Uma granja pode abrigar milhões de galinhas. É quase impossível, assim, que elas não fiquem aglomeradas – o que facilita a propagação do coronavírus aviário (AvCov), causador da bronquite infecciosa das galinhas, não transmissível para pessoas. Assim como o Sars-CoV-2, a principal porta de entrada do microrganismo são as vias respiratórias, como as mucosas do nariz, bem como os olhos das aves. Espalhado por todos os continentes, exceto o antártico, o AvCov é estudado há mais de 80 anos e, por isso, virologistas e imunologistas veterinários sugerem que o conhecimento sobre ele e outros coronavírus em animais pode sinalizar alguns caminhos e estratégias para lidar com o Sars-CoV-2.
“Uma única galinha pode infectar outras 20”, explica o virologista Paulo Brandão, professor da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da Universidade de São Paulo (USP). Além de se replicar no trato respiratório, deixando as aves mais suscetíveis a infecções e com dificuldade de se alimentar, aumentando sua mortalidade, o AvCov pode afetar o crescimento dos pintinhos, diminuir a produção e a qualidade dos ovos, causar infertilidade, diarreia e levar à perda de peso, o que deixa os frangos de corte impróprios para consumo. Pelo seu alto grau de transmissão, é a segunda doença que mais causa prejuízos econômicos para a avicultura mundial, atrás apenas da gripe aviária, segundo o World livestock disease atlas de 2011, publicado pelo Banco Mundial. Brandão estima perdas de até 4.200 dólares a cada mil aves infectadas – os números foram publicados em artigo de 2015 na Revue Scientifique et Technique – International Office of Epizootics.
O AvCov foi o primeiro coronavírus descrito, em 1933. O principal controle da doença é feito por meio de vacinas, que existem desde os anos 1970. “O principal objetivo da imunização é reduzir a taxa de transmissão do vírus. Por sua importância econômica, todas as tecnologias possíveis já foram testadas”, diz Brandão, que em junho de 2020 publicou uma revisão sobre coronavírus animais na revista científica Ars Veterinaria.
Hoje existem dois tipos de formulação no mercado: o primeiro, composto por vacinas de vírus inteiro atenuado, procura, principalmente, garantir imunidade no trato respiratório. No segundo tipo estão as vacinas de vírus inteiro inativado (morto). Vacinas com preparações mais modernas, com DNA recombinante, RNA mensageiro e de subunidades proteicas são alguns dos tipos testados, mas ainda não comercializadas (veja os tipos de vacinas em teste contra a Covid-19 e como funcionam as diferentes estratégias). O mais comum é que seja feita uma imunização cruzada, com vacinas que cubram diferentes cepas que circulam em determinada região geográfica. A cepa mais disseminada é a Massachusetts, originada nos Estados Unidos. O Brasil também tem a sua, a GI-11, da qual derivam os subtipos BR1, BR2, BR3 e BR4. “A grande aglomeração de aves e a velocidade de transmissão potencializam as mutações”, explica o pesquisador.
Brandão tenta entender como algumas variações do vírus têm escapado das vacinas e lidera um projeto apoiado pela FAPESP no qual testou dois tipos de imunização em 90 galinhas: 40 receberam um imunizante contendo apenas a cepa Massachusetts e outras 40 a combinação desta com a GI-11. A pesquisa está agora na fase de análise sorológica, na qual o soro coletado dos animais é posto em contato com o vírus cultivado – se há anticorpos, eles o neutralizam. “Quando isso não ocorre, coleto o material e faço o sequenciamento da nuvem de variação desse vírus. Assim, vejo quantas variantes escaparam, quais regiões do genoma permitiram que isso ocorresse e quais proteínas foram alteradas”, explica.
O objetivo é encontrar quais combinações de vacina conferem mais imunização e permitem fazer um guarda-chuva de anticorpos contra o maior número de variantes. “Vejo esse trabalho como algo importante não só para a veterinária, mas para inferir o que se pode esperar de vacinas humanas para Sars-CoV-2, caso a vacinação não tenha a amplitude necessária em pessoas”, diz ele. “Ao longo do tempo, podem ser encontradas mutações que levem à necessidade de atualização da vacina.”
O conhecimento acumulado sobre coronavírus em animais tem sido útil na Rede USP de Diagnóstico da Covid-19, da qual Brandão faz parte, responsável por diagnósticos utilizando teste PCR em tempo real. Ele trabalha com um banco de amostras de exames que permitem análises de espectros de mutantes do Sars-CoV-2. “Essa análise é importante porque permite observar se há alguma pequena variante que possa se tornar mais patogênica e ver como a resposta imune influi”, diz.
“As únicas vacinas licenciadas no mundo para prevenir infecções respiratórias causadas por coronavírus em animais são as contra a bronquite infecciosa em galinhas”, contou, por e-mail, o médico veterinário italiano Nicola Decaro, do Departamento de Medicina Veterinária da Universidade de Bari, na Itália. Em abril de 2020, ele publicou uma revisão sobre os coronavírus animais na revista Veterinary Microbiology, também com o objetivo de auxiliar a comunidade acadêmica a entender melhor o Sars-CoV-2.
“A experiência da medicina veterinária mostra que as melhores vacinas contra infecções por coronavírus devem ser capazes de desencadear a imunidade da mucosa. Por isso, em uma perspectiva de longo prazo, vacinas de vírus vivo modificado para administração intranasal poderiam ser desenvolvidas contra o Sars-CoV-2. Essas vacinas requerem atenuação progressiva do vírus em culturas de células, o que não pode ser obtido em um curto período”, explica Decaro. A imunidade da mucosa conseguiria, de forma mais efetiva, barrar o vírus antes de ele entrar no organismo.
Há quatro anos, o imunologista Hélio Montassier, da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias (FCAV) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Jaboticabal, vem desenvolvendo um protótipo de vacina para galinhas que busca garantir imunidade às aves. Para isso, trabalha em parceria com estudantes de pós-graduação e com colegas da Faculdade de Ciências Farmacêuticas do campus de Ribeirão Preto da USP e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). O foco é proteger as mucosas do trato respiratório, principal porta de entrada do coronavírus, utilizando a variante BR-I do AvCov inteira e inativada.
Segundo o pesquisador, essa variante é encontrada em cerca de 75% das aves de produção no Brasil, o que inclui poedeiras, reprodutoras e frangos de corte. Nessa formulação vacinal, o microrganismo inativado é encapsulado em nanopartículas de quitosana (substância encontrada na carapaça de crustáceos), para aplicação via intranasal. “O objetivo é favorecer a adesão e a ultrapassagem das barreiras das células epiteliais, que ficam na superfície da mucosa”, conta Montassier. A estratégia proporcionaria uma maior interação dos antígenos virais com as células responsáveis pelas respostas imunes. Ele explica que as nanopartículas facilitam o acesso às células apresentadoras de antígeno (APC), essenciais para estimular a resposta imune em aves e mamíferos.
O resultado foi publicado em um artigo na revista Vaccine em 2018. Ele mostrou que, tanto aplicada sozinha quanto em complemento à vacina atenuada da estirpe Massachusetts, a vacina com nanopartículas de quitosana induziu respostas imunes mediadas por células T e por anticorpos que proporcionam proteção efetiva nas mucosas do trato respiratório e nos rins. Segundo Montassier, os anticorpos e as células T atuam no sentido de reduzir ou impedir a replicação do patógeno viral e as lesões que ele causa no organismo das aves.
Assim como Brandão, o pesquisador da Unesp sugere que as tecnologias existentes para a produção de vacinas contra esse vírus podem indicar caminhos para os estudos com o novo coronavírus humano. Em abril de 2020, ele se uniu a pesquisadores da Embrapa, do Instituto Butantan e da Universidade de Valência, na Espanha, e propôs um projeto de pesquisa para uma chamada do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) com o objetivo de desenvolver e avaliar a resposta imune em modelo animal de três protótipos de vacinas contra o Sars-CoV-2, encapsuladas em nanomoléculas de quitosana, para aplicação intranasal. Em junho, a equipe recebeu o parecer: a proposta se enquadrava nos critérios de elegibilidade e era recomendada pelos comitês de Mérito Técnico-Científico e de Relevância Sócio Sanitária, mas foi negada por limitação de recursos.
Há consenso de que a imunidade oferecida pelas vacinas contra o coronavírus aviário costuma ser de curta duração. Isso não chega a ser um problema porque, em geral, o ciclo de vida desses animais também é curto: frangos de corte vivem em média 45 dias, enquanto as galinhas poedeiras vivem cerca de 60 semanas. “As aves sempre tomam mais de uma dose de vacina e aquelas que vivem mais precisam de reforço continuado”, explica Brandão.
Cães e gatos
O outro coronavírus animal mais documentado na literatura veterinária é o felino (FCoV), descrito em 1954 e que infecta, sobretudo, os gatos domésticos. Gatos que convivem com outros, principalmente em ambientes com seis gatos ou mais, correm mais risco de serem expostos ao vírus, transmitido por fezes contaminadas. O FCoV existe em duas formas: o coronavírus felino entérico (FECoV) e o vírus da peritonite infecciosa felina (FIPV). O primeiro geralmente resulta em infecção assintomática ou pode ocasionar uma gastroenterite mais branda. Já o segundo, que se manifesta em cerca de 5% dos animais infectados pelo coronavírus felino, causa uma doença sistêmica disseminada e fatal, denominada peritonite infecciosa felina (PIF). Nenhum deles é transmissível para humanos.
Mesmo assim, o modo como ele se comporta no organismo dos gatos tem paralelo com o modo como o novo coronavírus age em humanos. “Ambos causam doenças sistêmicas, desencadeando uma síndrome inflamatória aguda grave com coágulos que impedem o caminho da corrente sanguínea e formam trombos. Além disso, a Covid-19 pode causar lesão renal e afetar o sistema nervoso central, o que também ocorre com os gatos”, explica a médica veterinária Aline Santana da Hora, professora da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Federal de Uberlândia e uma das autoras da revisão da Ars Veterinaria.
Por enquanto, não há um tratamento para a peritonite infecciosa felina. “Tenho esperança de que a área veterinária também ganhe com os estudos da Covid, para que os gatos tenham uma chance contra a peritonite infecciosa felina”, conta Hora. Antes do Sars-CoV-2, essa era a doença causada por coronavírus contra a qual mais antivirais haviam sido testados. “Foi inclusive estudado o GS-441524, principal metabólito do remdesivir, um dos medicamentos testados para o tratamento da Covid-19”, informa a pesquisadora.
Vacinas experimentais contra o FIPV de vírus atenuado chegaram a ser desenvolvidas. Uma delas é inclusive comercializada em alguns países da Europa, mas há questionamentos sobre sua eficácia, e a vacina – que nunca chegou ao Brasil – não é recomendada por especialistas que formam os consensos europeu e norte-americano sobre vacinação em pequenos animais.
As vacinas contra o FCoV podem desencadear um mecanismo no qual o vírus é envolto pelos anticorpos, mas acaba pegando carona neles e conseguindo entrar na célula, um fenômeno chamado de incremento dependente de anticorpos (ADE). “Os anticorpos favorecem a entrada do vírus na célula-alvo, que ele usa para se replicar, possibilitando uma via alternativa de desenvolvimento da doença. Essa é uma informação que temos desde o Sars-CoV-1, para o qual o coronavírus felino foi usado como modelo”, explica Hora. “Assim como ocorre com o vírus da dengue ou o vírus respiratório sincicial, na PIF uma intensa resposta humoral resulta em um desfecho desfavorável ao hospedeiro.”
Além disso, segundo Decaro, a imunidade após a infecção do coronavírus felino (assim como de outros animais) é de curta duração. “O coronavírus entérico felino pode induzir imunidade de curto prazo que não confere proteção contra reinfecções e contra o desenvolvimento da peritonite infecciosa felina”, explica o italiano.
Outra vacina que gera controvérsias no meio veterinário é a que combate o coronavírus canino (CCoV). Uma das formulações disponíveis por aqui ficou famosa em março, logo no início da pandemia, em um vídeo altamente difundido via o aplicativo de mensagens WhatsApp. Nele, um homem exibia a carteira de vacinação de seu cachorro, na qual era possível ver o selo da vacina que combatia o coronavírus. A ideia era sugerir que o vírus não tinha nada de novo, que a vacina já existia e poderia ser usada em humanos para combater a Covid-19. Faltou dizer que nenhuma das vacinas contra coronavírus em animais tem aplicação em humanos, já que são específicas para combater vírus que não infectam pessoas.
A maior parte dos coronavírus caninos não costuma causar problemas nos cachorros. Há um tipo, o 2b, que pode se replicar nos pulmões, no fígado, no cérebro, nos nódulos linfáticos e nos rins dos animais e, às vezes, são letais para filhotes de até 8 semanas. Assim como no vírus felino, a transmissão ocorre pelo contato com fezes contaminadas. “A vacina de vírus inativado, mais comum, não evita a infecção, mas pode diminuir a transmissão, porque o cão excreta menos partículas virais.”
“Já as de vírus atenuados provocam efeitos colaterais como febre e manifestação da doença após a vacina”, explica o médico veterinário Nelson Santana, que recentemente concluiu o doutorado no Departamento de Medicina Veterinária Preventiva e Saúde Animal da FMVZ-USP e é um dos autores do artigo da Ars Veterinaria. Isso ocorre porque, assim como o AvCov, esse vírus tem alta taxa de mutação e recombinação e existem muitas variantes que a vacina não consegue cobrir. Além disso, como o vírus do imunizante é atenuado, e não inativado, há risco de que se replique quando encontra variantes do hospedeiro que não foram neutralizadas. “A Associação Mundial de Veterinários de Pequenos Animais passou a não recomendar as vacinas contra o coronavírus canino, por falta de evidências sobre sua efetividade e necessidade”, conta Santana.
Aparentemente, cães e gatos também podem carregar o Sars-CoV-2. Um estudo publicado em outubro na Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) avaliou a suscetibilidade de sete gatos e três cães à infecção. Os pesquisadores da Faculdade de Medicina Veterinária e Ciências Biomédicas da Universidade do Colorado, nos Estados Unidos, concluíram que nenhuma das espécies desenvolveu doença clínica e, por meio de testes de PCR, observaram que os animais inoculados com o vírus desenvolveram anticorpos contra o microrganismo. Os gatos infectados chegaram a transmitir o vírus para outros gatos com os quais dividiram gaiolas. Depois, demonstraram uma resposta imune eficaz ao serem reinfectados com Sars-CoV-2. Todos os cachorros também desenvolveram anticorpos, mas não foi testado se eles contaminavam outros animais. Os pesquisadores ainda concluíram que os gatos podem ser bons modelos para o desenvolvimento de vacinas.
Apesar dos resultados, ainda não há informações conclusivas que apontem se eles podem transmitir o Sars-CoV-2 para as pessoas. “É uma questão de chave e fechadura. Uma vez que o vírus entra, ele precisa ‘conversar’ bem com as células dos animais para replicar-se. Aparentemente, o Sars-CoV-2 pode ter se dado bem nesses animais, mas não o suficiente para ser transmitido para seres humanos”, avalia Brandão. Hora segue na mesma linha. “Esses animais parecem ser hospedeiros terminais para o Sars-CoV-2, pois conseguem eliminar a infecção dentro de poucos dias, apresentando um sistema imune que consegue lidar com o vírus”, explica.
Brandão lembra do caso dos visons, também conhecidos como minques, criados em cativeiro que foram infectados com o Sars-CoV-2 na Europa: o vírus veio de trabalhadores infectados, foi para os animais e depois infectou novamente as pessoas. Segundo ele, há dois pontos explicativos importantes. “Primeiro, o melhor modelo de laboratório para entender o Sars-CoV-1 e 2 é o ferret, porque o receptor ao qual o vírus se liga, o ACE2, é muito parecido com o de humanos, o suficiente para ocorrer a infecção. O ferret e o minque têm similaridade de receptor, os dois são da família dos mustelídeos”, explica. O segundo fator foi o número grande de animais, que permitiu a transmissão e a mutação do vírus. “Com cães e gatos é diferente, aparentemente eles não têm receptores otimizados para esse vírus”, conclui.
Projeto
Evolução experimental em quase-espécies com coronavírus aviário (nº 18/12417-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Paulo Eduardo Brandão (USP); Investimento R$ 149.636,87.
Artigos científicos
BOSCO-LAUTH, A. M. et al. Experimental infection of domestic dogs and cats with Sars-CoV-2: Pathogenesis, transmission, and response to reexposure in cats. Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS). v. 117 n. 42. out 2020.
BRANDÃO, P. E. et. al. Coronaviruses: There and back again. ARS Veterinária. v. 36, n. 2, p. 059-071. jun. 2020.
BRANDÃO, P. E. et. al. Assessing the economic burden of avian infectious bronchitis on poultry in Brazil. Revue scientifique et technique – International Office of Epizootics. v. 34, n. 3. P. 1-14. dez. 2015
DECARO, N e LORUSSOB, A. Novel human coronavirus (Sars-CoV-2): A lesson from animal coronaviruses. Veterinary Microbiology. v. 244. On-line. mai 2020.
LOPES P. D et. al. Inactivated infectious bronchitis virus vaccine encapsulated in chitosan nanoparticles induces mucosal immune responses and effective protection against challenge. Vaccine. v. 36, n. 19. p. 2630-6. mai 2018.