Wikimedia CommonsNa introdução de seu livro Artistas baianos, publicado em 1911, Manuel Raymundo Querino escreveu: “A Bahia possui muita preciosidade na poeira do esquecimento”. Durante muito tempo, a memória do artista, historiador, etnólogo, escritor e político negro, nascido livre em 1851 – antes, portanto, da abolição da escravatura –, também ficou imersa nessa poeira.
Querino desfrutou de surpreendente prestígio na sociedade onde imperavam ideologias racistas: sua morte, em 1923, foi registrada por vários jornais, e a seu enterro compareceram políticos e representantes do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e da Escola de Belas Artes. Mas com o passar dos anos sua imagem foi sendo desvalorizada, até o esquecimento. Pioneiro em diversas áreas do saber, começou a ser rotulado como autodidata. “Na época, seria o mesmo que dizer que ele era iletrado. Seus livros começaram a ser chamados de opúsculos”, relata a historiadora inglesa Sabrina Gledhill, ainda indignada com a indiferença, mais de 40 anos depois de ter começado a estudar essa figura histórica.
O colono preto como fator da civilização brasileira
Hoje, a academia reconhece Querino como o primeiro historiador da arte na Bahia e um dos pioneiros no estudo de história da arte no Brasil. Autor de um dos primeiros livros sobre culinária baiana, participou da criação, como aluno fundador, do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia e da Escola de Belas Artes e criou dois jornais (A Província, em 1887, e O Trabalho, em 1892). Foi um dos fundadores da Liga Operária Baiana (1876) e do Partido Operário (1890) e conselheiro municipal de Salvador.
Sua contribuição mais marcante, como os pesquisadores são unânimes em identificar, está nos textos em que destaca o protagonismo dos africanos e de seus descendentes na formação da sociedade brasileira. “Ele desmentiu a ideia de que o escravizado havia sido uma mão de obra passiva, detalhando os conhecimentos trazidos da África, inclusive sobre mineração. Nenhum afrobrasileiro, até então, havia expressado sua perspectiva da história do Brasil”, afirma Gledhill.
Antes de Querino, apenas dois intelectuais de ascendência europeia – o advogado fluminense Alberto Torres (1865-1917) e o médico sergipano Manoel Bonfim (1868-1932) – haviam contestado teorias como o “racismo científico” e o “darwinismo social”. Essas pseudociências postulavam a superioridade europeia numa escala evolutiva e condenavam a miscigenação, afirmando que a mistura de raças provocava a degeneração física e intelectual do povo.
Foi nesse contexto que Manuel Querino publicou o livro O colono preto como fator da civilização brasileira, em 1918, no qual afirmava: “o Brasil possui duas grandezas reais: a uberdade do solo e o talento do mestiço”. Foi graças a essa frase que Gledhill descobriu Querino, nos anos 1980. Ela buscava um tema para seu mestrado em estudos latino-americanos pela Universidade da Califórnia em Los Angeles (Ucla), nos Estados Unidos. “Eu estava lendo Tenda dos milagres, de Jorge Amado [1912-2001], ainda em inglês, e encontrei essa citação de Querino como epígrafe do livro. Quis saber quem era ele e fui perguntar ao meu orientador [o historiador norte-americano Edward Bradford Burns].” Burns (1933-1995) conhecia bem o personagem; fora o primeiro pesquisador estrangeiro a estudar a vida e a obra de Manuel Querino, ainda na década de 1970. Estava escolhido o objeto de pesquisa de Gledhill.
Chegando ao Brasil, já em busca de um tema para o doutorado, Gledhill conheceu pessoalmente Jorge Amado: “Ele me confirmou que Querino foi uma das inspirações para a criação do personagem Pedro Archanjo, de Tenda dos milagres”. No livro, lançado em 1969, Archanjo é um pesquisador mestiço que tem, como seu principal opositor, o catedrático Nilo Argolo, arauto da superioridade da raça branca – inspirado no antropólogo e médico Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), um dos primeiros a abordar a influência africana na cultura brasileira e expoente brasileiro do movimento eugenista, que pregava contra a miscigenação.
“Jorge Amado retrata Pedro Archanjo como uma pessoa múltipla e assim era Manuel Querino. Ele não foi um só, foi vários”, diz a historiadora Maria das Graças de Andrade Leal, da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e autora de um amplo estudo biográfico sobre o baiano que transitava em diversos espaços sociais, como operário e intelectual adepto do candomblé e defensor da capoeira. “Por meio de sua vida, a vida de muitos outros afrodescendentes pôde ser trazida à luz, possibilitando uma versão da história pela ótica do oprimido.”
Nascido em Santo Amaro da Purificação, em 28 de julho de 1851, aos 4 anos Querino ficou órfão de mãe e pai, vítimas de uma epidemia de cólera. De acordo com as pesquisas de Leal, uma vizinha o teria acolhido, mas, sem condições de mantê-lo, solicitou ajuda ao Juiz de Órfãos, prática comum à época. O juiz encaminhou a criança ao professor, jornalista e político Manoel Correia Garcia (1815-1890), nomeando-o seu tutor. “Na epidemia de cólera, houve o movimento de uma determinada elite baiana para tutelar crianças órfãs, que foram muitas”, diz ela. O menino não morou com o tutor, mas ele custeou seus estudos – o que, certamente, definiu os rumos de sua história.
“O estudo salvou a vida dele”, afirma Gledhill. Aos 17 anos, Querino foi recrutado para a Guerra do Paraguai (1864-1870). Ele estava, então, no Piauí – ao que tudo indica, fugindo do recrutamento forçado a que eram sujeitos os homens livres pobres. Conseguiu não ir para o front, provavelmente por ser um dos poucos soldados que sabia ler e escrever. Serviu como escrevente no Rio de Janeiro e, ao final da guerra, voltou a Salvador.
Querino trabalhava durante o dia como pintor-decorador e estudava à noite. Cursou humanidades no Liceu de Artes e Ofícios da Bahia e desenho na Academia de Belas Artes. Na Academia, que passaria a se chamar Escola de Belas Artes no período republicano, recebeu o diploma de desenhista em 1882. Prosseguiu para o curso de arquitetura, mas não pôde concluí-lo pela ausência de professores que lecionassem as duas últimas disciplinas que faltavam para sua formação. Ainda assim, seu primeiro trabalho acadêmico foi divulgado pela imprensa local: o projeto “Modelos de casas escolares adaptadas ao clima do Brasil”, elaborado em 1883 para o Congresso Pedagógico do Rio de Janeiro.
Querino começou sua atuação política a partir do movimento operário. Segundo o museólogo e historiador de arte Luiz Alberto Ribeiro Freire, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o convívio com o meio intelectual não o fez rechaçar suas origens e expressões da cultura popular. Práticas populares como o samba, o candomblé e a capoeira, reprimidas pelo governo no afã de branquear e civilizar a sociedade, foram valorizadas em seus escritos. “Em geral havia uma espécie de aculturação quando pessoas das camadas populares chegavam às instituições da elite; elas adquiriam a ideologia hegemônica. Mas Querino nunca deixou de se posicionar na classe social como artista operário”, diz Freire. Em 1874, com apenas 23 anos, seria um dos fundadores da Liga Operária Baiana.
Após se formar, ele foi professor de desenho industrial no Liceu de Artes e Ofícios, além de pintor-decorador. Segundo ele mesmo descreve no livro Artistas baianos – Indicações biográficas, seus trabalhos incluíam a pintura de casas públicas e particulares, bondes e do hospital da Santa Casa de Misericórdia. Ele foi auxiliar do pintor espanhol Miguel Navarro y Cañizares (1834-1913), responsável pelas imagens do pano de boca do Teatro São João. Freire explica que o pintor-decorador pintava murais artísticos em paredes, e não se preservou nenhum registro desses trabalhos. Já o pano de boca (pintura feita em tecido para cobrir o palco do teatro antes da apresentação) queimou-se em um incêndio que destruiu o Teatro São João, em 1923.
O maior legado do intelectual baiano está, portanto, em seus estudos sobre história, cultura e folclore da Bahia e do povo africano. “Nina Rodrigues e Manuel Querino foram considerados as maiores autoridades sobre a cultura afrobaiana por seus contemporâneos”, afirma Gledhill. Enquanto Rodrigues continuou lembrado e reverenciado, Querino começou a ser menosprezado pela academia ou tratado com paternalismo. O médico e etnólogo Artur Ramos (1903-1949) o classificou como um “pesquisador honesto, um trabalhador incansável”, mas “sem o rigor metodológico e a erudição científica de Nina Rodrigues”. Para a pesquisadora, racismo e preconceito de classe explicam a atitude.
Freire avalia que a maior facilidade de acesso de afrodescendentes à universidade, sobretudo a partir dos anos 2000, possibilitou o resgate. Desde 2014 ele coordena um projeto que vem dando continuidade ao trabalho do primeiro historiador da arte baiana: o Dicionário Manuel Querino de arte na Bahia. O dicionário eletrônico foi criado por um grupo de pesquisadores da UFBA e da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb). Conta com 362 verbetes sobre artistas que nasceram ou trabalharam no estado, além de movimentos e patrimônios artísticos do estado. “A maior conquista do dicionário foi honrar a memória de Manuel Querino, levando o seu trabalho adiante”, diz Freire, que já tem um novo projeto em mente, só esperando pela aposentadoria do magistério, daqui a dois anos. “Minha ideia é publicar uma Caixa Querino, reunindo todos os seus livros e os que falam sobre ele.”
No campo do audiovisual, Querino também tem herdeiros. Em 2023, no centenário de sua morte, foi lançado o documentário Querino – 100 anos, no YouTube. O filme é uma produção independente, com recursos captados por meio do site de financiamento coletivo Catarse, com direção de Isis Gledhill, que herdou da mãe, Sabrina, a paixão pela história de seu conterrâneo. Isis nasceu e cresceu em Salvador, cidade que, além de palco de pesquisa, se tornou um lar para Sabrina ao longo de 28 anos.
Com o mesmo propósito de incluir o negro na história como protagonista, em agosto de 2022 foi lançado o Projeto Querino, uma série de podcasts criada pelo jornalista Tiago Rogero e desenvolvida por uma equipe de 40 pessoas. Com produção da Rádio Novelo, o projeto com oito episódios ganhou versão escrita pela revista Piauí e foi um dos vencedores do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de 2023, na categoria Produção Jornalística em Áudio.
A iniciativa é inspirada no “1619 Project”, da jornalista norte-americana Nikole Hannah-Jones, que reformula a história dos Estados Unidos a partir das consequências da escravidão: 1619 é o ano em que os primeiros escravizados chegaram ao país. Quando Rogero e equipe conheceram a história de Querino – retratada no episódio 4, em que se discute o direito à educação –, encontraram o nome ideal para o projeto brasileiro. “Ele simboliza muito o que a gente tentou fazer em vários aspectos, contando a história do Brasil sob um olhar afro-centrado, algo que já fazia no final do século XIX e começo do século XX”, comenta o jornalista.
E novos projetos influenciados pelo intelectual multifacetado estão a caminho. Com a parceria da Fundação Itaú Social e do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), o conteúdo do podcast jornalístico está sendo adaptado para uso em sala de aula, com sugestão de atividades e leituras complementares. Rogero também escreveu um livro aprofundando o conteúdo do podcast (que deverá ser lançado em setembro, pela Editora Fósforo) e já fechou outro contrato para a publicação de uma graphic novel de ficção. “Ela será ambientada no ‘universo’ do Projeto Querino, parte de um esforço para alcançar também públicos mais jovens”, revela o autor.
Artigo científicos
GLEDHILL, Sabrina. Representações e respostas: Táticas no combate ao imaginário racialista no Brasil e nos Estados Unidos na virada do século XIX. Sankofa ‒ Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana. São Paulo, Brasil, v. 4, n. 7, p. 45–72, 2011.
Livros
GLEDHILL, Sabrina (org.). (Re)apresentando Manuel Querino 1851-1923: Um pioneiro afrobrasileiro nos tempos do racismo científico. Editora Funmilayo, 2021.
GLEDHILL, Sabrina. Travessias no Atlântico negro: Reflexões sobre Booker T. Washington e Manuel R. Querino. Salvador: EDUFBA, 2020.
LEAL, M. G. A. “Manuel Querino: Entre letras e lutas Bahia 1851-1923.” Tese apresentada ao Programa de Estudos Pós-graduados em história da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) para obtenção do título de doutor em história social, 2004. Editado em 2009 pela editora Annablume (esgotado).
QUERINO, Manuel. A arte culinária na Bahia. Salvador: Progresso Editora, 1957.
QUERINO, Manuel. O colono preto como fator da civilização brasileira. São Paulo: Cadernos do Mundo Inteiro. 2 ed. 2018.
QUERINO, Manuel. Artistas bahianos. Indicações biographicas. Bahia: Officinas de Empreza. 2 ed. 1911.
QUERINO, Manuel. A raça africana e os seus costumes. Salvador: Livraria Progresso Editora. Coleção de Estudos Brasileiros, 1955.