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Covid-19

Os efeitos do apoio dos EUA à quebra de patentes de vacinas

Entidades e especialistas divergem sobre as consequências da nova posição assumida pela administração Joe Biden

Manifestantes protestam a favor da suspensão de patentes de vacinas contra a Covid-19 na Cidade do Cabo, África do Sul

GettyImages

Em uma decisão considerada histórica por analistas, o governo dos Estados Unidos anunciou no início de maio apoio ao pleito liderado por Índia e África do Sul à Organização Mundial do Comércio (OMC) para que o órgão recomende a dispensa temporária dos direitos de propriedade intelectual de medicamentos e vacinas usados no tratamento e na prevenção da Covid-19 até que a maior parte da população global seja imunizada. Para ter efeito prático, o licenciamento compulsório precisará ser aprovado por consenso na OMC, um processo que, segundo especialistas, poderá levar meses até ser concluído.

A posição norte-americana foi comemorada pelos defensores da quebra de patentes dos imunizantes, medida vista por eles como fundamental para elevar a produção de vacinas no mundo e, assim, fazê-las chegar aos países pobres. “Este é um momento monumental na luta contra a Covid-19”, tuitou Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), acrescentando que a decisão do governo do democrata Joe Biden “é um exemplo poderoso da liderança dos Estados Unidos para enfrentar os desafios globais de saúde.”

Representantes dos laboratórios farmacêuticos, por sua vez, fizeram duras críticas à decisão. A Federação Internacional de Fabricantes e Associações Farmacêuticas (IFPMA) afirmou em nota que a posição do governo Biden “é uma resposta simples, mas errada para o que é um problema complexo (…) A renúncia de patentes de vacinas contra a Covid-19 não aumentará a produção nem fornecerá soluções para combater essa crise de saúde global”.

O governo dos Estados Unidos justificou sua nova posição em razão da situação excepcional por que passa a humanidade. “Essa é uma crise sanitária global, e as circunstâncias extraordinárias da pandemia de Covid-19 pedem ações extraordinárias”, anunciou em comunicado a representante comercial norte-americana Katherine Tai. O texto informa também que “o governo [norte-americano] acredita fortemente nas proteções da propriedade intelectual, mas, para que a pandemia possa ter fim, defende o levantamento dessas proteções para vacinas anticovid”.

Para o advogado Matheus Ferreira Bezerra, professor do curso de direito da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e autor da pesquisa de mestrado “A quebra de patentes de medicamentos como instrumento de realização de direitos”, transformada no livro Patente de medicamentos (editora Juruá, 2010), a posição do governo dos Estados Unidos é acertada, mas pode provocar alguma insegurança.

“Vivemos uma calamidade mundial e a decisão é bem-vinda, pois poderá acelerar a produção de imunizantes. No entanto, intervenções na propriedade industrial causam insegurança. Quando se ameaça quebrar patente de um medicamento ou imunizante, como é o caso de agora, se interfere no lucro de algumas empresas, e isso gera um desestímulo. A iniciativa privada trabalha para ter retorno econômico. Se algo não dá retorno, ela não tem interesse em produzir.”

Elizabeth de Carvalhaes, diretora-executiva da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), destaca que, com a eventual suspensão das patentes, os investidores podem deixar de financiar novas pesquisas de drogas. “Afinal, perderão o direito de explorar a invenção com exclusividade por um tempo determinado e, assim, recuperar os investimentos feitos”, argumenta.

Segundo ela, algumas das novas tecnologias usadas nos imunizantes, como as de vetor viral e RNA mensageiro, já vinham sendo estudadas há anos pela indústria e pelos cientistas e foram adaptadas para as vacinas contra a Covid-19. “Isso só foi possível graças a um sistema de patentes que traz segurança para aqueles que investem na busca de novos medicamentos e vacinas.”

Carvalhaes afirma ainda que é pouco provável que o licenciamento compulsório das patentes garanta o aumento na disponibilidade de vacinas contra a Covid-19 na velocidade que a sociedade almeja. “Hoje, os maiores entraves à elevação na fabricação e distribuição de vacinas são a capacidade produtiva dos países, o acesso aos insumos farmacêuticos ativos [IFA] e outros ingredientes usados na fabricação dos imunizantes, o tempo entre a produção e a distribuição e o alastramento do vírus em suas variantes”, diz (ver Pesquisa FAPESP no 303).

Financiamento
Defensores da suspensão das patentes reconhecem que o impacto em termos de produção e disponibilidade de vacinas contra a Covid-19 não deva ser imediato, mas recorrem a outro argumento em favor de sua tese: praticamente todos os imunizantes desenvolvidos e já aprovados tiveram recursos públicos para seu financiamento. Por isso, não deveriam ser considerados como propriedade exclusiva das empresas, mas como bens públicos globais.

O laboratório norte-americano Moderna, fabricante de uma vacina aprovada contra a Covid-19, contou com fundos federais para desenvolver o imunizante. A empresa recebeu cerca de US$ 1,25 bilhão (R$ 6,5 bilhões) da Autoridade Biomédica de Pesquisa e Desenvolvimento Avançado (Barda) para financiar estudos clínicos, acelerar a produção e promover licenciamento do imunizante. A Barda é uma divisão do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos.

O mesmo ocorreu com a vacina do consórcio formado pela Universidade de Oxford, do Reino Unido, e a farmacêutica anglo-sueca AstraZeneca, assim como a parceria entre a startup de biotecnologia alemã BioNTech e o laboratório norte-americano Pfizer. O desenvolvimento dos dois imunizantes foi parcialmente financiado com recursos dos governos de Reino Unido e Alemanha, respectivamente.

Efeito dominó
A mudança de posição dos Estados Unidos, sede de grandes multinacionais farmacêuticas, deve fazer com que alguns países se reposicionem no debate global sobre a quebra de patentes das vacinas. A União Europeia, antes contrária ao licenciamento compulsório, já sinalizou que pode seguir o mesmo caminho. “A União Europeia está disposta a discutir qualquer proposta que responda à crise de forma efetiva e pragmática”, declarou a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. “Estamos dispostos a debater como a proposta dos Estados Unidos para uma suspensão da proteção à propriedade intelectual de vacinas poderia ajudar a alcançar esse objetivo.”

O Brasil, um dos poucos países em desenvolvimento contrário à suspensão de patentes de vacinas contra a Covid-19, poderá rever sua posição. O país tem se posicionado a favor de uma terceira via, encabeçada por Canadá e Chile. Essa proposta, baseada no acordo Trips [Tratado sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio], prevê a possibilidade de desenvolvedores e fabricantes de vacinas transferirem tecnologia, conhecimento e know-how para produção dos imunizantes em nações em desenvolvimento desde que “qualquer barreira comercial à produção e à distribuição desses produtos, inclusive as relacionadas à propriedade intelectual”, seja resolvida “de forma consensual”.

Um dia após o anúncio norte-americano, o chanceler brasileiro Carlos França declarou, em uma audiência pública na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado, que “nada impede que a posição que o Executivo tem hoje [de apoio à terceira via] seja atualizada amanhã, se nessa atualização estiverem refletidos os mais legítimos interesses do Brasil”.

Procurado pela reportagem, o Ministério das Relações Exteriores (MRE) respondeu com uma nota, assinada conjuntamente com os ministérios da Saúde, Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) e Economia, informando que “o governo brasileiro recebeu com satisfação a disposição dos EUA para negociar, no âmbito da OMC, solução multilateral que contribua para o combate à Covid-19, bem como para intensificar seus esforços para aumentar a produção e distribuição de insumos e vacinas em âmbito global”.

O comunicado prossegue afirmando que “o Brasil continuará a trabalhar com a diretora-geral Ngozi Okonjo-Iweala e com o conjunto dos membros da organização para a construção de solução consensual e cooperativa que viabilize a aceleração da produção e disseminação de vacinas contra a Covid-19 no menor prazo possível”. E conclui: “Nesse contexto, é importante recordar que o licenciamento compulsório de patentes já é uma possibilidade, conforme previsto no arcabouço normativo brasileiro, que é consistente com o Acordo Trips”.

Livro
BEZERRA, M. F. Patente de medicamentos ­– quebra de patente como instrumento de realização de direitos. Editora Juruá, 2010.

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