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Filosofia

O rigor da leitura

A disciplina na análise do texto é uma das marcas do departamento desde os pioneiros franceses até os pesquisadores atuais

Platão e Aristóteles (ao centro)  no quadro  Escola de Atenas, de Rafael: ideias dos dois grandes  nomes da antiga filosofia grega são alvo de estudos

wikimedia commonsPlatão e Aristóteles (ao centro) no quadro
Escola de Atenas, de Rafael: ideias dos dois grandes nomes da antiga filosofia grega são alvo de estudoswikimedia commons

Os três projetos temáticos em curso na área de filosofia da Universidade de São Paulo, todos com apoio da FAPESP, são suficientes para indicar a amplitude das atividades do departamento, que integra a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH). Um é sobre filosofia grega clássica; outro sobre ciência, tecnologia e sociedade; e o terceiro sobre a evolução das ideias do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951). “Uma das características de nossas pesquisas é um balanceamento entre as áreas e épocas de estudo”, diz Roberto Bolzani Filho, chefe do departamento, que se graduou em 1985. Bolzani é um dos pesquisadores do projeto temático Filosofia grega clássica: Platão, Aristóteles e sua influência na Antiguidade, coordenado pelo professor Marco Zingano.

Esse projeto tem como objetivo central mapear e estudar as teses centrais de Platão e Aristóteles, que tiveram uma influência marcante na Antiguidade, segundo dois eixos centrais: a metafísica e a ética. Ambos os filósofos dividem teses importantes sobre a natureza do conhecimento, do mundo e da ação e, em linhas gerais, sustentam uma perspectiva realista de cunho eminentemente racionalista. No entanto, Aristóteles, que foi aluno de Platão, rompeu com o antigo mestre e tornou-se um crítico feroz do platonismo. Sua filosofia é uma alternativa ao pensamento de Platão. O projeto estuda a oposição entre aristotelismo e neoplatonismo até o momento em que o ecletismo ganha corpo e se tenta harmonizar essas duas filosofias.

Um segundo temático, Gênese e significado da tecnociência: das relações entre ciência, tecnologia e sociedade, trata de temas que estão nas fronteiras entre a epistemologia, a ética e a política. “O projeto está interessado em temas atualíssimos, como a hegemonia do agronegócio e da agricultura transgênica, e a proposta de alternativas sustentáveis, como a agroecologia”, diz Pablo Mariconda, pesquisador responsável pelo temático. “Também temos interesse em questões ligadas às fronteiras entre conhecimento público e privado, o aspecto anticientífico das práticas tecnocientíficas das multinacionais na saúde e na agricultura e os problemas éticos ligados à eugenia nas práticas da genética humana.”  Segundo Mariconda, as pesquisas não defendem apenas posições críticas a essas questões. Também contribuem com o debate de forma propositiva: propõem a reinstitucionalização da ciência com o objetivo de torná-la mais adequada ao desenvolvimento de alternativas alinhadas com a sustentabilidade social e ambiental e menos dependentes dos interesses do capital e do mercado.

Wittgenstein: projeto sobre evolução das ideias do filósofo

Photo Researchers / Latinstock Wittgenstein: projeto sobre evolução das ideias do filósofoPhoto Researchers / Latinstock

Uma descrição detalhada da evolução das ideias de um dos mais importantes pensadores do século passado é o objetivo central do projeto temático Wittgenstein em transição, que está sediado no Departamento de Filosofia da FFLCH, embora seu coordenador, Bento Prado Neto, filho de Bento Prado Jr., lecione na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Prevista para encerrar em meados de 2015, a iniciativa está detalhando a evolução da filosofia de Wittgenstein no início dos anos 1930. As mudanças ocorridas nesse período servem para uma melhor compreensão do Tractatus logico-philosophicus, obra de 1921, da fase inicial do filósofo, e da filosofia madura do pensador austríaco. Essa segunda inicia com o Livro azul, que foi ditado em 1933 por Wittgenstein a seus alunos na Universidade de Cambridge, e atinge seu ápice na elaboração das Investigações filosóficas, obra publicada após a morte do filósofo.

Maugüé e os franceses
Os temáticos ajudam a entender uma parcela significativa das pesquisas feitas atualmente na Filosofia da USP. Mas traços importantes do departamento vêm de longe, e alguns remontam aos primeiros anos do curso, que esteve a partir de 1935, ano seguinte ao da sua fundação, sob a responsabilidade de uma figura marcante, Jean Maugüé, que só deixou o posto em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, para juntar-se às tropas francesas no norte da África. Sua aluna e futura professora de estética do departamento Gilda de Mello e Souza disse em 1973 na aula inaugural do curso de filosofia que “Maugüé não era apenas um professor – era uma maneira de andar e falar” e “um modo de abordar os assuntos”.

Gérard Lebrun: aulas nas USP durante vários períodos

Matuiti Mayezo / Folha imagem Gérard Lebrun: aulas nas USP durante vários períodosMatuiti Mayezo / Folha imagem

Em outras palavras, foi um “estilo”, como define Bolzani, que estabeleceram no departamento Maugüé e seus compatriotas posteriores, sobretudo Martial Guéroult, que lecionou na USP entre 1947 e 1953. Criou-se, nas palavras de Gilda, o hábito “de uma exposição de um assunto preciso, apoiado numa bibliografia moderna, fornecida com lealdade ao aluno”. Nada de manuais, mas leitura estrutural e direta dos textos filosóficos. “Na época a ideia de livre pensamento levava a uma filosofia muito eclética, uma espécie de veleidade de literários e humanistas”, diz Bolzani. “Foi preciso estabelecer uma disciplina do pensamento. Hoje há vários métodos de estudo no departamento, mas a ideia de disciplina persiste.”

“A influência ensaística e mais ligada à história das ideias, própria da filosofia francesa, sempre esteve presente no departamento”, diz Pablo Mariconda, pesquisador responsável pelo projeto temático Gênese e significado da tecnociência: das relações entre ciência, tecnologia e sociedade, que se graduou em 1971. No projeto, previsto para terminar em julho de 2016, a tradição, até pela contemporaneidade do tema, se alia a tendências atuais. “De modo bem característico, parte dos pesquisadores e professores possui uma espécie de formação híbrida que combina a análise conceitual e linguística com a análise epistemológica e histórica, característica da corrente francesa.”

Filosofar a céu aberto
A presença francesa incluiu no período pós-guerra outros nomes fundamentais para a história do departamento, como os de Gilles-Gaston Granger, Victor Goldschmidt e Claude Lefort (deu aulas entre 1953 e 1954). Gérard Lebrun lecionou na FFLCH durante vários períodos entre 1960 e meados da década de 1990 e aqui escreveu obras importantes sobre Kant e Hegel – isso sem falar nas palestras dadas por Michel Foucault na USP em meados dos anos 1960 e especialmente em 1973. Segundo Bolzani, Lebrun “inspirou muito o pensamento originado no departamento, tanto quanto Bento Prado Jr.”. Bento, como ficou conhecido entre colegas e alunos, foi uma figura cardeal na geração que, ao realizar uma crítica relativamente moderada aos métodos dos pioneiros e influenciada pelos estudos de Marx no início dos anos 1960, é considerada a primeira a estabelecer uma tendência original no departamento. Bento, segundo Paulo Eduardo Arantes (também ele membro dessa geração, embora tenha sido aluno do primeiro) no livro Um departamento francês de ultramar (1994), “ousava filosofar a céu aberto, longe, mas não muito, dos textos”.

Fazem parte dessa geração outros nomes célebres como José Arthur Giannotti, Ruy Fausto, Marilena Chauí, todos marcados pelo estudo de Marx. Marilena Chauí, aliás, coordenou um projeto temático, encerrado em 2013, que estudou as relações entre natureza e história da filosofia no século XVII, seu legado e as retomadas e críticas que a ilustração francesa, o iluminismo alemão e alguns filósofos contemporâneos fizeram a essas concepções seiscentistas. Além deles, um filósofo original e independente em sua filosofia cética, Oswaldo Porchat. O regime militar provocou a primeira inibição às atividades intelectuais do grupo – o AI-5, em 1969, aposentou compulsoriamente Bento e Giannotti. Um segundo desafio viria entre o fim dos anos 1980 e o início dos 1990, com a queda dos regimes comunistas do Leste Europeu. “Com o retraimento do pensamento marxista, professores do departamento passaram a repensar sua filosofia”, diz Bolzani.

“O debate em torno do dito marxismo uspiano desdobrou-se de várias formas”, diz o professor Vladimir Safatle, que se graduou em 1994. “Alguns acompanharam a guinada neopragmática da Escola de Frankfurt, outros procuraram desdobrar a dialética para a recuperação de uma teoria com fortes aportes da psicanálise, outros ainda se enveredaram pelas articulações entre Marx e Espinosa. É verdade que o ceticismo de Porchat ficou sem seguidores no departamento.” O próprio Safatle se dedica, entre outros interesses, à obra frankfurtiana e à do psicanalista Jacques Lacan.

Uma marca deixada ainda pelo estilo que os pioneiros franceses legaram, com suas defesas contra o pensamento diletante – que, segundo Arantes, também provocava o efeito “profilático” de levar o departamento a preservar-se da “febre novidadeira do Brasil” –, teria sido a formação de historiadores e comentadores de filosofia, mas não de filósofos propriamente ditos. “Há de fato uma dificuldade em dar esse passo adiante”, diz Bolzani. “Mas é melhor esse problema do que o oposto, porque o modelo atual não impede que se acrescente a atividade filosófica à formação pela leitura dos textos.” Outra crítica que se costuma fazer ao departamento é certa resistência ao estudo da filosofia contemporânea mais recente, embora Safatle aponte um esforço em curso no sentido contrário, “em especial quanto à filosofia desenvolvida nos últimos 40 anos”.

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