O biólogo Ronaldo Christofoletti não estava acostumado a dar entrevistas em frente a câmeras de TV, mas isso foi antes de ele convidar moradores da Baixada Santista, no litoral paulista, para serem seus parceiros de pesquisa. “A imprensa local queria entender o que estávamos fazendo e como era possível indivíduos sem experiência em trabalhos de campo produzir conhecimento científico”, conta o docente do Instituto do Mar da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Em 2019, ele e sua equipe recrutaram 51 pessoas para ajudar em um mapeamento da distribuição de espécies marinhas em costões rochosos. O grupo era bastante diverso: alunos de graduação, profissionais com formação em geografia e biologia, professores primários, aposentados, técnicos ambientais, engenheiros e jornalistas, que se cadastraram como voluntários pela internet. Munidos de quadrículas – pequenos quadrados de metal usados para isolar e medir o tamanho de plantas e animais no solo –, formulários e máquinas fotográficas, eles percorriam diferentes pontos da ilha Urubuqueçaba, próxima à orla da praia, em Santos, anotando os organismos que encontravam pelo caminho. Os dados eram entregues depois aos responsáveis pela pesquisa, que os comparavam com registros de cientistas profissionais para avaliar a precisão dos resultados dos participantes.
O projeto coordenado por Christofoletti busca estudar e fomentar um movimento conhecido como ciência cidadã, que tem como objetivo envolver indivíduos sem experiência científica na produção de conhecimento e criar metodologias que permitam essa interação. A prática ainda enfrenta desafios para se consolidar, mas vem ganhando cada vez mais espaço no Brasil. Várias iniciativas desse tipo surgiram nos últimos anos, permitindo que amadores se envolvam em levantamentos sobre padrões ecológicos de espécies, propagação de vetores de doenças, monitoramento da qualidade do ar em grandes cidades, registros de meteoros, entre outras atividades de pesquisa.
O modelo também despertou a atenção de agências de fomento e algumas das principais instituições de ensino e pesquisa do país. Em fins de 2019, a Universidade de São Paulo (USP) lançou um edital com o Banco Santander no valor de R$ 180 mil para apoiar projetos baseados nessa abordagem; oito foram selecionados. Um deles, coordenado pela bióloga Sheina Koffler, que faz estágio de pós-doutorado no Instituto de Estudos Avançados da USP, conta com a ajuda de criadores de abelhas-sem-ferrão para determinar as áreas de ocorrência de um ácaro (Leptus sp.) que as parasita e, assim, avaliar seu impacto na conservação desses insetos polinizadores. Mais recentemente, em agosto de 2022, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) anunciou uma chamada de R$ 3 milhões para iniciativas de ciência cidadã no âmbito de programas de oceanografia e estudos sobre a Antártica, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI).
O esforço ocorre em vários países. As agências de proteção ambiental dos Estados Unidos e da Escócia, por exemplo, já incorporam a ciência cidadã em alguns de seus projetos, ao passo que o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) explora formas de usar o modelo no monitoramento de indicadores dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) ligados ao meio ambiente. “É impossível acompanhar o progresso global dessas metas com base apenas em fontes de dados tradicionais”, escreveu Jillian Campbell, especialista em estatística do Pnuma, em estudo publicado em 2019 na Nature Sustainability. Dados gerados por pessoas sem experiência em pesquisa podem ajudar nesse sentido, segundo artigo divulgado em 2020 na revista Sustainability Science que registrou as contribuições da ciência cidadã no acompanhamento de indicadores dos ODS.
A Comissão Europeia também apostou em projetos dessa natureza por meio de seu programa de pesquisa e inovação Horizonte 2020. Pelo menos 25 iniciativas apoiadas nos últimos anos pelo programa Science with and for Society receberam € 65 milhões.
O termo “ciência cidadã” começou a ser usado no início da década de 1990, mas seu significado contempla uma prática bem mais antiga. Existem diversos registros na história sobre a contribuição de amadores na produção de conhecimento em áreas como astronomia, botânica, geologia, entre outras. “Nem sempre houve uma distinção formal entre quem poderia ou não fazer ciência”, esclarece a socióloga Sarita Albagli, do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict). Isso só mudou no século XIX, com a profissionalização da pesquisa, consolidada como uma atividade exercida por um seleto grupo de indivíduos especificamente treinados para gerar conhecimento objetivo. Essa visão começou a ser revista nos anos 1960, a partir de questionamentos sobre a imagem da ciência como uma atividade neutra e que persegue a verdade não importem as consequências. “Aos poucos, ela passou a ser compreendida como uma atividade socialmente construída”, diz Albagli. Paralelamente, nos anos 1980, as discussões sobre a chamada expertise leiga ganharam força, alavancando a noção de que pessoas sem formação científica formal também detêm conhecimentos válidos, adquiridos a partir de suas experiências, e que esses podem ser úteis.
Um dos principais benefícios da colaboração da sociedade em pesquisas é a produção de informações que talvez não pudessem ser geradas de outra maneira, em parte porque as iniciativas de ciência cidadã têm potencial para mobilizar voluntários na coleta de grandes volumes de dados durante longos períodos e em áreas extensas. O envolvimento de pessoas não especializadas também pode inspirar novas abordagens, permitindo que os cientistas investiguem questões ou problemas específicos da realidade dos participantes, produzindo resultados com impactos diretos e imediatos na vida deles. Essa abordagem ajudaria, inclusive, a aprimorar o processo de avaliação de artigos científicos em algumas áreas. Alguns periódicos têm convidado pacientes e seus cuidadores a cooperar com a análise de papers sobre os problemas de saúde que enfrentam, de modo a complementar o escrutínio feito por especialistas (ver Pesquisa FAPESP nº 270).
Essa forma de interação tem ainda outras ambições. Em muitos casos, as iniciativas se dão no sentido de promover o letramento científico e formar futuros pesquisadores. “Em tempos de negacionismo científico, projetos de ciência cidadã ajudam a combater a desinformação, despertar o pensamento crítico e aumentar a confiança da sociedade na ciência”, comenta a ecóloga Blandina Felipe Viana, do Instituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), cofundadora do Guardiões da Chapada. Esse projeto foi criado no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares em Ecologia e Evolução (INCT IN-Tree) e reúne voluntários no monitoramento das interações entre plantas e seus polinizadores em ambientes naturais, urbanos e agrícolas por meio de registros fotográficos compartilhados em aplicativo e na plataforma digital Guardiões da Biodiversidade.
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Algumas experiências indicam que as atividades de ciência cidadã podem produzir dados para tomada de decisão e criação de políticas públicas. No Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), o trabalho conjunto de cientistas da informação, geólogos, meteorologistas e estudantes do ensino médio de diferentes regiões do país resultou em um aplicativo que informa com antecedência o risco de inundações, alagamentos e enxurradas em áreas vulneráveis.
A ideia da ferramenta nasceu de um projeto mais antigo, o Cemaden Educação, lançado em 2014 em escolas dos municípios paulistas de São Luiz do Paraitinga e Cunha, no Vale do Paraíba, e de Ubatuba, no litoral, com o propósito de disseminar a cultura de pesquisa e a educação ambiental entre os estudantes – e, a partir disso, engajá-los no trabalho de verificação do risco de desastres, sobretudo aqueles provocados pelo excesso de chuva. “Queríamos transformá-los em jovens pesquisadores, capazes de coletar dados e usá-los no monitoramento de tragédias nas regiões em que viviam”, diz o sociólogo Victor Marchezini, um dos coordenadores da iniciativa.
O projeto se dividiu em três etapas. Os alunos primeiro participavam de um treinamento em que aprendiam a coletar dados históricos e a realizar entrevistas com antigos moradores de suas cidades sobre casos passados de desastres e mudanças socioambientais. Eles então usavam essas informações para elaborar mapas das áreas de maior risco e identificar rotas de evacuação para o caso de uma emergência. Em seguida, meteorologistas do Cemaden os ensinavam a transformar garrafas PET em pluviômetros artesanais e a usá-los para medir a quantidade de chuvas. Com base nesses dados, os estudantes construíram uma tabela de monitoramento, com séries históricas sobre o volume de chuvas em diferentes períodos do ano.
A iniciativa chamou a atenção de outras instituições, interessadas em desdobrá-la em novos projetos. Um deles foi o Dados à Prova D’Água, desenvolvido em colaboração com a Fundação Getulio Vargas (FGV), em São Paulo, e as universidades de Glasgow e Warwick, no Reino Unido, e Heidelberg, na Alemanha. A ideia era construir um aplicativo no qual estudantes pudessem compartilhar dados sobre áreas alagadas, intensidade de chuva e altura da água no leito de rios, além de informações sobre áreas de risco. “Usamos os roteiros das atividades desenvolvidas antes para treinar novos alunos e ensiná-los a construir pluviômetros artesanais”, comenta Marchezini. “Eles então ficavam responsáveis por verificar todos os dias a quantidade de chuva medida e inserir os dados no aplicativo.”
A estratégia foi testada nas cidades de São Paulo e Rio Branco, no Acre, e, mais tarde, em municípios de Pernambuco, Santa Catarina e Mato Grosso, obtendo bons resultados. Em Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana de Recife, moradores de alguns bairros que participaram do piloto do aplicativo continuaram usando a ferramenta após a conclusão dos testes. Em maio, um deles a usou para alertar o registro de um volume de chuva acima do esperado para a época na região em que morava, desencadeando uma mobilização que levou à evacuação da área de risco.
Outras iniciativas de ciência cidadã se somam à do Cemaden. Uma delas é a Exoss Citizen Science, criada em 2015 por astrônomos profissionais e amadores interessados no estudo de meteoros. “A observação amadora de objetos celestes é antiga, mas se popularizou com o barateamento das câmeras de vigilância, as quais são facilmente adaptadas para essa finalidade”, explica o astrônomo Marcelo De Cicco, do Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) e coordenador do projeto. “Eu e alguns colegas decidimos então usar as redes sociais para ensinar outros interessados a monitorar esses fenômenos, compartilhando tutoriais sobre como adaptar esses equipamentos e instalá-los.”
Foi assim que Adriano Fonseca, de 44 anos, ficou sabendo da iniciativa. Ele entrou em contato com De Cicco manifestando seu interesse em montar uma estação de monitoramento em sua casa, em Sorocaba, em meados de 2020, após ver uma publicação do grupo no Facebook. Formado em engenharia de automação, Fonseca é um aficionado por astronomia, alguém que investe em telescópios e câmeras fotográficas para fazer registros da Via Láctea. “Queria me aproximar de físicos e astrônomos para aprender mais sobre como eles acompanham esses objetos celestes e calculam sua órbita”, ele conta.
O projeto se transformou em uma grande rede de observadores, com mais de 50 câmeras ativas espalhadas pelo país – cinco delas no telhado da casa de Fonseca. Os voluntários se comprometem a mantê-las apontadas para o céu e a ligá-las todos os dias no final da tarde para que possam registrar movimentações rápidas à noite. Os dados são armazenados, pré-analisados por um software e enviados para um servidor. “As câmeras são instaladas de modo que uma complemente o campo visual da outra, permitindo-nos triangular as imagens e calcular a origem dos meteoros, sua velocidade e órbitas”, esclarece De Cicco. Graças à participação dos voluntários, a rede conseguiu registrar várias explosões de bolas de fogo e chuvas de meteoro pelos céus do país. Muitos desses registros foram apresentados em congressos nacionais e internacionais, auxiliando também o trabalho de pesquisadores de instituições tradicionais, como o Observatório Nacional, no Rio de Janeiro.
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A maioria dos projetos, no entanto, está ligada ao meio ambiente, área em que a ciência cidadã mais prosperou no Brasil, sobretudo a partir de 2017, com a criação da Rede SiBBr, lançada pelo Sistema de Informação sobre a Biodiversidade Brasileira, do governo federal, com o objetivo de reunir e divulgar iniciativas colaborativas sobre biodiversidade. Desde sua criação, mais de 40 projetos foram cadastrados na plataforma. A dinâmica mais comum nesses casos é o de registro de espécies por “observadores cidadãos”. Essa estratégia desperta o interesse de pesquisadores porque permite mobilizar indivíduos na coleta de dados em áreas extensas e desenvolver estudos abrangentes sobre a área de ocorrência ou o tamanho da população de determinadas espécies.
O caso do projeto “Eu vi um macaco no mato” ilustra essa vocação. Seu objetivo era fazer o monitoramento de primatas na região de Santa Teresa, no Espírito Santo, uma das mais impactadas pela epidemia de febre amarela entre 2016 e 2018. “Várias espécies foram afetadas pela doença; algumas chegaram a ser extintas localmente”, comenta a médica veterinária Andresa Guimarães, do Instituto Nacional da Mata Atlântica (Inma), organização vinculada ao MCTI, que coordena a iniciativa. A chegada da pandemia, em 2020, criou entraves ao projeto, mas ela e sua equipe tiveram a ideia de convidar moradores locais para ajudar no monitoramento dos animais. “Pedimos a eles que nos enviassem fotos, vídeos e áudios de primatas sempre que os avistassem, informando o tamanho do bando, o número de filhotes, se havia algum machucado e o local em que foram vistos”, diz a pesquisadora.
Deu certo. “Atraímos voluntários de todo o estado, de tal modo que conseguimos obter registros de todas as espécies de primatas de que se tem notícia no Espírito Santo”, destaca Guimarães. “Não teríamos conseguido cobrir uma área tão grande sem a participação da população.” Essa massa de informações indicou o retorno de espécies que haviam desaparecido por conta da epidemia de febre amarela. “Eles estão conseguindo voltar e repovoar essas regiões.”
Casos como esse indicam que a ciência cidadã tem grande potencial para produzir dados úteis para a avaliação do status da biodiversidade, ajudando a preencher importantes lacunas de informação. Um artigo publicado em julho na revista BioScience estima que até 50% dos estudos sobre aves migratórias e mudanças climáticas produzidos nas últimas cinco décadas tenham usado dados coletados por voluntários.
No Brasil, iniciativas relevantes também surgiram na área de vigilância em saúde. Duas delas, desenvolvidas pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), envolvem o uso de aplicativos, nos quais o público pode inserir dados que ajudem a identificar focos de leishmaniose e do mosquito Aedes aegypti, transmissor dos vírus causadores de zika, dengue, chikungunya e febre amarela.
A estratégia, no entanto, com frequência encontra dificuldades para manter os voluntários mobilizados. “Muitos nos mandam vários registros no início, mas depois de um tempo eles se tornam cada vez menos frequentes até que uma hora param de chegar”, diz Guimarães. A bióloga Natália Pirani Ghilardi-Lopes, coordenadora do Grupo de Pesquisa em Ciência Cidadã da Universidade Federal do ABC (UFABC), em São Paulo, explica que o compromisso dos participantes costuma variar de acordo com suas expectativas e motivações. “Projetos desenvolvidos desde o início pelos cientistas e o público, e lastreados em problemas locais ou questões de amplo interesse social, costumam resultar em um maior engajamento em comparação a iniciativas baseadas apenas no interesse dos cientistas em acelerar ou ampliar a coleta de dados”, diz Ghilardi-Lopes, uma das fundadoras da Rede Brasileira de Ciência Cidadã, lançada em 2021. Ela reconhece que nem sempre é fácil envolver o público em todas as etapas das pesquisas, sobretudo porque alguns temas exigem conhecimentos ou treinamentos muito específicos.
Garantir que os participantes dediquem parte de seu tempo às pesquisas para as quais se voluntariaram não é o único desafio. Nos Estados Unidos, uma dificuldade é ampliar o alcance das iniciativas. O mesmo estudo publicado em julho na BioScience verificou que 77% dos 3.894 voluntários entrevistados participavam de vários projetos de ciência cidadã ao mesmo tempo, o que indica uma concentração em um pequeno grupo de indivíduos já interessados. O perfil deles também era pouco diverso. Muitos tinham formação em nível de pós-graduação e trabalhavam nas áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática (Stem) e menos de 5% se identificaram como negros, asiáticos, nativos ou latino-americanos. “A ciência cidadã não está atingindo segmentos do público que esperávamos alcançar”, disse à revista Cosmos a ecologista Caren Cooper, da Universidade Estadual da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, uma das autoras do trabalho.
No Brasil, há certa resistência em aceitar a legitimidade do modelo. “De modo geral, nossos pesquisadores reconhecem seu potencial na produção de dados úteis”, destaca Blandina Viana, da UFBA, que analisou a percepção de cientistas de diferentes países da América Latina sobre essa abordagem em estudo publicado em 2020 na Neotropical Entomology. “Ainda assim, poucos participam ou coordenam projetos dessa natureza, talvez porque se dediquem a áreas muito específicas, nas quais a contribuição de voluntários não seja considerada necessária ou viável”, diz a ecóloga. Outra explicação possível, segundo Viana, é que muitos colegas ainda resistem em trabalhar com indivíduos sem formação científica formal por desconfiarem da qualidade das informações coletadas.
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Trabalhos divulgados nos últimos anos têm chamado a atenção para problemas envolvendo dados produzidos por cientistas cidadãos, como desvios na aplicação de protocolos e vieses no registro ou na escolha dos locais de amostragem. Há também casos de má conduta dos participantes. “Em geral, os voluntários fazem um bom trabalho. As principais variáveis são a complexidade da tarefa e o nível de treinamento que eles recebem antes de colocarem a mão na massa”, diz Ghilardi-Lopes. No entanto, ainda existem pesquisadores que investem em projetos sem oferecer aos amadores treinamento adequado em gerenciamento de dados ou integridade, o que pode comprometer a capacidade dos indivíduos de coletar, registrar e gerenciar corretamente essas informações, afetando a qualidade do estudo como um todo. Esse problema ficou evidente em um artigo publicado em 2022 pela bióloga brasileira Larissa Kawabe sobre o uso de estratégias de ciência cidadã em levantamentos sobre a dispersão de lixo marinho no mundo. Poucos trabalhos reportavam questões relacionadas às estratégias de recrutamento, preparação e avaliação dos participantes.
A bioantropóloga Mercedes Okumura, do Instituto de Biociências da USP, lembra que mesmo os alunos de graduação não sabem fazer ciência no início de sua formação. “Eles aprendem conosco, nos laboratórios, por meio de estágios e projetos de pesquisa. Ou seja, a princípio, não teria tanta diferença assim entre eles e os indivíduos engajados em uma iniciativa de ciência cidadã. Ambos precisam de treinamento adequado”, ela diz.
Alguns grupos têm se dedicado ao desenvolvimento, aplicação e avaliação de protocolos que orientem o trabalho antes e durante a coleta dos dados. No estudo na ilha Urubuqueçaba, em Santos, Ronaldo Christofoletti e sua equipe promoveram oficinas preparatórias, desenhadas para orientar os participantes sobre aspectos técnicos do monitoramento de espécies em costões rochosos e estimular sua consciência ambiental. “No início, pedimos para que eles compartilhassem suas expectativas em relação à nossa proposta e destacassem suas habilidades e conhecimentos que poderiam ser úteis”, explica o biólogo. Em seguida, os voluntários aprendiam como a ciência é feita e qual sua relação com a cidadania e a tomada de decisão. “Só então eles entravam em contato com o protocolo de monitoramento e iam a campo”, diz Christofoletti. A capacitação, segundo afirma, teve um impacto positivo no desempenho dos colaboradores, que produziram dados com qualidade equivalente aos de especialistas. “Nosso estudo indica que, se bem treinados, eles podem contribuir com dados cientificamente sólidos.”
Mas ainda há outras questões em aberto. Em muitas situações, o envolvimento do público em projetos de ciência cidadã se restringe apenas à coleta de dados, e estes acabam se convertendo em um saber útil apenas aos pesquisadores, quando o ideal seria que também pudessem ser apropriados pelos voluntários. Outra discussão importante diz respeito à propriedade intelectual das informações produzidas. “Há casos de pesquisadores que se aproximam de comunidades e exploram seus dados e conhecimentos sem depois lhes dar nenhum retorno em termos de formação, resultados ou crédito por suas contribuições”, comenta Christofoletti. “Em geral”, ele explica, “a participação dos voluntários costuma constar apenas nos agradecimentos dos papers, já que, na maioria dos projetos, eles colaboram exclusivamente com a coleta de dados, mas é importante que isso seja discutido abertamente com todos os participantes da pesquisa”, comenta o pesquisador.
Projetos
1. Métodos de pesquisa multidisciplinar em cenários de riscos e desastres: Subsídios à formulação de sistemas de alerta centrados nas pessoas e nas multiameaças (nº 18/06093-4); Modalidade Bolsa de Pesquisa no Exterior; Pesquisador responsável Victor Marchezini (Cemaden); Investimento R$ 231.701,10.
2. Tornando visíveis os fluxos de dados e possibilitando sua transformação em dados à prova d’água (nº 19/06595-2); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisadora responsável Maria Alexandra Viegas Cortez da Cunha (FGV); Beneficiário Mário Henrique da Mata Martins; Investimento R$ 309.585,25.
3. Dados à prova d’água – Engajando stakeholders na governança sustentável de riscos de inundação para resiliência urbana (nº 19/06616-0); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisadora responsável Maria Alexandra Viegas Cortez da Cunha (FGV); Beneficiária Fernanda Lima e Silva; Investimento R$ 308.996,03.
4. Coastal biodiversity and public policies: Methodologies and actions to integrate stakeholders (nº 17/50220-8); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Pesquisa em Políticas Públicas; Pesquisador responsável Ronaldo Adriano Christofoletti (Unifesp); Investimento R$ 165.242,24 (FAPESP).
Artigos científicos
MARCHEZINI, V. et al. Flood risk governance in Brazil and the UK: Facilitating knowledge exchange through research gaps and the potential of citizen-generated data. Disaster Prevention and Management: An International Journal. v. 31, n. 6, p. 30-44. 2022.
VIANA, B. F. et al. Why the views of Latin American scientists on citizen science as a tool for pollinator monitoring and conservation matter? Neotropical Entomology. v. 49, p. 604–13. 2020.
KASTEN, P. et al. Participatory monitoring – A citizen science approach for coastal environments. Frontiers in Marine Science. v. 8, p. 1-9. 2021.
KAWABE, L. A. et al. Citizen science in marine litter research: A review. Marine Pollution Bulletin. v. 182, p. 114011. 2022.
FRITZ, S. et al. Citizen science and the United Nations Sustainable Development Goals. Nature Sustainability. v. 2, p. 922–930. 2019.
FRAISL, D. et al. Mapping citizen science contributions to the UN sustainable development goals. Sustainability Science. v. 15, p. 1735–1751. 2020.