ser pelo ter.

Por outro lado, do ponto de vista da comunicação, o Brasil sai de uma era na qual a informação era a comunicação libertada. Quem viveu o período da ditadura no Brasil sabe como a comunicação libertava. Mas hoje, como disse Ignacio Ramonet, editor de Le Monde Diplomatique, entramos numa era de tirania da comunicação. A comunicação, pelo excesso e pela falta de filtros qualitativos, está inibindo o poder criativo de adultos e jovens. Isso nos leva a entender a ciência e a tecnologia como integrantes de um sistema de inovação mais amplo, constituído em primeiro lugar pelo sistema educacional, do primário até a educação continuada.

O primário é o local básico que deve desmistificar, desde os primeiros dias de aula, os meios de comunicação que acabam por desenvolver um falso imaginário na mente das crianças, quer seja a televisão, quer seja o espaço virtual. O secundário deve familiarizar o jovem com a linguagem que o acompanhará ao longo da vida. O curso superior deve ser entendido como a primeira etapa da educação continuada, que acompanhará o ser humano ao longo de toda a sua vida.

O segundo componente desse sistema de inovação é o sistema de pesquisa, que inclui universidades, institutos, laboratórios de pesquisa e desenvolvimento das empresas e as agências de financiamento. O terceiro é o subsistema empresarial, de produção e prestação de serviços, constituído de dirigentes, capitalistas, acionistas, sindicalistas, organizações não-governamentais e associações de pequenas e médias empresas. Finalmente, existem os sistemas articulador e regulador, que são de responsabilidade do Estado.

Esses quatro componentes asseguram o surgimento do novo. Portanto, quando se fala em mais investimentos na área da ciência e tecnologia, isso significa mais recursos humanos e financeiros para todo o sistema de inovação, aquele que abre o novo para enfrentar novos desafios. Não quer dizer mais dinheiro para um ou outro componente, mas sim recursos para que esses quatro componentes possam assegurar uma relação mais harmoniosa, voltada para o futuro.

Mas o que resta a ser feito? Lembremos o Projeto Genoma. Ele envolveu 196 cientistas, dos quais 172 eram de universidades públicas em geral e 144 eram das universidades públicas do Estado de São Paulo. Desses, 76 eram de minha universidade, a USP. Eles contribuíram para que o Brasil desse esse salto para o futuro.

As universidades públicas ajudaram a formar novas gerações e colaboraram para o avanço do conhecimento. Na USP, a universidade que melhor conheço, isso não ocorreu apenas na capital. Aconteceu na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, em Piracicaba; aconteceu na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto; ocorreu em Bauru, em São Carlos, em cada canto do estado onde as universidades estão instaladas.

As universidades públicas contribuíram também com suas atividades de extensão. Desde 1911, os alunos da Faculdade de Direito, do Centro XI de Agosto, prestam assistência jurídica gratuita aos excluídos. Outros exemplos importantes são a Estação Ciência e o Projeto Avizinhar, que aproxima as universidades das comunidades de excluídos em sua volta. As universidades também ajudaram a preservar e consolidar uma identidade nacional. O Museu Paulista, cujo patrimônio a Universidade de São Paulo tem o privilégio de zelar, é um exemplo de como os historiadores e os museólogos estão dedicados à preservação da identidade nacional.

Finalmente, não menos importante, a USP se debruçou sobre os temas das políticas públicas, saúde, educação, meio ambiente, violência, emprego. Colocou fora da universidade o que cada um de seus 4. 700 professores e 25 mil alunos de pós-graduação fizeram sobre esses temas. Mas isso não chega. É preciso fazer mais, é preciso ajudar a abrir um espaço de reflexão estrutural, baseado na prospectiva. Nas palavras de Antônio Cândido, as universidades fizeram muito, mas ainda não fizeram o suficiente.

As Humanidades têm o papel determinante de construir essas visões do futuro, centradas no ser humano, como epicentro da sociedade moderna. Não se trata mais de ciência e tecnologia no sentido restrito. Mas de filósofos, antropólogos, psicólogos, sociólogos que se debruçam para entender como o ser humano se insere numa sociedade onde o material e o tecnológico passaram a constituir o centro das atenções.

As Letras têm a missão de transformar visões e linguagens, de forma que sejam capazes de arquitetar novas mentalidades que possam conciliar valores humanos e o sistema econômico e político. Esses valores devem promover a cultura do respeito humano, apesar das diferenças. Devem ser valores de solidariedade e de universalismo, buscando um sistema econômico que induza a eficácia e a complementaridade nas cadeias setoriais, assegurando a competição de mercado, mas sem nunca inibir a cooperação entre os agentes econômicos.

Deve buscar-se também um sistema político que assegure o pluralismo de idéias, mas com o imprescindível consenso duradouro, que permita a implantação de projetas ousados de políticas públicas. Já houve, no passado, clássicos da literatura que influiram no imaginário da juventude. Cada um desses clássicos tem seu papel. Como leitura obrigatória nas escolas, eles mostram muito bem como as letras dão sua contribuição para a arquitetura das mentalidades.

É preciso também fazer mais no avanço do conhecimento, e isso quer dizer a pesquisa. Ela deve constituir a base do inconformismo com o qual se lida com as incertezas. Não se pode imaginar a pesquisa isolada do ensino. O pesquisador que ensina leva para a sala de aula o inconformismo e a incerteza que conduzem o jovem a perceber, no conhecimento incompleto, a forma de lidar com o desconhecido.

Um jovem que está hoje nos bancos da universidade e deverá enfrentar os desafios de 2030 e 2040, longe de receber um quadro profissionalizante acabado, precisa desenvolver em si mesmo a capacidade de lidar com o incerto, por meio do inconformismo. Isso se aplica desde a pesquisa nas áreas exatas e biomédicas até a que ocorre nos setores mais aplicados da engenharia.

É preciso fazer mais na formação de recursos humanos. Isso significa uma graduação que deve ser ampliada, mas sempre tendo uma referência qualitativa favorável à estruturação dos projetos de vida dos jovens; uma pós-graduação que forme não só pesquisadores, mas prepare os quadros docentes necessários à expansão do ensino superior, público e privado; e uma educação continuada formada de maneira a dar a todos um espaço acessível, no qual possam atualizar-se constantemente.

Quanto à Assembléia Legislativa, que vem dando toda a consideração às universidades públicas, peço que continue a entender o ciclo longo das instituições universitárias e sua necessidade de previsibilidade de recursos e de autonomia, com rigorosa avaliação. As universidades públicas querem ser cobradas, mas é preciso entender que seus ciclos de tempo são diferentes. Teses podem levar dez ou 15 anos para serem concluídas. Um ciclo de formação, em algumas áreas, leva mais de dez anos.

As universidades precisam de previsibilidade e autonomia. Uma forma de sedimentar a previsibilidade seria constitucionalizar a quota parte das universidades. Hoje, nos recursos das universidades, estão embutidas, por exemplo, despesas com hospitais e com a previdência. A sociedade tem uma falsa percepção dos investimentos que estão sendo realizados.

É necessário também cada vez mais promover estudos estratégicos, usando as metodologias disponíveis. Por exemplo, olhar para o século 21 e ter dados razoavelmente sólidos sobre demografia, urbanização, dualidade socioeconômica e tecnologia, para que a sociedade possa ser mais responsável com relação ao futuro.

As universidades públicas do Estado de São Paulo estão prontas para empreender esse trabalho, visando à alimentação das decisões a serem tomadas sobre as políticas públicas. Este espaço, aberto na Assembléia Legislativa, destinado a articular os atores sociais para pensar sobre o futuro, deve ser multiplicado.

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