Fenando Reinach
Os países da América Latina estão passando por rápidas e profundas transformações tanto políticas quanto econômicas. Têm, agora, presidentes eleitos democraticamente, privatizações em larga escala, suas economias estão abertas a investimentos e produtos do exterior, e têm estabilidade. Todas essas transformações exigem também uma mudança de postura por parte da comunidade científica e das universidades desses países. Elas tanto podem se tornar fortes partícipes desse processo de desenvolvimento econômico ou ficarem à margem, presas a uma estrutura ineficiente, incapaz de dar respostas às novas demandas.
Durante os anos 70 e 80, muitos países da região viviam sob regime militar. Suas economias eram fechadas, com altas taxas de importação e restrições ao ingresso de capitais. O mercado interno era reservado aos produtores locais, que estavam protegidos da concorrência externa. A produção industrial baseava-se em tecnologia importada já obsoleta nos países desenvolvidos. Empresas estatais, financiadas com dinheiro público, tinham o monopólio assegurado por lei, em áreas como petróleo, siderurgia, telecomunicação e geração de energia elétrica.
Durante todo aquele período, embora não houvesse necessidade econômica real de se investir em Ciência, a retórica “ciência como base do desenvolvimento” manteve-a viva. Essa retórica atendia os objetivos nacionalistas de governos e foi usada pelas indústrias locais para manter o mercado fechado. Foi bastante usada, também, pelos cientistas: permitia que recursos continuassem fluindo para o setor, possibilitando a formação de uma expressiva comunidade científica e o desenvolvimento de ciência básica. Como resultado, Brasil, Argentina, Chile e México possuem capacitadas comunidades científicas, localizadas principalmente em universidades públicas e isoladas do setor industrial.
No final dos anos 80, aquele modelo econômico entrou em colapso na região. A dívida externa e a inflação saíram do controle, a defasagem tecnológica aumentou e as empresas estatais mostraram-se incapazes de cumprir seus papéis. Novo governos eleitos implantaram uma política de abertura de mercado. Companhias estatais foram privatizadas, o mercado foi aberto à concorrência internacional e um grande afluxo de capital está transformando muitos setores dessas economias.
Os consumidores podem beneficiar-se de produtos melhores e mais baratos e em breve se beneficiarão de melhores serviços. Entretanto, uma expressiva fração da economia está lutando pela sua sobrevivência. Setores inteiros estão sendo alijados pela concorrência internacional, enquanto outros estão desesperadamente tentando sobreviver tornando-se mais competitivos. Para forçar a competição, os governos de muitos países reduziram gradualmente as taxas de importação. Essas reduções, aliada à entrada de capital de empresas estrangeiras, estão forçando o setor produtivo nacional a se modernizar.
Essa pressão econômica mudará as relações entre Ciência e sociedade. A demanda por novas tecnologias será suprida, em parte, pela importação. Entretanto, uma parcela da demanda convergirá para a universidade e para a comunidade científica, até como uma cobrança de retorno dos investimentos feitos. Em São Paulo, as universidades públicas recebem cerca de 10% da arrecadação estadual; cedo ou tarde elas terão que mostrar na prática o que está sendo feito desses recursos.
Essa demanda nos forçará a um confronto com a nova realidade econômica. Podem as universidades continuar em completo isolamento do setor industrial, concentrando todos os seus esforços no ensino e na ciência básica? Ou deveriam elas despender uma parcela de seus esforços na geração e transferência de novas tecnologias para o setor industrial? Embora muitos cientistas concordem que essa mudança deva ser feita, poucos fazem alguma coisa para que isso aconteça.
Para mover-se nesta direção, as universidades terão que aprender um novo “set of skills”. Instituições onde o trabalho de consultoria é freqüentemente proibido terão que aprender como realizá-lo preservando a qualidade acadêmica e a da ciência básica. Essas mudanças já são aparentes em muitos países. No Chile, professores estão sendo estimulados a gerar parte de seus recursos através de trabalhos de consultoria. Agências de financiamento, como a FAPESP e o PADCT, no Brasil, têm programas de apoio a projetos de pesquisa baseados na colaboração direta entre indústria e universidades. Na Argentina, um grande número de pequenas empresas de biotecnologia foram criadas por cientistas.
Se a comunidade científica não responder bem a essas mudanças, corre o risco de ver diminuir o suporte da sociedade a universidades. Existe também o risco de surgir um movimento a favor da privatização das universidades públicas. Pressões econômicas também alterarão os meios de alocação de recursos às universidades e à pesquisa científica, exigindo mudanças no atual modelo de estrutura administrativa das universidades.
A Ciência na América Latina, enfim, encontra-se numa difícil encruzilhada. Como um otimista, vejo a situação como uma oportunidade única. As mudanças econômicas oferecem a perfeita combinação de pressão e incentivo para que se promova um enorme ganho na qualidade da Ciência produzida na América Latina e nos seus possíveis efeitos no desenvolvimento da região. Essa chance não pode ser desperdiçada. A comunidade científica na América Latina está como uma espécie confrontada com enormes mudanças no seu ambiente: se for flexível o suficiente para adaptar-se, evoluirá; caso contrário, poderá extinguir-se.
Fenando Reinach é professor do Instituto de Química da USP. O artigo é um resumo de texto publicado na revista Nature, edição de 16 de abril passado.
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