Em plena turbulência econômica dos anos 80 e ainda sob o peso do regime militar, a FAPESP inaugurou uma nova fase em que, a um só tempo, confirmou sua vocação empreendedora no âmbito científico e alargou os limites de sua presença na área tecnológica. Duas batalhas foram decisivas para isso: a mudança no sistema de liberação de verbas, em 1983, e a reafirmação dos objetivos da entidade na Assembléia Constituinte paulista de 1989. No começo da década, as nuvens estavam cinzentas. Sob o impacto do segundo choque do petróleo (de 1979), a economia desacelerou-se, o endividamento externo cresceu, a inflação começou a disparar (chegando a 235% anuais em 1985), fazendo nascer o Plano Cruzado (em 1986) – e o país entrou em moratória pouco depois.As atividades de pesquisa sofreram baques consideráveis. Os investimentos minguaram, os salários eram baixos, equipes se desmantelavam, laboratórios ficaram à beira do sucateamento. Foi nesse clima que a FAPESP reforçou a luta pela retomada da pesquisa. Pesquisadores, professores e políticos juntaram- se nessa cruzada, inicialmente para evitar que eles fossem engolidos pela inflação. Era preciso regularizar o repasse das verbas e garantir que isto fosse feito mensalmente (em duodécimos). Ganhou corpo, então, a idéia de uma emenda constitucional.
O autor da proposta de emenda foi o então deputado Fernando Vasco Leça do Nascimento, hoje titular da Secretaria do Emprego e Relações do Trabalho e membro do atual Conselho Superior da FAPESP. Ele recorda que se interessou vivamente pelo assunto quando participou, entre 17 e 18 de agosto de 1983, de um simpósio realizado na Assembléia Legislativa. “Participei dessa jornada em que a questão FAPESP foi muito recorrente, abordando-se a redução dos recursos e a incerteza quanto aos repasses”, rememora o secretário. Advogado, ele mergulhou nos meandros da questão e elaborou a proposta que, apresentada duas vezes em plenário, foi finalmente aprovada em 16 de dezembro de 1983. Consagrando os duodécimos no artigo 130 da Constituição então em vigor, tornou-se conhecida como Emenda Leça.
Em tempos de abertura política, já no fim da década, os investimentos em pesquisa ganharam outro considerável estímulo, dissipando-se as nuvens da década anterior. Seis anos depois da Emenda Leça, o espectro científico paulista uniu-se novamente, no âmbito da Assembléia Constituinte do estado, para obter a duplicação da verba orçamentária da Fundação, uma antiga aspiração da comunidade, que agora contabilizava 50% dos pesquisadores do país e mais de 50% de toda a produção científica brasileira.
A urdidura política que permitiu essa vitória foi trabalhosa. Muitas entidades (de associações de docentes a órgãos empresariais) compareceram com sugestões. Se todas concordavam quanto à elevação dos recursos, diferiam em aspectos ligados à destinação de verbas, a mudanças na estrutura e na política interna da Fundação e à participação de representantes do meio científico e empresarial no Conselho da entidade. Nessa fase de intensos debates, parecia ameaçada a autonomia da FAPESP: muitas propostas não continham a expressão “privativa administração” de recursos constante da Constituição de 1947; outras subordinavam a FAPESP ao Conselho Estadual de Ciência e Tecnologia; houve até mesmo quem propusesse aumentar, não para 1%, mas para 2% o repasse de verbas, desde que elas fossem investidas em empresas,“de preferência” nacionais.
A atuação da comunidade foi fundamental – à frente Alberto Carvalho da Silva, então diretor presidente da FAPESP – para preservar a estrutura e a missão originais da Fundação. Chegou-se, finalmente, a um consenso, com o apoio, entre outros,dos deputados constituintes Fernando Leça (mais uma vez ao lado dos pesquisadores), de José Dirceu (atual presidente do PT e deputado federal) e de Aloysio Nunes Ferreira Filho (ex-ministro e deputado federal pelo PSDB), que apresentara uma emenda ao projeto da Constituição paulista. O artigo 271 dobrou a dotação orçamentária da FAPESP, para aplicação em “desenvolvimento científico e tecnológico” (não mais somente em “pesquisa científica”) e manteve sua autonomia e o caráter de instituição pública. Ficou assim redigido:
Artigo 271 – O Estado destinará o mínimo de um por cento de sua receita tributária à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, como renda de sua privativa administração, para aplicação em desenvolvimento científico e tecnológico.
Parágrafo único – A dotação fixada no caput, excluída a parcela de transferência aos Municípios, de acordo com o art. 158, IV, da Constituição Federal, será transferida mensalmente, devendo o percentual ser calculado sobre a arrecadação do mês de referência e ser pago no mês subseqüente.
Essa injeção de recursos regulares representou um ponto de inflexão na vida da FAPESP, que pôde delinear novas modalidades de fomento à pesquisa, sem abandonar a concessão de bolsas e auxílios individuais – o número de bolsas e auxílios (somados) passou de 2.400, em 1984, para 8 mil em 1996. O alcance dos projetos especiais ampliou-se e surgiram os projetos temáticos de equipe, categoria de financiamento criada em 1990 para apoiar pesquisas multidisciplinares, com equipes mais numerosas e metas mais ambiciosas que os trabalhos isolados. Rompia-se o paradigma da pesquisa individual. Até hoje, a Fundação apoiou 634 temáticos. Pelo pioneirismo e potencial inovador, um projeto ícone do período foi a ANSP (An Academic Network at São Paulo), embrião da Internet no Brasil. Fincavam-se os alicerces sobre os quais se assentariam, mais tarde, programas como o Genoma-FAPESP, desenhado para funcionar como um consórcio de institutos virtuais.
A Fundação acertava o passo com a modernidade e afiava-se para encarar as profundas transformações que se avizinhavam, provocadas especialmente pela abertura comercial de 1990. Os empresários nacionais passaram a competir não apenas no exterior, mas também internamente, enfrentando a invasão de mercadorias estrangeiras e sofrendo o choque da globalização – como o desenvolvimento industrial brasileiro das últimas décadas, sobretudo nas grandes empresas, baseara-se na compra de know-how externo, o aparato tecnológico encontrava-se defasado em vários setores. O panorama econômico era um campo aberto e desafiador a novas propostas, entre as quais despontava a articulação academia-empresa. Um novo caminho começaria a ser trilhado.
**
Uma conversa de bastidores
“O aumento do percentual foi uma reivindicação do CTA da FAPESP, cujo diretor presidente era o dr. Alberto Carvalho da Silva (1984-1993). Ele me procurou e eu disse: ‘Está perfeito, acho que temos de batalhar por isso’. Estávamos na época da Constituinte. O líder do governo na Assembléia era o Aloysio Nunes. Aí eu falei com o governador sobre o assunto e ele quis mais informações sobre os trabalhos da FAPESP. Me lembro bem quando fomos à Fundação para uma apresentação, porque foi no dia seguinte ao enterro do ex-ministro Dílson Funaro (da Fazenda, comandante do Plano Cruzado) com quem eu havia trabalhado. O governador ficou impressionado e na saída me disse: ‘Está bem, você tem razão, vamos falar com o Aloysio e batalhar pelo aumento do percentual’. E assim foi feito. Me lembro também que o dr. Alberto e o dr.Fava de Moraes iam muito à Assembléia, para articular. Os deputados, em geral, não gostam de vincular recursos, mas me recordo que havia um clima favorável (à proposta). O governador Quércia tinha muita força na Assembléia e o Aloysio (então no PMDB) trabalhou muito bem”.
Depoimento feito a esta revista por Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, secretário da Ciência e Tecnologia no governo Orestes Quércia e conselheiro da FAPESP entre 1992 e 1995.
**
Ciência,marketing e tecnologia
Diretor-científico da FAPESP entre 1985 e 1993, Flávio Fava de Moraes (depois reitor da USP), rememora a visita de Orestes Quércia à entidade, na fase de convencimento do governador à causa da duplicação da dotação orçamentária, que tramitaria na Assembléia Constituinte paulista.“ Quando recebemos o sinal verde de que o governador aceitava a tese, começamos a trabalhar uma estratégia para criarmos um acontecimento em que ele pudesse exteriorizar sua aprovação”, conta Fava. Isto aconteceu no prédio da FAPESP, numa reunião do Conselho Superior que comemorava a inauguração da Rede ANSP (embrião da Internet no Brasil). De acordo com Fava, foi montado, no Centro de Processamento de Dados da instituição, “não digo um show”, mas uma mostra do grande significado desse projeto, com uma explicação detalhada de como as redes internacionais operavam e como se trocavam mensagens com os bolsistas do exterior.
Além de expor a Quércia o impacto dessa tecnologia revolucionária para a época, Fava apresentou uma bateria de projetos da história da FAPESP que uniam relevância científica e apelo de marketing. Entre eles, o do cancro cítrico,cuja erradicação elevou as exportações de suco de laranja, e o de levantamento das águas subterrâneas no estado de São Paulo. “E assim, naquele dia, o governador Quércia declarou que dava todo apoio do Executivo à reivindicação da comunidade científica de dobrar a dotação orçamentária da FAPESP.
O secretário da Fazenda, Frederico Mazzuchelli, também apoiou”, arremata Fava, em depoimento ao livro FAPESP – Fronteira da Prática Científica no Brasil: A Instituição e Memórias.
Republicar