A cada tonelada de aço produzido nas usinas siderúrgicas, 330 kg de um resíduo escorre como lava de vulcão, a 1600 ºC, das construções de quase 30 metros de altura, os altos-fornos. Resfriado bruscamente, torna-se uma espécie de areia. É a escória, formada pela argila do minério de ferro misturada com silício e alumínio. As indústrias siderúrgicas não encontram aplicação para esse material. Afinal, uma usina grande produz cerca de 1,2 milhão de toneladas de escória granulada por ano, o equivalente a 3 mil toneladas por dia, volume suficiente para encher cerca de 20 caminhões, a cada 24 horas.
Sem uso, os resíduos acumulam-se em conjuntos de morros, de 20 ou 30 metros de altura, que, com o tempo, se tornam rochas artificiais, sobre as quais, por causa de ausência de solo, não cresce qualquer vegetação. O desconforto vai além do impacto visual. Essa areia pouco ecológica polui o solo e a água do subsolo, além de gerar custos, ao ocupar áreas que poderiam ter usos mais nobres.
Esses problemas, entretanto, podem estar com os dias contados. Um grupo de pesquisadores da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) desenvolveu um novo tipo de cimento, no qual a escória é a base da composição. Não se trata de aumentar a participação dos resíduos da fabricação do aço no cimento comum, o Portland, como é feito no Brasil há 40 anos, em quantidades que correspondem, aproximadamente, ao mesmo volume que se acumula sem serventia nos arredores das usinas siderúrgicas. Muito mais que isso, a pesquisa Painéis de Cimentos de Escória Reforçados com Fibra de Vidro E resultou em um material absolutamente inovador. Coordenada pelo engenheiro civil Vahan Agopyan, a pesquisa se desenvolve no âmbito do Programa de Inovação Tecnológica em Parceria, da FAPESP, que entrou com um financiamento de R$ 210 mil. A empresa parceira, a Owens Corning Fiberglas, fabricante de fibras de vidro, participa com recursos da ordem de R$ 415 mil. O trabalho contou, ainda, com o apoio da Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST), do Espírito Santo.
Na formulação do novo cimento elaborada pela equipe do professor Vahan, a escória faz parte de uma mistura que contém outros dois componentes: os ativadores (compostos como silicatos de sódio e sulfatos e hidróxidos de cálcio, empregados juntos ou isoladamente) e as fibras de vidro do tipo E (o mais comum, usado como isolante elétrico, daí o E). Mas a escória predomina, representando 85% do volume. A combinação dela com os ativadores produz cimentos de baixa alcalinidade, uma característica química importante, por permitir a mistura com fibras naturais ou artificiais que seriam destruídas pela alcalinidade mais elevada do Portland. A adição de ativadores também acelera o endurecimento da escória, que, por endurecer lentamente, não pode ser usada sozinha, como o Portland.
As fibras, explica o professor Vahan, funcionam como reforço: ampliam a resistência mecânica e a possibilidade de moldar o material em superfícies curvas, sem risco de quebrar-se facilmente. “Estávamos desperdiçando cimento”, resume o engenheiro civil Vanderley John, um dos pesquisadores da equipe.
Painéis versáteis
No ano passado, o cimento de escória tomou a forma de painéis de formas e usos variados. Quadrados ou retangulares, planos ou sinuosos, bem mais finos e mais leves do que os equivalentes de cimento comum ou de alvenaria, têm aplicações imediatas na construção de paredes, forros, pisos e divisórias. Na avaliação de Ernani Seddon, gerente de desenvolvimento de negócios da Owens-Corning, que fabrica e distribui componentes para construção civil, pode nascer desse trabalho, em poucos anos, um processo construtivo genuinamente brasileiro, de custo reduzido e fácil aplicação. “Os especialistas da Escola Politécnica têm nos ajudado a desenvolver soluções técnicas econômicas e modernas que atendam às necessidades da indústria”, diz Ernani.
A pesquisa encontra-se agora no estágio de repasse de tecnologia a indústrias, para produção em escala comercial. Até o momento, há apenas negociações incipientes com empresas interessadas. O potencial de mercado já está mais definido. À medida em que for iniciada a produção em escala comercial, os painéis com o novo cimento estarão literalmente ocupando o espaço da alvenaria convencional na vedação interna de casas e edifícios, que movimenta cerca de US$ 500 milhões por ano no Brasil.
Há outros usos possíveis para o novo material. Durante o mestrado realizado na Escola Politécnica, a arquiteta Vanessa Gomes da Silva analisou as aplicações potenciais do cimento de escória, que pode ser usado em bancos, postes, lixeiras, tanques e tubulações, além de simulações de cenários naturais – as pedras, árvores e animais que apenas parecem verdadeiros. “O cimento de escória é viável também para uso externo, em telhados e painéis de fachadas, mas a confirmação final depende de mais alguns estudos”, diz Vanessa, atualmente professora do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Segundo ela, o cimento de escória reforçado com fibra de vidro é também uma alternativa ao polêmico cimento misturado com fibras de amianto, bastante utilizado em telhas e caixas-d’água, já proibido em diversos países da Europa.
Valorizando a escória
Com o novo cimento, os pesquisadores criam mercado para a escória e eliminam uma preocupação das usinas, que têm de encontrar um destino seguro aos dejetos que criam. Na prática, as siderúrgicas ganham duas vezes: reduzem os custos de manutenção dos aterros e acrescentam valor aos resíduos, convertidos em matéria-prima nobre. Quando vendida como aditivo ao cimento Portland, a escória moída não custa mais de US$ 10 a tonelada, mas pode valer cinco vezes mais se utilizada como aglomerante (cimento).
O professor Vahan estima que o novo material custaria no máximo 60% do Portland, a despeito de suas peculiaridades. “Detemos conhecimento para elaborar cimento de escória duas vezes mais resistente que o Portland”, diz o pesquisador. Há quase 20 anos ele estuda materiais para construção civil com reforços de fibras. Começou com as vegetais, com as de coco, e chegou às de vidro, mais homogêneas, uniformes e de maior resistência mecânica.
A equipe da Escola Politécnica dispõe no momento de cinco fórmulas básicas do novo material. Sua fabricação é relativamente simples. Consiste da secagem e da moagem da escória, seguida da mistura com os ativadores. Como a escória já foi queimada, há uma economia de 80% no consumo de energia elétrica em relação ao processo de fabricação do cimento Portland, que implica o aquecimento de argila e de calcários a cerca de 1.500 oC.
O material resultante do processo desenvolvido na USP, considerado de baixa alcalinidade, tem pH, o índice de acidez ou de alcalinidade, 11,5 (quanto mais baixo o pH, mais ácida é uma substância, e quanto mais alto, mais alcalina ela é). O cimento Portland tem alcalinidade elevada, com pH acima de 12,5, que dificulta a mistura com fibras de vidro, mesmo as do tipo especial, capazes de lhe dar usos mais variados. A diferença entre os valores, ainda que aparentemente discreta, é larga o suficiente para permitir misturas estáveis com a fibra de vidro ou vegetais. Mas os pesquisadores não consideram as comparações inteiramente adequadas. “Não estamos concorrendo com o cimento Portland”, salienta Vanderley. “O cimento de escória com reforço de fibra de vidro se destina a aplicações específicas.”
Valor histórico
A tendência atual na construção civil, reforça o professor Vahan, é usar materiais reforçados com fibras (compósitos), mais maleáveis e mais leves que os tradicionais. “Com a escória, podemos formular variações de cimento completamente diferentes entre si”, diz ele. Podem ser ajustadas a composição, a espessura e a curvatura dos painéis, a textura da superfície e até mesmo a cor (adicionando corantes, o cimento pode se tornar azul ou vermelho, por exemplo, dispensando o trabalho de acabamento). Como não há material perfeito, este também apresenta limitações. Pode ser usado com fibras de vidro e vegetais, mas não com fibras de aço, em estruturas de construções, já que a alcalinidade é importante para proteger os reforços feitos de aço.
Este pode ser um marco na história do cimento, na qual, indiretamente, a pesquisa da Escola Politécnica se apoiou. A gipsita (o conhecido gesso, definido quimicamente como um sulfato de cálcio), que fez parte das massas usadas para colar as pedras das pirâmides do Egito, há cerca de 3.000 anos, é um dos ativadores da escória das moderníssimas usinas siderúrgicas. Pode estar se encerrando também, quem sabe, o capítulo iniciado em 1822 pelo engenheiro civil inglês John Smeaton.
Foi ele o descobridor de uma mistura argilosa que funcionava fantasticamente para manter em pé as construções da época – era o cimento comum, que Smeaton chamou de Portland por ter a mesma cor acinzentada da terra de origem vulcânica da ilha de Portland, na Inglaterra. Agora é a vez do cimento de escória cumprir as exigências de seu tempo. “Criamos um novo paradigma industrial, de acordo com um dos preceitos da Nova Revolução Industrial, que recomenda fornecer o que cada cliente precisa”, diz o professor Vahan. Com o cimento comum, lembra ele, tornava-se difícil acompanhar a História.
Perfil:
Vahan Agopyan, 48 anos, é engenheiro civil com graduação e mestrado na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) e doutorado no King’s College London. Trabalha desde 1974 no desenvolvimento de materiais e componentes de Construção Civil, especialmente materiais reforçados com fibras e uso de resíduos. É professor titular de Materiais e Componentes de Construção Civil desde 1994 e vice-diretor da Escola Politécnica da USP desde 1998.