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Publicações

O olhar do paciente

Revistas médicas convidam portadores de doenças para participar da análise de artigos científicos sobre suas condições

Daniel Almeida

A revisão por pares, a forma consagrada de avaliação de artigos em revistas científicas, não é o único crivo pelo qual passam manuscritos submetidos para publicação. Um conjunto ainda restrito de periódicos, que inclui o influente British Medical Journal (BMJ), tem convidado pacientes e pessoas que cuidam deles, como os familiares, a participar do processo de análise de artigos sobre os problemas de saúde que enfrentam, com o objetivo de complementar o escrutínio feito por especialistas. O modelo foi adotado inicialmente em 2014 pela revista BMJ, que já mobilizou aproximadamente 700 indivíduos, a maioria sem formação científica, mas com experiência suficiente para apreciar estudos sobre os problemas de saúde que enfrentam, como câncer e doenças cardiovasculares. No total, foram realizadas mais de 754 revisões por pacientes e cuidadores, de acordo com um balanço publicado em junho no portal The Scholarly Kitchen. “A experiência tem mostrado que os pacientes frequentemente trazem novas ideias e perspectivas que muitas vezes não são contempladas pelos revisores acadêmicos”, disse à Pesquisa FAPESP a médica e pesquisadora Tessa Richards, editora sênior da BMJ.

Ao longo de tratamentos, pacientes e familiares visitam médicos, ouvem opiniões divergentes, aprendem os meandros do enfrentamento de condições crônicas e constroem suas próprias percepções sobre a doença. Para Tessa, esse know-how permite a eles lançar um olhar crítico sobre estudos clínicos. “Eles são capazes de comentar pontos fortes e limitações dos artigos enviados para publicação”, argumenta. Em 2016, o paciente revisor Michael Kahn chamou a atenção para um trabalho sobre o aumento do risco de fratura em pessoas que se submeteram à cirurgia bariátrica. De acordo com ele, embora a redução de estômago possa desencadear quadros de deficiência de vitamina D e cálcio, os pesquisadores desconsideraram o fato de que a maioria dos pacientes utiliza suplementos alimentares na fase pós-operatória. “Seria relevante reforçar a importância desses suplementos e comunicar o risco de fratura no período pós-cirúrgico em linguagem amigável para pacientes leigos”, sugeriu Kahn, em um parecer disponibilizado pela BMJ. Outro estudo analisou erros de diagnóstico e procedimentos padronizados.

Pacientes trazem ideias e perspectivas que muitas vezes não são contempladas por revisores acadêmicos, diz Tessa Richards, da BMJ

Em quatro anos, a revista convidou mais de 2 mil pacientes e cuidadores para participar da revisão da maioria dos trabalhos, especialmente aqueles que recrutaram portadores de doenças para ensaios clínicos. Os convites são geralmente encaminhados a grupos e associações de pacientes, que também recebem um guia da BMJ com informações sobre o processo de revisão. As orientações não diferem muito das que são passadas aos especialistas: a revisão deve ser feita no prazo de duas semanas; o parecer deve ter no máximo mil palavras e o revisor precisa declarar eventuais conflitos de interesse. O guia também deixa claro que a decisão final sobre quais artigos devem ser publicados pertence aos editores da revista. “Os comentários dos revisores ajudam a embasar a tomada de decisão e auxiliam os autores a fazer ajustes nos artigos”, explica Tessa.

A iniciativa da BMJ teve como base um editorial publicado em 2013, no qual Tessa e outros editores defenderam a chamada “revolução dos pacientes”, que preconiza o protagonismo deles em tratamentos de saúde. De acordo com o editorial, as pessoas enfermas compreendem, mais do que os médicos, a realidade de suas condições, o impacto das doenças e como os serviços hospitalares podem ser aperfeiçoados. Por isso, o documento sustenta a tese de que médicos, pesquisadores e pacientes devem trabalhar em parceria, procurando melhorar os cuidados de saúde e desafiar práticas e comportamentos profundamente arraigados.

A ideia já vinha sendo colocada em prática por outras instituições. Em 2012, 33 organizações europeias, incluindo grupos de pacientes, instituições científicas e empresas, criaram a Academia Europeia de Pacientes em Inovação Terapêutica (Eupati), que fornece treinamentos e material didático sobre os processos de desenvolvimento de medicamentos. O objetivo é capacitar os pacientes para que possam participar ativamente de ensaios clínicos, comitês de ética e agências reguladoras. Nos Estados Unidos, o projeto Choosing Wisely, do Conselho Americano de Medicina Interna, reúne pacientes e médicos para identificar e reduzir a utilização de tratamentos ineficazes ou não baseados em evidências científicas. Na Holanda, o programa REshape Innovation, da Universidade de Radboud, busca conceber tecnologias e inovações para apoiar os pacientes. O diretor do projeto, o médico Lucien Engelen, é também idealizador da Patients Included, organização criada em 2012 para promover a inclusão de vítimas de doenças em debates médicos e científicos.

Daniel AlmeidaA Patients Included criou um selo próprio para atestar iniciativas com o compromisso de incorporar a experiência e a percepção de pacientes, garantindo que eles não sejam excluídos nem explorados. Duas revistas científicas receberam o selo. Uma delas é a norte-americana Patient Experience Journal, que publica, em acesso aberto, pesquisas voltadas a melhorar a experiência de pacientes e familiares nos serviços de saúde. O processo de revisão de manuscritos, além de incluir pacientes, também envolve a participação de profissionais da saúde e familiares. A outra revista é a Research Involvement and Engagement (RIE), publicada desde 2015 pela BioMed Central (BMC), plataforma de periódicos on-line e de acesso aberto vinculada ao grupo Springer Nature. Todos os artigos da publicação são revisados por especialistas e pacientes – e ambos têm o mesmo peso na decisão editorial.

“Os papers publicados em nossa revista estão ajudando a informar e apoiar o envolvimento de pacientes com a pesquisa científica”, escreveu Sophie Staniszewska, pesquisadora da Universidade Warwick, no Reino Unido, e editora da RIE, em um editorial publicado em novembro do ano passado. O periódico realizou recentemente um estudo, em parceria com a BMJ, com o objetivo de avaliar a contribuição dos pacientes no processo de revisão de manuscritos. “A pesquisa confirmou que eles apreciam muito a oportunidade de fazer comentários sobre estudos científicos”, diz Tessa Richards, da BMJ.

No Brasil, o modelo ainda não é adotado por periódicos médicos. “A ideia é louvável, porque amplia a participação dos pacientes – os verdadeiros interessados nos resultados de muitas pesquisas – no processo de comunicação científica”, observa Abel Packer, coordenador-geral da biblioteca virtual SciELO (sigla de Scientific Electronic Library Online). De acordo com ele, as revistas científicas do Brasil precisam ficar atentas às transformações no ambiente editorial global, principalmente aquelas relacionadas à chamada ciência aberta, que envolve o acesso livre aos processos e conteúdo das pesquisas e a construção colaborativa do conhecimento. “Assim como em outros países, as revistas do Brasil são conservadoras no sentido de ater-se a padrões consagrados, dificultando uma maior abertura para ideias mais arrojadas”, salienta Packer.

Para o ginecologista Edmund Chada Baracat, editor da revista Clinics, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), o assunto precisa entrar na agenda dos editores de revistas médicas do país. “É preciso debater abertamente essa proposta, discutindo inclusive eventuais limitações desse modelo. É importante conhecer a percepção do paciente, mas existem associações e grupos de pressão envolvidos no combate a doenças, alguns deles liderados por pacientes, cuja agenda não deveria influenciar a avaliação dos manuscritos”, ressalva Baracat.

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