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DUPLA HÉLICE 50 ANOS

Os gênios e o gene

Por que a descoberta do modelo do DNA há 50 anos, por Watson e Crick, ainda desperta tanto entusiasmo

James Watson (à esq.) e Francis Crick em 1953, diante do modelo do DNA

A. BARRINGTON BROWN/SPLJames Watson (à esq.) e Francis Crick em 1953, diante do modelo do DNAA. BARRINGTON BROWN/SPL

Há 50 anos a revista Nature publicava, no número de 25 de abril de 1953, o artigo de James Watson e Francis Crick no qual a estrutura tridimensional do sal do ácido desoxirribonucléico (DNA) era apresentada. Eram duas páginas em que a primeira sentença começava: “Nós gostaríamos de sugerir uma estrutura para o sal do ácido desoxirribonucléico. Esta estrutura tem características inéditas que são de considerável interesse biológico”. Terminava com: “Não nos escapou que o pareamento específico (de bases) que nós postulamos sugere imediatamente um possível mecanismo de cópia para o material genético”. Esta última sentença tem sido considerada como sendo uma das mais falsamente modestas da literatura científica.

Muito já se escreveu sobre a história dessa descoberta em livros e artigos. Eles incluem desde o “best-seller” de 1968 de Watson, A Dupla Hélice, até livros mais recentes, entre eles dois de autores brasileiros, História da Biologia Molecular, de Rudolf Hausmann (agora na Universidade de Freiburg, Alemanha), e Watson e Crick, a História da Descoberta do DNA, por Ricardo Ferreira (Universidade Federal de Pernambuco).

Provavelmente os mais famosos são A Dupla Hélice e The Eight Day of Creation, por Horace F. Judson (Simon and Schuster, New York, 1979). O primeiro é uma versão do próprio Watson da história da descoberta, onde, talvez por desejar que se tornasse um livro “best-seller”, ou pela sua própria personalidade, imprimiu um roteiro que destacava os episódios mais novelescos dos acontecimentos. Conta como conseguiu obter de maneira escusa informações de dados cristalográficos de concorrentes (Rosalind Franklin, química e cristalógrafa do King’s College de Londres), escarnece de outro concorrente (Erwin Chargaff, bioquímico da Universidade de Colúmbia em Nova York), que criticava mordazmente a ignorância de Crick e Watson a respeito da estrutura química das bases do DNA, Adenina (A) Timina (T), Guanina (G) e Citosina (C).

Chargaff tinha descoberto, no final da década de 40, que em todas as amostras de DNA analisadas o conteúdo de A igualava ao de T, enquanto o conteúdo de G igualava ao de C e tentava desmoralizar Linus Pauling (químico ícone do século 20, na época professor do Califórnia Institute of Technology, que publicou em 1952 uma sugestão da estrutura do DNA, onde três hélices se entrelaçavam e onde o fosfato aparecia protonado e sem carga; no pH fisiológico, cerca de sete, o fosfato deveria ter uma carga negativa, como aprendem os alunos de curso básico de química).

Watson tinha 23 anos quando se revelou a dupla hélice. Desde então sua personalidade cáustica tendeu a fazer com que lhe atribuíssem o papel de vilão da descoberta. Divertido, mas não confiável em termos históricos, o livro A Dupla Hélice foi escrito numa época em que Watson já desistia da carreira de cientista para tornar-se um administrador de ciências (certamente os atributos demonstrados em seu livro o qualificavam para isso). No final da década de 1980, Watson liderou o início do projeto de seqüenciamento do genoma humano.

Sem dúvida, quem quiser formar a sua própria história da descoberta (e muitas podem ser criadas, como os leitores podem ter notado de outras leituras) deve recorrer ao livro The Eigh Day of Creation, de Judson. Trata-se de uma soberba e extensa obra (650 páginas) de jornalismo científico. Judson levou sete anos entrevistando os personagens envolvidos no desenrolar dos acontecimentos, freqüentemente contrastando depoimentos e analisando documentos, trabalhos científicos e cadernos de laboratório. Atingiu o clímax de sua atividade profissional quando, além de relatar e interpretar as várias facetas das informações colhidas, chega o ponto de explicar, com seus próprios termos e compreensão, a parte técnica que cercava a descoberta.

Por que mais um artigo? Creio que Pesquisa FAPESP não pode deixar de lembrar esse acontecimento, assim como tantas outras revistas de ciência. Quanto a eu aceitar o convite para escrever algo sobre este assunto, foi porque tive um forte entusiasmo ao tomar conhecimento dessa descoberta em 1963 e acompanhei muito o que se escreveu posteriormente sobre ela. Afinal, a partir de 1965, trabalhei em um dos poucos laboratórios que faziam biologia molecular no Brasil naquela época, o do professor Francisco J. S. Lara.

Por que essa descoberta despertou tão efusivos entusiasmo e encantamento, ao longo dos anos que se seguiram? Watson diz em seu Dupla Hélice que foi a maior descoberta da biologia desde a teoria da evolução, de Darwin. Por outro lado, Crick, no dia da concepção da estrutura, entrou num pub, no campus da Universidade de Cambridge, gritando: “O descobrimos o segredo da vida!”. À parte desses testemunhos dos autores, o fato é que muitos outros cientistas vieram a compartilhar dessas afirmações ao longo dos anos. O que levou à unicidade dessa descoberta? Provavelmente foi um amálgama de fatores, com uma probabilidade muito pequena de novamente ocorrer e que misturou ciência com aventura e arte. Em primeiro lugar a estrutura tem uma beleza intrínseca, perceptível mesmo para os leigos.

Em segundo lugar, há uma lógica química no arranjo estrutural que imediatamente permite uma interpretação biológica para a molécula do DNA. Embora o termo biologia molecular tenha sido cunhado em 1935 por Warren Weaver, da Fundação Rockefeller, para descrever como os fenômenos biológicos podem ser compreendidos fundamentalmente pelo conhecimento das estruturas das moléculas e das interações e alterações destas, apenas em 1953 é que se percebeu de forma dramática esta correlação estrutura-função, com a descoberta da dupla hélice.

Essa descoberta é, portanto, um marco frente ao passado e ao futuro, no que diz respeito a essa biologia molecular, hoje mais conhecida como biologia molecular estrutural. Em terceiro lugar foi uma luta de dois jovens Davis contra um Golias poderoso. De fato, Linus Pauling já tinha descoberto a estrutura helicoidal de proteínas (a-hélice) juntamente com Robert Corey, e tinha informações que a estrutura do DNA também poderia ser helicoidal. Pauling era uma eminência da físico-química, já com mais de 50 anos, e iria ganhar o Prêmio Nobel em 1954 pelos seus trabalhos com estrutura de proteínas. Watson e Crick sabiam das intenções de Pauling e obviamente temiam ser superados na corrida.

A figura da estrutura de DNA é tão ubíqua que não cabe apresentá-la aqui. Sumariamente, a estrutura possui duas hélices que se entrelaçam, formando uma dupla hélice. Imaginando um eixo que corre no centro da dupla hélice, o arcabouço de cada hélice é formado pela seqüência de um açúcar (desoxirribose) ligado a um fosfato, essa unidade se ligando a outra idêntica inúmeras vezes, de forma paralela ao eixo da dupla hélice. O resultado seria açúcar-fosfato-açúcar-fosfato e assim por diante.

Uma hélice simples tem uma polaridade, isto é, percorrendo-a num sentido é diferente de percorrê-la no sentido oposto. Um dado fundamental é que as duas hélices do DNA se entrelaçam com polaridades opostas (chamadas de hélices antiparalelas). A dupla hélice se enrola no sentido horário. Procure enrolar em espiral uma fita de papel ao redor de um lápis. Será possível fazê-lo de duas formas, no sentido horário ou anti-horário. As duas hélices assim obtidas são assimétricas e distintas, uma sendo a imagem de espelho da outra. É o mesmo que uma mão se refletindo num espelho. A mão direita é a imagem da esquerda e vice-versa.

As bases A, T, C, G correspondem ao terceiro componente do DNA. Elas têm estruturas planares e estão também ligadas ao açúcar. Porém os seus planos se dispõem ortogonalmente ao eixo da hélice. Elas têm um pareamento específico num mesmo plano: A numa hélice se contrapõe a T na outra ou G numa hélice a C na outra. As hélices são por isso ditas complementares. Nota-se que, por causa desse pareamento específico, num certo DNA a quantidade de bases G é igual a C e a quantidade de G é igual a T, como tinha descoberto Chargaff.

A ligação química que une as bases é chamada de ponte de hidrogênio. Essas forças são importantes elementos de estabilização da dupla hélice. Entre A e T há duas pontes de hidrogênio, enquanto entre G e C há três. Se olharmos esses pares de bases de cima, veremos que eles têm dimensões e forma quase idênticas, de modo a permitir que o diâmetro da dupla hélice permaneça constante ao longo do eixo. Se olharmos a dupla hélice de perfil, veremos que os pares de bases estão empilhados, de forma ortogonal ao eixo, e com um recobrimento parcial por causa da volta da hélice.

Seria como se tomássemos pedras de dominó (representando os pares e base) e as empilhássemos, fazendo com que a de cima forme um ângulo de 36 graus de giro com a de baixo. Se empilhássemos dez pedras, completaríamos 360 graus, isto é, uma volta da dupla hélice corresponde a dez pares de bases. A distância entre os pares de bases é de 3,4 angströns (um angström equivale a 10-10 metros), de maneira que o passo da dupla hélice (distância ao longo do eixo correspondente a uma volta completa) é de 34 angströns.

002_DUPLAHCLAUDIUSCertamente os elementos fundamentais dessa estrutura forneciam explicação completa das duas propriedades mais importantes do gene: a codificação de proteínas, dada pela seqüência de bases, e a duplicação do gene: as fitas complementares A e B se separariam e seriam copiadas, A dando uma nova fita B e B, uma nova A. Duas novas dupla hélices AB e BA, idênticas a dupla hélice mãe AB, seriam formadas.

O encontro de Watson e Crick é o que se pode chamar de fortuita complementaridade moldada para a descoberta que viriam a fazer. Ambos tinham lido o livro do famoso físico Erwin Schrodinger O que é a vida? publicado em 1944. Muitos biólogos, físicos e químicos ficaram magnetizados pelas especulações de Schrodinger a respeito da natureza química do gene, até então desconhecida. Schrodinger chamava o material genético de sólido aperiódico.

Aperiódico porque não poderia ser repetitivo como um cristal de cloreto de sódio, senão, como poderia codificar tantas características distintas de um organismo? Sólido porque o gene não poderia ter as propriedades de substância orgânica comum, isto é, de sofrer mudanças químicas numa taxa relativamente alta à temperatura ambiente, incompatível com a estabilidade do gene. Schrodinger argumentava essa estabilidade com o exemplo dos membros da dinastia Habsburg da Áustria, cujos retratos, que retroagiam dois séculos, mostravam freqüentemente uma má-formação labial. Sem dúvida a estabilidade do material genético é hoje explicada pelo processo de reparo do DNA e certamente Schrodinger usava o termo sólido como metáfora. Ademais o material genético deveria ter propriedades que permitissem a sua reprodução.

Em 1946, Oswald Avery e seus colaboradores demonstraram que DNA constituía o material genético. Não é surpreendente, portanto, que vários cientistas estivessem interessados em DNA no início da década de 50: virologistas, físicos, químicos e biologistas estruturais. Não é surpreendente, tampouco, que Watson, encontrando-se num congresso em Nápoles com Maurice Wilkins, tenha ficado excitado ao saber do interesse de cientistas do King’s College, ao qual Wilkins pertencia, e do Cavendish Laboratory em Cambridge por estudos estruturais de DNA. Conseguiu sair de Copenhague, onde realizava um pós-doutoramento, e com a ajuda de Salvador Luria, renomado geneticista então na Universidade de Illinois e orientador do doutorado de Watson, mudar-se eventualmente para Cambridge, no Laboratório Cavendish. Lá conheceu Crick em outubro de 1951, que com 35 anos trabalhava com a estrutura de hemoglobina como material de tese de doutoramento (na sua juventude trabalhou durante a guerra como físico de radares, daí esse atraso).

Começou assim, a grande aventura. Ambos tinham os mesmos interesses. Eram jovens e desconhecidos. Sabiam quase nada sobre a estrutura química do DNA. Alguns resultados de difração de raios X do King’s college, obtidos por Maurice Wilkins e separadamente por Rosalind Franklin, sugeriam uma estrutura helicoidal. Falavam com grande entusiasmo, e eram brilhantes. Contagiaram Max Perutz – que iria posteriormente elucidar a estrutura tridimensional da hemoglobina -, que, por sua vez, convenceu Sir Lawrence Bragg (diretor do Cavendish) a deixá-los trabalhar com DNA.

Crick insistia que eles não tinham que se preocupar muito com os fatos e sim com a estrutura em si, baseando-se em dados de difração de raios X e utilizando uma mistura de intuição e dedução, com o emprego apenas de modelos de átomos introduzidos por Pauling para definir estruturas de proteína. Olhando por outro ângulo, que mais poderiam fazer? Não sabiam como preparar amostras de DNA, jamais tinham trabalhado com um gerador de raios X para obter fotos de difração de raios X, e tinham conhecimentos parcos da química do material genético. Crick tinha uma vantagem, que era a de saber interpretar dados de difração de raios X. Os conhecimentos de genética de vírus e bactérias de Watson, trazidos do laboratório de Luria, de pouco adiantavam nesse cenário. Como foi possível que em um ano e meio estivessem publicando o trabalho na revista Nature com a definição da estrutura dupla hélice?

Há vários episódios relevantes: em novembro de 1951, Watson compareceu a um seminário de Rosalind Franklin no King’s College, que comentava sobre suas fotos de difração de raios X em fibras de DNA. Vários dados importantes foram apresentados: a unidade cristalina (a unidade que se repete e que fornece o padrão de difração) indicava uma grande hélice contendo duas, três ou quatro cadeias, várias moléculas de água (cerca de oito) e nas quais os fosfatos estavam na interface da hélice e do solvente aquoso (isto é, ao lado externo da hélice, ao contrário do que a estrutura proposta por Pauling mostrava).

Vários relatos indicam que Watson conseguiu captar muito pouco do que Rosalind discutiu e, pior, não tomou nota de nada. Quando questionado por Crick, forneceu, de memória, dados errados; principalmente falhou quanto aos números do alto conteúdo de água por unidade cristalina. Um primeiro modelo foi construído, baseado nessas premissas errôneas, e logo desqualificado por vários colegas do Cavendish e do King’s College.

Crick argumentou mais tarde que esse fracasso não teria sido só culpa de Watson, por ter fornecido dados errados, mas também dele próprio por não saber química suficiente para perceber que as cargas dos fosfatos implicariam alto conteúdo de água, não levado em conta no modelo. Por interferência de John Randall (King’s College) com Bragg, Watson e Crick tiveram de desistir de trabalhar com DNA, deixando isso para o pessoal do King’s College. Crick voltou para sua tese com a hemoglobina e Watson induziu o crescimento de cristais de proteína para Randall. Que mais poderiam fazer, sem emprego e numa situação transitória, de passagem por onde estavam?No entanto, 15 meses depois, Watson e Crick publicavam a estrutura correta do DNA.

O ponto de virada deu-se com a publicação de uma possível estrutura do DNA por Pauling, também quimicamente sem consistência. A simples publicação, no entanto, acirrou os ânimos do Cavendish. Não se conformavam por terem perdido a corrida para Pauling na descoberta das estruturas a-hélice e folha b-pregueada de proteínas e não poderiam perder novamente com o DNA. Bragg reativou Watson e Crick.

Nesse intervalo, tanto Watson como Crick tinham se preocupado em estabelecer bases teóricas mais sólidas para suas pretensões. Crick, juntamente com William Cochran e Vladimir Vand, publicou um artigo teórico sobre interpretação de difração de raios X em estruturas helicoidais. Por sua vez, Watson tentou entender melhor as estruturas das bases do DNA.

O grande pulo do gato deu-se quando o relatório da equipe do King’s College para o Medical Research Council (que dava suporte financeiro para o grupo de cristalografia) passou pelas mãos de Perutz, que o entregou a Crick. Os dados recentes de Rosalind Franklin sobre medidas de difração de raios X de DNA estavam ali meticulosamente descritos. Dados reveladores aos olhos de observadores argutos como Crick tinham passado despercebidos por Rosalind Franklin. Anos depois, André Lwoff (Institut Pasteur) e, separadamente, Erwin Chargaff publicaram artigos questionando se Perutz tinha sido ético em disponibilizar o relatório do King’s College a Crick.

Horace Judson, no livro The Eight Day of Creation, conta que examinou minuciosamente os cadernos de laboratório de R. Franklin. Segundo ele, Franklin não tinha se dado conta da importância de seus dados. Tinha descoberto que em condições mais úmidas o DNA passava de uma forma A para B, a qual claramente mostrava-se helicoidal. No entanto, voltou suas costas para a estrutura B e se preocupou mais com a estrutura A, questionando se esta correspondia a uma estrutura helicoidal. A estrutura B, além de mais reveladora em termos de definição por difração de raios X, deveria ser mais próxima da estrutura fisiológica, num meio aquoso.

003_DUPLAHCLAUDIUSCrick percebeu claramente os parâmetros geométricos da unidade cristalina a partir dos dados de Franklin (afinal ele estava desenvolvendo uma tese de doutorado na qual a estrutura de proteínas prescindia inequivocamente desses parâmetros) que permitiram concluir que havia duas hélices, correndo em sentido antiparalelo, e que as bases estavam inquestionavelmente no interior da dupla hélice.

No entanto, faltava entender como as bases de uma e outra cadeia interagiam mantendo uma estrutura mais rígida. Crick não aceitava as pontes de hidrogênio, tão popular naquele momento devido às descobertas de Pauling da importância delas na estrutura de proteínas. A partir de dados de livros, textos, Crick admitia que as bases tinham uma estrutura enólica e não ceto (uma cadeia carbônica, com um grupo OH ligado a um carbono, o qual se une a outro carbono por uma dupla ligação, pode estar em equilíbrio tautomérico com uma estrutura em que este mesmo carbono está ligado por dupla ao oxigênio).

Aqui entra outro personagem, Jerry Donohue, vindo do grupo de Pauling, e que entendia de química mais do que qualquer investigador do Cavendish, e que naquela época estava nessa instituição. Ele percebeu imediatamente que Crick estava sendo dirigido por argumentações errôneas, pois as estruturas estáveis das bases deviam estar na forma ceto, que permitia a formação de pontes de hidrogênio. A estrutura do DNA tornou-se então praticamente montada nas cabeças de Crick e Watson.

O último lance parecia, no entanto, estar cabendo a Watson. Não conseguindo esperar pela fabricação de modelos atômicos pela oficina do Cavendish, que seriam utilizados para construir a estrutura do DNA compatível com todas essas informações, pôs-se a trabalhar com modelos de papelão que ele mesmo construiu. É quase inacreditável que a Watson tenha cabido a última palavra. Não tendo contribuído nem antes nem depois para maiores revelações científicas e por ter se apegado a conjecturas pouco esclarecedoras no episódio da descoberta (como, por exemplo, que pontes entre íons de magnésio e de fosfato estabilizariam a estrutura do DNA), teve uma revelação que o conduziu ao ponto final da descoberta.

Com seus modelos toscos, pôde perceber que o pareamento de guanina e citosina e o de timina e adenina tinham contornos geométricos comparáveis e que duas pontes de hidrogênio nesses pares seriam, conforme os ensinamentos de Donohue, responsáveis pela estabilidade da dupla hélice. Dessa forma o diâmetro da dupla hélice permaneceria constante ao longo do eixo. Nenhum outro tipo de par permitia isso. Ademais, e igualmente importante, esses dois pareamentos fariam justiça aos dados de Chargaff, que, a bem da verdade, eram levados mais a sério por Watson do que por outros personagens envolvidos.

É curioso que tanto Watson como Crick sabiam da regra de Chargaff e tinham inferido que ela era importante na replicação complementar. Porém, como notou Crick: “O paradoxo da coisa toda foi que, quando nós tínhamos todos os elos da estrutura prontos, não tínhamos usado a regra de Chargaff. Nós fomos empurrados para ela”. A estrutura do DNA com os modelos da oficina de Cavendish foi finalizada poucos dias depois. Porém, no dia seguinte ao vislumbre de Watson, 28 de fevereiro de 1953, este e Crick sabiam, embora só na cabeça, toda a estrutura: ela tinha emergido da sombra de bilhões de anos, absoluta e simples, e foi vista e entendida pela primeira vez, de acordo com o relato de Judson.

A fascinação da descoberta é percebida por mais alguns fatos: Watson e Crick, embora jovens e sem posição acadêmica, conseguiram pelo próprio brilho ser o centro da atenção de uma comunidade de cientistas de primeira grandeza. Vários deles receberam Prêmio Nobel, posteriormente à descoberta da dupla hélice. Diretamente envolvidos com a epopéia da dupla hélice estiveram Lawerence Bragg (Nobel de Física em 1915), Linus Pauling (Nobel de Química em 1954), Alexander Todd (Nobel de Química, 1957), Maurice Wilkins (Nobel de Medicina ou Fisiologia em 1962), Max Perutz e John Kendrew (Nobel de Química em 1962). Como “mensageiros” estiveram André Lwoff e Jacques Monod (Nobel de Medicina ou Fisiologia em 1965) e Max Delbruck, Alfred Hershey e Salvador Luria (Nobel de Medicina ou Fisiologia em 1969). Crick e Watson receberam o Prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia de 1962, nove anos após o anúncio da estrutura da dupla hélice.

Quão complexa é a estrutura do DNA? Eis aqui a observação de Perutz, que acompanhou todos os episódios da descoberta: “Uma proteína é mil vezes mais difícil do que DNA. DNA foi comparativamente simples e pôde ser elucidado pelo método de tentativa. Há pouca informação a partir de uma fotografia de difração de raios X; o que Crick e Watson tinham era realmente três medidas limitadas: a largura, a altura entre bases paralelas empilhadas e a altura de uma volta completa da hélice. Desses dados eles sabiam que o mesmo padrão recorria periodicamente ao longo do eixo da fibra. Obedecendo esses três parâmetros, eles conseguiram resolver a estrutura com modelos de construção. Não é possível resolver a estrutura de proteína por esse método, pois não há padrões de repetição. Para determinar tais estruturas é preciso determinar vários milhares de parâmetros a partir das fotografias de raios X”.

Uma assertiva de Jacques Monod, um outro teórico da biologia molecular, parece colocar Crick no seu devido contexto: “Francis (Crick) de fato estudava mais do que nós. Ninguém descobriu ou criou a biologia molecular. No entanto, um homem dominou intelectualmente essa área, porque ele sabia mais do que nós e entendia mais do que nós: Francis Crick!”. O que aconteceria se os nomes de Watson e Crick fossem apagados da história da ciência, num exercício intelectual? Gunther Stent, famoso biologista molecular, argumentou: “Se Watson e Crick não tivessem descoberto a estrutura do DNA, ao invés de ela ser revelada com todo o seu glamour, seria apresentada com um gotejamento lento, de forma que seu impacto teria sido muito menor”. Com esse argumento, Stent sentencia que uma descoberta científica é mais um trabalho de arte do que em geral se admite.

Rogério Meneghini é professor titular aposentado do Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da USP e coordenador da SMolBNet – Rede de Biologia Molecular Estrutural

 

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