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microeletrônica

O sonho do chip

Nova fábrica de circuitos integrados da Qualcomm poderá colocar o Brasil no time dos produtores globais de semicondutores

léo ramos chaves Detalhe do wafer, o disco de silício cristalino que é a matéria-prima para fabricação de chipsléo ramos chaves

Dentro de dois anos, se tudo correr como planejado, o Brasil deverá começar a produzir módulos de semicondutores de última geração para equipar smartphones e aparelhos eletrônicos da chamada Internet das Coisas (IoT). A norte-americana Qualcomm, quinta maior empresa de semicondutores do planeta, anunciou em fevereiro a intenção de construir na região de Campinas, interior de São Paulo, uma unidade para produção de uma nova tecnologia batizada de QSiP (sigla de Qualcomm System in a Package). O componente, novidade no mercado global, foi criado pela companhia e será produzido em parceria com a fabricante taiwanesa de semicondutores USI, subsidiária do ASE Group, uma das maiores montadoras de chips do mundo.

“Decidimos trazer para o país um chipset [conjunto de chips] que não existe ainda no mundo, no lugar de instalar uma fábrica para produzir circuitos integrados como os que já são produzidos na Ásia”, destaca Rafael Steinhauser, presidente da Qualcomm para a América Latina. “O Brasil deve ser um dos primeiros países a habilitar essa tecnologia.” O novo dispositivo da Qualcomm é um módulo composto por cerca de 400 elementos, entre eles memória, processador, dispositivos de conectividade e sistemas de comunicação. “As principais vantagens do QSiP são a simplificação do projeto de smartphones, a rapidez no processo de lançamento de novos produtos e a economia de espaço [nos celulares], abrindo a possibilidade de fabricação de aparelhos mais finos, com apenas 6 milímetros, e o uso de baterias maiores”, explica Steinhauser.

Em visita à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) no mês passado para participar da aula inaugural da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (Feec), onde se graduou, o presidente global da Qualcomm, o brasileiro Cristiano Amon, esclareceu que a companhia será a parceira tecnológica do negócio e a USI ficará responsável pela montagem e gestão da fábrica. A escolha do local da unidade deve ocorrer ainda este ano e, mesmo sem a instalação da linha de montagem, a planta já começará a desenvolver algumas atividades, como o teste de componentes fabricados em outras unidades da USI. “Queremos que os primeiros smartphones com essa tecnologia estejam no mercado até o fim deste ano”, informou Amon. Para isso, os módulos QSiP terão de ser inicialmente importados da China.

Eduardo Cesar Protótipo do módulo que será produzido no país pela Qualcomm e USI…Eduardo Cesar

A criação da joint venture deve gerar em torno de 800 empregos, a maioria deles qualificados, e demandar investimentos de US$ 200 milhões (R$ 660 milhões) em cinco anos. Para se instalar no país, as empresas terão redução do Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICMS) e incentivos fiscais vinculados ao Processo Produtivo Básico (PPB), programa federal que concede benefícios a companhias que implantam no país parte de sua linha de fabricação.

O anúncio da nova fábrica animou o setor brasileiro de microeletrônica. Há algumas décadas o Brasil tenta, sem sucesso, tornar-se competitivo no mercado global de semicondutores. “Sem dúvida, essa indústria está muito atrasada no país. O setor foi extinto nos anos 1990, com o fim da reserva de mercado de informática decretada no governo Collor, e, apesar de ainda ser muito incipiente, passa hoje por seu melhor momento, seja em termos de faturamento, número de empresas ou tecnologias disponíveis”, aponta o engenheiro eletrônico Rogério Nunes, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Semicondutores (Abisemi). “Vejo com muito bons olhos a chegada da joint venture Qualcomm e USI. É interessante que elas venham produzir localmente um produto inovador do ponto de vista global.”

Para Nunes, o Brasil precisa participar de forma mais intensa da cadeia produtiva da indústria de semicondutores, que obteve uma receita mundial de US$ 419 bilhões no ano passado. A Abisemi estima que seus 11 associados – quatro deles voltados ao design de chips e sete dedicados à montagem de circuitos integrados – faturem por volta de US$ 1,5 bilhão anualmente, o que representa apenas 0,36% do faturamento global. “É muito pouco. Como o mercado brasileiro de tecnologia da informação [TI] é de cerca de 3,5% do montante global, em teoria temos espaço para aumentar em 10 vezes o faturamento do setor de semicondutores apenas considerando o mercado local”, sustenta Nunes.

Nabor Goulart / Agência Freelancer …técnicos da Ceitec durante estágio da fabricação de chipsNabor Goulart / Agência Freelancer

Déficit comercial
A baixa inserção brasileira nesse segmento, segundo especialistas, tem um custo elevado. O país importa anualmente cerca de US$ 3,6 bilhões em semicondutores e em 2017 teve um saldo negativo de US$ 23,8 bilhões na balança comercial do setor eletroeletrônico. “Além de gerar grande déficit para o país, a falta de um polo industrial forte de semicondutores torna o Brasil tecnologicamente vulnerável”, opina o físico Luís Fernandez Lopez, coordenador da rede ANSP (Academic Network at São Paulo), responsável pelo acesso das instituições paulistas de educação e pesquisa à internet. “A indústria de TI é uma das que mais crescem no mundo, e o chip é seu elemento básico. É fundamental sabermos projetar, construir e fabricar circuitos integrados.”

A cadeia produtiva do setor de semicondutores é formada por três elos. O projeto do esquema elétrico e o desenho dos circuitos impressos nos chips são feitos pelas design houses. A manufatura do wafer – o disco ultrafino de silício, de até 300 milímetros (mm) de diâmetro e com alto grau de pureza, que dá origem ao chip – cabe a indústrias conhecidas globalmente como foundries (do termo fundição, em inglês). Já a montagem final do produto, que inclui o encapsulamento (proteção física do chip para garantir uma conexão segura entre ele e as placas do circuito impresso) e a realização de testes, é executada por empresas de packaging – a unidade da Qualcomm se enquadra nessa categoria (ver infográfico).

“Um estudo internacional contratado pelo BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] no início dos anos 2000 revelou a importância do Brasil fazer parte da cadeia de semicondutores para buscar adensamento tecnológico e empregos de qualidade”, informa Maurício Neves, superintendente da Área de Planejamento do BNDES. “O diagnóstico mostrou que era preciso apoiar investimentos em todos os elos do ecossistema, ou seja, em design houses, no encapsulamento [ou packaging] e em foundries. E foi o que o banco fez.” Neves destaca que nenhum país do mundo conseguiu desenvolver sua indústria de semicondutores sem a presença e o apoio de longo prazo do governo.

léo ramos chaves Etapa final da produção de circuito integrado no laboratório do Instituto de Pesquisas Eldoradoléo ramos chaves

Os esforços do BNDES surtiram resultado, segundo o engenheiro eletricista Jacobus Swart, professor da Feec-Unicamp. “O Brasil está bem em termos de design houses e empresas de encapsulamento, mas estamos longe de ter uma foundry capaz de produzir wafers. As duas empresas criadas nos últimos anos no país com esse objetivo, a estatal Ceitec e a privada Unitec, enfrentam dificuldades”, conta Swart. “Essas companhias já receberam muito dinheiro do BNDES e da Finep [Financiadora de Estudos e Projetos], em forma de participação ou empréstimo, mas ainda não deslancharam em termos de produção de wafers.”

A Ceitec foi criada pelo governo federal em 2008 com o objetivo de ser a primeira fábrica brasileira de circuitos integrados (ver Pesquisa Fapesp nº 137). Dez anos depois, esse objetivo ainda não foi atingido. “Em geral, o projeto de novos chips é feito no Brasil, a fabricação do wafer é realizada fora e o final da produção acontece na Ceitec, além do encapsulamento, em certos casos”, esclarece o engenheiro mecânico Paulo de Tarso Mendes Luna, presidente da empresa.

Situada em Porto Alegre, a fábrica domina a produção de chips de 600 nanômetros (nm), classificados pelo mercado como de baixa densidade. “Para chips menores, uma parte do processo é executada fora do Brasil”, informa Luna – os módulos que a Qualcomm planeja produzir no país são de alta densidade. “A densidade do chip está relacionada à sua miniaturização. Quanto menor ele é, maior é o número de transistores e mais ampla sua funcionalidade. Computadores e telefones celulares utilizam normalmente chips de alta densidade”, explica Swart, da Unicamp. Ele destaca, no entanto, que há mercado no Brasil para circuitos integrados menos complexos, como os fabricados pela Ceitec. “É possível criar tecnologias mais simples, menos custosas, com esse nível de miniaturização. Poucas empresas no mundo fabricam semicondutores de alta densidade.”

Com capacidade para produzir cerca de 20 milhões de chips por mês, a Ceitec tem em seu portfólio sete circuitos integrados voltados à identificação de animais, pessoas e veículos, gestão de inventário, controle de ativos, entre outros. O governo destinou por volta de R$ 800 milhões ao negócio. “É um valor inferior ao que se investe para se implantar uma indústria desse segmento, que remonta a mais de US$ 1 bilhão”, sustenta Luna. A empresa acumula prejuízo de R$ 40 milhões, mas espera tornar-se lucrativa em 2021. “A indústria de semicondutores leva, em geral, de 10 a 15 anos para atingir seu ponto de equilíbrio.”

Fábrica de wafers
Outro projeto ambicioso da área que ainda não decolou é a Unitec Semicondutores. Com sede em Ribeirão das Neves, nos arredores de Belo Horizonte, a empresa, criada em 2012, fazia parte do conglomerado do empresário Eike Batista e nasceu como Six Semicondutores. Em 2014, quando os negócios de Batista entraram em crise, sua parte no empreendimento (33%) foi vendida ao grupo argentino Corporación América, que controla os aeroportos de Brasília e Natal.

“A Unitec foi projetada para atuar em todo o processo produtivo de chips, desde o projeto até sua aplicação em soluções inteligentes. Hoje, operamos por meio das etapas de design e encapsulamento”, ressalta Frederico Blumenschein, presidente da empresa. A operação parcial ocorre porque a fábrica ainda não está concluída, apesar de já ter recebido investimentos de cerca de R$ 1 bilhão, dos quais R$ 245 milhões do BNDES, dono de 33% do negócio. A Unitec tem expectativa de obter novos investimentos para conclusão de sua planta fabril.

Quando estiver totalmente operacional, a Unitec poderá fabricar até 130 mil wafers por ano – cada placa dá origem a milhares de chips. Ela será especializada na produção de circuitos integrados de 90 nm e 130 nm com tecnologia CMOS (Complementary Metal Oxide Semiconductor), licenciada da IBM Corporation, multinacional da área de TI que detém 18,8% das ações da empresa.

“Base dos circuitos digitais modernos, a tecnologia CMOS é mais comumente utilizada em microprocessadores, memórias e blocos de comunicação por radiofrequência”, explica o presidente da Unitec. A companhia já tem dois projetos de chips, um voltado para rastreamento logístico e outro para iluminação pública. “Os protótipos demonstraram sucesso na fase de testes. Em um primeiro momento, poderão ser produzidos com apoio de parceiros. Assim que a fábrica for concluída, serão feitos em Ribeirão das Neves.”

Segundo Ricardo Rivera, chefe do Departamento de Indústrias de Tecnologia de Informação e Comunicação (TIC) do BNDES, a Unitec não foi concebida para ser uma foundry pura nos moldes das tradicionais existentes na Ásia, que produzem chips em larga escala para o mercado de computadores e smartphones. “A Unitec é um modelo híbrido, uma fabless com capacidade fabril. Do ponto de vista do posicionamento de mercado, para ela dar certo é muito importante que tenha capacidade de design para desenvolver chips que atendam a diversos segmentos, que podem ir do IoT ao automotivo e saúde”, declara. Ao mesmo tempo, defende Rivera, uma vez que ela trabalha com uma tecnologia de processos que não é de última geração, é preciso que tenha um mix de produtos que não seja exclusivamente de baixo valor agregado. Fabless são empresas que projetam chips, colocam neles sua marca e gerenciam todo o negócio, mas fazem a fabricação dos produtos com terceiros, já que não têm unidade fabril – esse é o modelo em que a Qualcomm usualmente se encaixa.

Embora ainda esteja longe de possuir uma foundry totalmente operacional, o Brasil já conta com uma rede formada por design houses e empresas de encapsulamento, em diferentes graus de maturação. No primeiro grupo, um dos destaques é o Instituto de Pesquisas Eldorado, de Campinas, organização sem fins econômicos referência em pesquisa e desenvolvimento na área de TI. “Somos especializados em projetos de ponta de circuitos integrados. Para isso, contamos com 60 projetistas, sendo a maioria deles formada pelo programa CI Brasil”, conta o engenheiro eletricista José Eduardo Bertuzzo, gerente executivo da área de Tecnologia do Eldorado.

O CI Brasil foi uma iniciativa implementada em 2005 pelo governo federal com empresas e o setor acadêmico com o objetivo de criar um ecossistema em microeletrônica capaz de inserir o país no cenário mundial de semicondutores. Um de seus eixos era expandir a formação de especialistas em design de chips. “O programa formou mais de 800 projetistas e deu origem a cerca de duas dezenas de design houses”, declara Bertuzzo. “O projeto de circuitos integrados é uma área em que podemos nos destacar, pois temos projetistas talentosos no Brasil.”

Laboratório de ponta
No final de 2017, o Eldorado inaugurou um laboratório para prototipagem de chips resultado de um convênio de cooperação tecnológica com a Smart Modular Technologies, de Atibaia (SP), uma das principais companhias de encapsulamento do país, especializada na produção de memórias para computadores e celulares. Dotado de salas limpas (ambiente superfiltrado com quantidade mínima de partículas por metro cúbico) como as usadas para manufatura e testes de chips, a unidade está sendo utilizada para desenvolvimento de novas tecnologias em semicondutores e capacitação de recursos humanos.

A instalação do laboratório integra o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Semicondutores (Padis), outra iniciativa do governo federal para incentivar a indústria nacional de chips. Sediada em Newark, nos Estados Unidos, a Smart possui unidades em oito países. A fábrica brasileira é a única que executa as etapas de corte, encapsulamento e teste de circuitos integrados, com tecnologia nacional. Seu principal produto é um chip avançado de memória para smartphone chamado EMCP (Embeded Multimedia Chip Package).

Eduardo Rocha / RR Foto Funcionário da Unitec trabalha no encapsulamento de etiquetas de identificação por radiofrequênciaEduardo Rocha / RR Foto

O Complexo Tecnosinos, localizado dentro da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), a 35 quilômetros de Porto Alegre, é a sede de outra empresa dedicada ao encapsulamento e teste de circuitos integrados. Joint venture formada pela brasileira Parit Participações e a sul-coreana Hana Micron, a HT Micron foi criada em 2009 com apoio do governo brasileiro (via BNDES e Finep) para ser uma das grandes do setor. Em 2014, inaugurou sua fábrica com a expectativa de produção de 360 milhões de chips por ano, a partir de dois ou três anos. Até agora isso não se concretizou.

De acordo com o site da empresa, que não respondeu aos pedidos de entrevista da reportagem, “já foram investidos R$ 110 milhões no empreendimento, sendo previstos mais R$ 260 milhões ao longo dos próximos anos”. No início de 2017, como resultado das dificuldades operacionais que a HT Micron vinha enfrentando, o engenheiro elétrico Ricardo Felizzola, que havia comandado a empresa por seis anos, foi substituído na presidência pelo sul-coreano Chris Ryu, ainda à frente do negócio.

Para Luís Fernandes Lopez, da Rede ANSP, os percalços sofridos nos últimos anos pela maioria dos projetos na área de semicondutores desenvolvidos no país se deve, em boa medida, à falta de uma política de Estado. “Uma indústria de semicondutores, que é uma indústria de base, leva anos para se estabelecer. Sem uma política industrial coordenada que suporte esse ciclo de maturação, com o comprometimento de desembolsos a médio e longo prazo e o estabelecimento de metas por parte das empresas, é muito difícil desenvolver essa indústria”, afirma Lopez. “Sem isso, estaremos sempre patinando num setor tão vital como o de semicondutores.”

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