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COVID-19

Quebra de patentes em debate

Para ter resultados efetivos, a suspensão dos direitos de propriedade intelectual das vacinas exige a superação de barreiras tecnológicas e produtivas

A organização Médicos sem Fronteiras pede a renúncia a patentes de remédios contra a Covid-19 na frente do prédio da OMC, em Genebra

Denis Balibouse / Reuters / Fotoarena

O ritmo lento da vacinação contra Covid-19 no mundo, principalmente em países de renda baixa e média, trouxe à tona a discussão sobre a quebra de patente desses imunizantes. A suspensão dos direitos de propriedade intelectual de um produto farmacêutico é sempre um tema polêmico que gera debates acalorados, mas cujos efeitos práticos ficam normalmente relegados a um segundo plano do embate público.

No caso das vacinas para combater o vírus Sars-CoV-2, sustentam especialistas, barreiras institucionais, tecnológicas e produtivas precisariam ser superadas para que um eventual licenciamento compulsório se traduzisse em aumento efetivo da produção e ampliação de sua oferta. O primeiro dos obstáculos é político. Em outubro de 2020, Índia e África do Sul solicitaram à Organização Mundial do Comércio (OMC) que a instituição recomendasse uma dispensa temporária dos direitos de propriedade intelectual de medicamentos e vacinas usados para a Covid-19. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e mais de 100 países de médio ou baixo desenvolvimento apoiaram a iniciativa. O Brasil foi voz dissonante nesse grupo e se aliou às nações ricas, contrárias à medida. As discussões prosseguem.

Os países podem optar por atitudes isoladas, mas uma ação conjunta, com o apoio da OMC, aumenta o poder de negociação. O Tratado sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, conhecido como Trips, da OMC, prevê que, antes que um país ou um conjunto de países decretem a licença compulsória de uma patente, os proponentes devem estabelecer uma tentativa de negociação com o titular da propriedade intelectual. Havendo acordo, fixa-se uma renúncia dos direitos por tempo determinado.

Entrevista: Soraya Smaili
00:00 / 20:27

“Uma solução diplomática conjunta com vários países ou junto à OMS permite aos proponentes negociar melhores condições comerciais, cooperação produtiva e transferência de tecnologia”, resume a farmacêutica-bioquímica Soraya Soubhi Smaili, reitora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Caso não haja acordo, um licenciamento compulsório unilateral obriga o país proponente a estabelecer os meios de obter o produto. Para isso, é preciso ter capacidade tecnológica e produtiva ou fornecedores internacionais de produtos genéricos disponíveis.

No passado, o Brasil trilhou os dois caminhos a fim de obter medicamentos para tratar pacientes infectados pela Aids. Em 2001, o então ministro da Saúde José Serra iniciou o processo de quebra de patentes das drogas Efavirenz e Nelfinavir, pertencentes a Merck Sharp & Dohme e Roche, respectivamente. As empresas se dispuseram a um acordo e reduziram os preços dos produtos temporariamente. Em 2007, o ministro da Saúde José Gomes Temporão não chegou a um acordo com a Merck e efetivou a quebra de patente do Efavirenz.

A situação atual, entretanto, é bem mais complexa. Em 2001 e 2007, a capacidade produtiva global dos medicamentos contra Aids era maior que a demanda. Hoje a produção de vacinas contra Covid-19 é inferior à demanda. Com isso, não há de onde importar insumos.

No Brasil são três os laboratórios capazes de fabricar vacinas: o Instituto Butantan, em São Paulo, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, e a Fundação Ezequiel Dias (Funed), vinculada à Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais. A Funed tem capacidade produtiva limitada, a Fiocruz já está comprometida com o imunizante do consórcio multinacional Oxford/AstraZeneca e o Butantan com a CoronaVac, da chinesa Sinovac. O estabelecimento de novas capacidades produtivas no Brasil demandaria, segundo especialistas, investimentos públicos significativos e levaria tempo até ser concluída. A construção da nova fábrica do Butantan para produzir a CoronaVac foi iniciada em novembro de 2020 e só está prevista para ser concluída em outubro, após investimentos estimados em R$ 180 milhões.

Jessica Rinaldi / The Boston Globe / Getty Images Ativistas na frente da sede da Moderna, nos Estados Unidos, exigem a suspensão dos direitos de propriedade intelectual da vacinaJessica Rinaldi / The Boston Globe / Getty Images

Em manifestações públicas recentes no Senado Federal, Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan, e Nísia Trindade Lima, presidente da Fiocruz, confirmaram que as respectivas instituições não dispõem de infraestrutura capaz de absorver novas rotas de fabricação e gerar um acesso mais rápido às vacinas em caso de uma quebra de patentes. No setor privado, nenhum laboratório farmacêutico instalado no país detém know-how tecnológico para produzir imunizantes e as empresas que produzem vacinas veterinárias precisariam ter seus processos fabris muito aprimorados para atender às rígidas exigências de segurança sanitárias para a produção de inoculantes humanos.

Apesar do contexto desfavorável, Smaili defende uma mudança de posição do Brasil na OMC e o apoio à iniciativa da Índia e África do Sul de licenciamento das patentes dos imunizantes contra Covid-19. A Índia, por sinal, poderá se beneficiar de eventual quebra de patentes, uma vez que detém estrutura produtiva e está, inclusive, exportando vacinas.

A flexibilização global das patentes poderia gerar investimentos internacionais em novas capacidades produtivas e elevar a oferta global de vacinas, facilitando o acesso do Brasil ao produto. Além disso, aumentaria a possibilidade de fabricação em mais países, além do Brasil. Isso aconteceu, em alguma medida, quando da quebra de patentes de medicamentos para o tratamento da Aids no Brasil e na Índia na primeira década deste século.

A ação a favor da suspensão dos direitos de propriedade intelectual das vacinas contra Covid-19 ganha importância diante de um provável cenário de imunização periódica da população nos próximos anos. “É uma importante carta na mesa, capaz de aumentar consideravelmente o poder de barganha dos países emergentes nas negociações internacionais para obter acesso às vacinas”, diz a pesquisadora da Unifesp.

Segundo Smaili, se a medida resultar em acordos comerciais mais acessíveis, já será um ganho, como ocorreu em 2001 com as drogas do coquetel de combate à Aids. A reitora da Unifesp avalia que o Brasil deve buscar uma solução negociada, mas, para ter credibilidade no embate diplomático, a quebra de patentes e a produção local precisam ser percebidas como possibilidades reais. Para isso, o país deve aumentar o investimento em ciência e tecnologia e mostrar planejamento e capacidade de agir, caso adote a solução.

Krishna Udayakumar, diretor associado de inovação do Duke Global Health Institute, da Universidade Duke, nos Estados Unidos, avalia a fabricação de vacinas como um processo complexo que requer conhecimento especializado, know-how e cadeias de suprimentos eficazes. “É improvável que a renúncia aos direitos de patente, por si só, leve a um aumento significativo ou urgente na fabricação de vacinas”, pondera.

Para o médico, a falta de coordenação entre os setores público e privado pode gerar ineficiências ao processo, com competição descoordenada por recursos e matérias-primas escassas. “Existem modelos de parcerias público-privadas bem-sucedidos que levam a melhores resultados de saúde para todos”, declarou Udayakumar a Pesquisa FAPESP.

Nenhum país adotou o licenciamento compulsório de patentes. Espera-se que soluções pactuadas possam surgir na OMC

Elizabeth de Carvalhaes, presidente-executiva da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), destaca que houve um imenso esforço da indústria para desenvolver soluções rápidas para a pandemia, o que só foi possível graças ao sistema de inovação sustentado pelos direitos de propriedade intelectual. “A flexibilização de patentes pode ter efeitos negativos sobre a confiança no sistema de propriedade intelectual, que funciona bem e permite que a indústria realize parcerias com universidades, centros de pesquisa e outras empresas”, diz. Carvalhaes argumenta ainda que a indústria farmacêutica já desenvolve parcerias com empresas de vários países para aumentar a capacidade de produção.

Outro aspecto que restringe a produção e a disponibilidade de vacinas contra Covid-19 é o acesso limitado aos insumos usados na fabricação dos imunizantes, destaca Nelson Mussolini, presidente do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma). “A oferta é condicionada não apenas à falta de capacidade instalada, mas também aos limites de produção de Insumos Farmacêuticos Ativos [IFA], o principal ingrediente das vacinas”, afirma. A flexibilização de patentes, na opinião do executivo, não resultará em maior oferta de imunizantes, mas, sim, no esforço conjunto entre governos, centros de pesquisa e farmacêuticas.

Autor da pesquisa de mestrado “A quebra de patentes de medicamentos como instrumento de realização de direitos”, transformada no livro Patente de medicamentos (editora Juruá, 2010), o advogado Matheus Ferreira Bezerra, professor do curso de direito da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), entende que o licenciamento compulsório não deve ser uma medida para justificar a falta de investimento em pesquisa e saúde pública. “Um país comprometido com a saúde não deve se limitar a defender o licenciamento compulsório, mas, sim, primeiramente, preocupar-se com os investimentos no setor”, argumenta.

O pesquisador, contudo, enxerga como uma medida viável a quebra de patente do IFA a fim de produzi-lo em larga escala no país. “A vacina depende desse insumo, sem o qual a produção e a imunização mais rápidas se encontram comprometidas”, diz. “Por isso, é preciso assumir a independência na produção de todos os estágios da vacina a fim de garantir a saúde da população.”

Em mensagem encaminhada em resposta a questionamento da reportagem, o Ministério das Relações Exteriores (MRE) reafirmou a posição do governo brasileiro contrária à flexibilização da propriedade intelectual. A iniciativa, segundo o órgão, parte de um diagnóstico equivocado, segundo o qual a suspensão resultaria na produção e na distribuição aceleradas de vacinas e medicamentos. “Uma patente típica contém apenas uma descrição da tecnologia, que não é suficiente para habilitar um produtor a replicá-la. Tal esforço leva anos.”

No Congresso Nacional, cinco projetos de lei em tramitação na Câmara dos Deputados e um no Senado Federal favoráveis ao licenciamento compulsório de patentes pretendem fazer o governo federal rever sua posição na OMC. “O mundo vai saber que o Congresso brasileiro aprova a quebra de patentes. É uma pressão sobre o governo. Pretendemos exigir que o Brasil mude sua posição”, defende o senador Paulo Paim (PT-RS), autor do Projeto de Lei nº 12/2021, aprovado em 29 de abril pelo plenário do Senado e em discussão na Câmara dos Deputados.

Também em abril deste ano, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), derrubou um trecho da Lei de Propriedade Industrial que, segundo ele, geraria a interpretação de que a vigência de patentes tivesse prazo indefinido. O parágrafo único do artigo 40 da lei permite que uma patente seja prorrogada automaticamente caso o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) demore mais de 10 anos para analisar seu pedido de registro. Movida pela Procuradoria-geral da República (PGR), a ação estava pautada para ser analisada pelo plenário da corte. A PGR diz que a revogação do trecho pode facilitar o desenvolvimento de tratamentos para a Covid-19.

Por enquanto, nenhum país adotou o licenciamento compulsório de patentes. A expectativa é que soluções pactuadas possam surgir no âmbito da OMC. Garantir acesso global e igualitário aos imunizantes contra Covid-19, segundo especialistas, é o caminho mais adequado para interromper a trajetória de um vírus que já infectou cerca de 150 milhões de pessoas no mundo e provocou 3,1 milhões de mortes, causando importante impacto na economia global. Um estudo da organização não governamental Câmara de Comércio Internacional (ICC), com sede em Paris, estima que se os governos das nações mais desenvolvidas falharem em garantir o acesso às vacinas da Covid-19 por parte das economias em desenvolvimento, as perdas globais somarão US$ 9,2 trilhões. Metade desse prejuízo será arcada pelos próprios países ricos, que, no geral, encomendaram estoques de vacina em número muito superior ao de suas populações.

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