Das sete variedades conhecidas de coronavírus que saíram de animais e infectaram pessoas, quatro foram detectadas no Brasil. As três mais perigosas ainda não foram encontradas no país: a da síndrome respiratória aguda grave (Sars), que levou à morte cerca de 800 pessoas em 2002 e 2003; a da síndrome respiratória do Oriente Médio (Mers), que provocou 858 mortes desde 2014; e a que emergiu em dezembro de 2019 na China, já matou mais de 1.600 pessoas e, altamente contagiosa, infectou 52 mil em 25 países. Em fevereiro, a nova doença ganhou o nome oficial de Covid-19 (Co e Vi de coronavírus, D de disease, doença, e 19 para 2019, quando aparecerem os primeiros casos) e o vírus, de Sars-CoV-19, em vez de 2019-nCoV, como foi inicialmente chamado. Como outros vírus com afinidade para as vias respiratórias, a variedade que surgiu na Ásia pode ser transmitida por meio de gotículas de saliva liberadas ao falar, espirrar ou tossir. Não há medicamentos específicos contra os coronavírus, assim chamados por causa de estruturas em forma de espinhos que lembram uma coroa solar.
Os quatro subtipos já adaptados a seres humanos, identificados a partir do final do século passado e encontrados no país são: HCoV-OC43, provavelmente vindo de bovinos, mas originário de roedores; HCoV- NL63, proveniente de morcegos, como os da Sars e da Covid-19; HCoV-229E, vindo de camelos, mas originário de morcegos; e HCoV-HKU1, vindo de roedores.
“Eles saltaram de animais silvestres para os seres humanos em episódios isolados e raros, chegaram ao Brasil por meio da transmissão entre pessoas e estão por aqui o tempo todo, mas em geral não causam problemas graves”, diz o virologista Paulo Eduardo Brandão, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP. As doenças respiratórias que provocam em adultos saudáveis desaparecem em alguns dias, mas em crianças e em indivíduos idosos ou com problemas cardíacos ou respiratórios os danos podem ser mais graves.
“Atualmente não há perigo de os coronavírus de gado, aves, cães e gatos infectarem as pessoas porque os vírus não têm receptores celulares que permitam aderir às células humanas”, afirma Brandão. O HCoV-OC43, que teria vindo de bovinos, foi uma exceção ainda sem explicação. “Os únicos capazes de interagir com o organismo humano são os de animais silvestres, como morcegos.” Isso acontece porque os coronavírus de morcego aderem à enzima conversora de angiotensina (ACE), por meio do qual se ligam às membranas de células do nariz, garganta e pulmões.
O maior risco de transmissão decorre da manipulação de animais mortos e o contato com sangue e fluidos do pulmão ou intestino, que podem estar contaminados. “Comer morcegos, desde que bem passados ou bem cozidos, não oferece qualquer risco, porque a temperatura alta destrói os vírus”, diz Brandão. “Mas devemos preservá-los, não comê-los.” Além da China, também na América do Sul há populações que têm contato com morcegos vivos. Em algumas cidades da Bolívia, os animais são vendidos para serem consumidos com finalidades terapêuticas. Uma superstição corrente naquele país indica o uso do sangue para tratar epilepsia.
As variedades HCoV-OC43 e a NL63 foram identificadas respectivamente em 3,1% e 1,5% de um grupo de 150 crianças com idade entre 3 meses e 10 anos internadas com pneumonia causada por esses e outros vírus entre novembro de 2014 e abril de 2016 em dois hospitais públicos pediátricos, o Dr. Odorico de Amaral Matos e o Dr. Juvêncio Mattos, ambos de São Luís, no Maranhão. O estudo foi realizado por pesquisadores da Universidade Ceuma, instituição privada da capital maranhense, com médicos dos dois hospitais e publicado em outubro de 2019 na Journal of Medical Virology. Nesse trabalho, os tipos de vírus mais frequentes em crianças foram o rinovírus humano (em 68%), o vírus sincicial respiratório (14%) e o adenovírus (14%).
Uma equipe da Universidade Federal do Paraná (UFPR), por sua vez, identificou os quatro subtipos de coronavírus humanos em 7,6% de 444 crianças e adultos internados no Hospital das Clínicas da UFPR com infecção respiratória grave em 2012 e 2013. De acordo com um estudo de maio de 2016 na revista Pathogen and Global Health, três pacientes desse grupo com coronavírus morreram de infecção respiratória.
“O coronavírus, sozinho ou associado com outra espécie de vírus, o rinovírus C, é um indício da gravidade da infecção e da necessidade de internação na unidade de terapia intensiva”, observa o virologista Eurico Arruda, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP). Em colaboração com a pediatra Alessandra Matsuno, Arruda encontrou algum dos quatro subtipos de coronavírus humanos em 11% de um grupo de 236 crianças com 3,5 meses e problemas respiratórios internadas no Hospital das Clínicas da universidade em 2008 e 2009. Os resultados desse trabalho foram publicados em junho de 2019 na PLOS ONE.
Esse tipo de vírus se propaga mais facilmente em áreas densamente povoadas como a China, que concentra a maioria das pessoas infectadas no surto atual, e especialmente no inverno, quando os ambientes ficam fechados, sem ventilação. Lugares com excesso de gente e saneamento inadequado contribuem para a transmissão, concluíram pesquisadores da USP e do Hospital Israelita Albert Einstein que, em 2005 e 2006, examinaram a prevalência de vários vírus respiratórios em 282 crianças com até 5 anos que moravam em Paraisópolis, um bairro paulistano com 42 mil habitantes. As crianças tinham pelo menos dois sintomas de infecção respiratória (tosse, coriza, dificuldade para respirar, chiado no peito e febre). Como relatado em novembro de 2019 na Journal of Medical Virology, os pesquisadores encontraram coronavírus em 34 (13,5%) das 252 crianças com algum tipo de virose.
Além dos animais de criação, como bois, cavalos e galinhas, também os domésticos, como cães e gatos, abrigam variedades próprias de coronavírus. Embora sejam menos letais que outros tipos, como os rotavírus, podem causar diarreias e problemas respiratórios graves em bezerros, bronquite infecciosa e danos reais em galinhas e peritonite infecciosa em gatos, observa Brandão. “O coronavírus canino pode ser fatal”, diz ele, com base em um estudo com 117 amostras de fezes que revelou um subtipo bastante letal, descrito em fevereiro de 2018 na revista Hosts and Viruses.
Outra forma de transmissão é respirar o ar de cavernas habitadas por morcegos infectados. Por essa razão, o virologista Peter Daszak, presidente da Aliança EcoHealth, organização não governamental sediada nos Estados Unidos especializada em doenças emergentes, cobre-se com máscaras, luvas e roupas especiais ao entrar com sua equipe em cavernas do interior da China para identificar os refúgios de vírus que poderiam chegar às pessoas.
Em outubro de 2015, Daszak e sua equipe coletaram amostras de sangue de 218 moradores de povoados do sudoeste da China a uma distância de 1,1 a 6 km de duas cavernas habitadas por morcegos. Como publicado em fevereiro de 2018 na revista Virologica Sinica, a maioria dos moradores (97%) tinha tido contato com animais silvestres e 3% deles apresentaram anticorpos contra o coronavírus, embora não tivessem sintomas de infecção respiratória. “As pessoas dessas comunidades rurais estavam expostas todos os dias, porque costumavam trabalhar fora, e muitos deles caçavam animais para comer, incluindo morcegos”, contou Daszak a Pesquisa FAPESP.
Segundo ele, surtos de doenças emergentes estão ocorrendo com mais frequência em razão do contato cada vez maior com animais silvestres por causa de desmatamento, construção de estradas, agricultura intensiva e o comércio ilegal. Como o mundo está mais conectado por meio das viagens aéreas, qualquer novo vírus de regiões remotas tem um risco muito maior de se espalhar.
No Brasil, embora coronavírus de morcegos não tenham sido identificados em pessoas, não houve registros de infecções causadas por vírus vindos desses animais silvestres. “Mesmo assim, temos de ficar alertas e intensificar o monitoramento de vírus emergentes em animais silvestres”, alerta o virologista Edison Luiz Durigon, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP. “O Brasil tem suas próprias variedades de coronavírus silvestres, que poderão causar problemas se passarem de animais para as pessoas”, diz o pesquisador.
Artigos científicos sobre o vírus agora saem com rapidez
A publicação de artigos científicos sobre a Sars foi rápida. O primeiro caso despontou na China em novembro de 2002, a Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu um comunicado alertando para o surto em 12 de março de 2003, e em maio a revista científica New England Journal of Medicine (NEJM) publicou a primeira descrição do coronavírus, identificado pelos Centros de Prevenção e Controle de Doenças (CDC) dos Estados Unidos.
Agora, o processo de publicação de trabalhos científicos foi muito mais acelerado: o surto emergiu em dezembro
de 2019 na China, a OMS e cientistas chineses anunciaram a descoberta de um coronavírus em 9 de janeiro e a base GenBank, dos Estados Unidos, publicou, dois dias depois, a primeira sequência genômica da nova variedade. Em 22 de janeiro um artigo na Journal of Medical Virology apresentou as primeiras análises genômicas do novo vírus, indicando que o vírus se originou provavelmente em morcegos. Trabalhos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Rio de Janeiro, de um instituto da Itália e de uma universidade da Grécia publicados logo depois chegaram à mesma conclusão.
O número de artigos sobre o Sars-Cov-2 – a maioria de grupos de pesquisa da China – saltou de 36 no final de janeiro para 62, em 6 de fevereiro, e 155, 11 dias depois.
O processo acelerado de publicação de artigos pelas revistas especializadas não se mostrou imune a problemas. Em 30 de janeiro, a NEJM publicou um estudo de pesquisadores da Universidade de Munique sobre a aparente transmissão do vírus de uma mulher assintomática para outras quatro pessoas na Alemanha. A notícia se espalhou rapidamente na mídia que acompanhava os desdobramentos do surto, mas na verdade não foi bem assim. No mesmo dia, a revista recebeu e publicou uma carta de retratação assinada pelos autores do artigo, informando que a transmissão ocorrera quando a mulher já apresentava os sintomas da infecção. Os autores do artigo não conseguiram verificar melhor seu estado de saúde e concluíram que a retificação deveria ser comunicada imediatamente. Em revistas científicas, as retratações podem demorar meses ou anos para vir a público.
Projetos
1. Picornavírus e coronavírus emergentes: Associação com patogênese respiratória em seres humanos e detecção em roedores silvestres (nº 11/19897-5); Modalidade Bolsas no Brasil – Pós-doutorado; Pesquisador responsável Eurico de Arruda Neto (USP); Bolsista Luciano Kleber de Souza Luna; Investimento R$ 247.945,49.
2. Evolução experimental em quase-espécies com coronavírus aviário (nº 18/12417-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Paulo Eduardo Brandão (USP); Investimento R$ 149.618,87.
Artigo científico
MATSUNO, A. K. et al. Human coronavirus alone or in co-infection with rhinovirus C is a risk factor for severe respiratory disease and admission to the pediatric intensive care unit: A one-year study in Southeast Brazil. PLoS One. v. 14, n. 6, e0217744. 3 jun. 2019.
FERREIRA, H. L. D. S. et al. High incidence of rhinovirus infection in children with community-acquired pneumonia from a city in the Brazilian pre-Amazon region. Journal of Medical Virology. v. 91, n. 10, p. 1751-8. 5 out. 2019.
TROMBETTA H. et al. Human coronavirus and severe acute respiratory infection in Southern Brazil. Pathogen and Global Health. v. 110, n. 3, p. 113-8. 19 mai. 2016.
BARROS, I. N. et al. Canine coronavirus (CCoV), a neglected pathogen: Molecular diversity of S, M, N and 3b genes. Hosts and Viruses, v. 5, p. 1-6. 25 fev. 2018.
GÓES, L. G. B. et al. Typical epidemiology of respiratory virus infections in a Brazilian slum. Journal of Medical Virology (on-line). 26 nov. 2019
WANG, N. et al. Serological evidence of bat Sars-related coronavirus infection in humans, China. Virologica Sinica. v. 33, n. 1, p. 104-7. fev. 2018.