Imprimir PDF Republicar

Ficção

Os sábios de Tombuctu

Mesmo após a magnífica peregrinação do grande mansa Kanku Mussa a Meca, em 1324, a cidade de Tombuctu era ainda, essencialmente, sabedoria. Aliás, sempre tinha sido. Tuaregues, songais, mandingas, fulas e até os mossis, infiéis e sanguinários, procuraram alguma vez em Tombuctu a pacificação do espírito que só o conhecimento pode oferecer.

As ruas de Tombuctu não assistiam a discussões tolas. Nos mercados, preferiam ao tema do dinheiro as maiores especulações sobre fenômenos físicos e metafísicos. A ciência era pública e a principal instituição da cidade eram as assembléias, que deliberavam sobre as verdades a serem aceitas e ensinadas.

Mas os homens nunca são completamente iguais: moravam em Tombuctu dois anciãos – ou melhor, dois sábios – que juntos dominavam a maior parte do conhecimento humano. Residiam ambos bem defronte à praça onde o povo se reunia para debater, sendo um à direita e o outro à esquerda. Suas casas estavam de tal forma que o sábio da esquerda assistia ao nascer do sol sobre a casa do sábio da direita; e o sábio da direita assistia ao pôr-do-sol sobre a casa do sábio da esquerda.

Não se sabe exatamente motivado por que circunstância, mas o debate que vinha apaixonando a Tombuctu daqueles tempos girava sobre a natureza e a origem dos antagonismos conceituais.

Tudo começou quando um mossi, mercador de panos, elevou a voz durante a assembléia:
– Quando corro sobre meu cavalo e olho a paisagem, tenho a sensação de ser ela que se move. Sei que o movimento é meu porque estou sobre o cavalo. Mas nada garante não ser a terra que circule ao redor do sol.

A dúvida proposta pelo mercador provocou tal celeuma que ninguém em Tombuctu deixou de discutir o assunto. Mais povo confluía às assembléias; os mercados abarrotavam; não se diria que a multidão obstava o tráfego das ruas porque nelas a gente se sentava para debater.

Então o sábio da direita apresentou publicamente a teoria de que não só a terra e o sol mas tudo tinha um movimento permanente desde que passasse o tempo; e que a percepção desse movimento variava conforme quem observasse.

Não tardou e Tombuctu decidiu, na seqüência das sessões, ser verdadeira uma nova teoria, aprofundamento da primeira, formulada pelo sábio da esquerda, segundo a qual as categorias antagônicas – repouso e movimento, dor e prazer, bem e mal et cetera – eram pontos de uma espécie de escala, que mudavam de estatuto conforme a circunstância da observação. Assim, o pensamento não distinguia realidades absolutas, mas posicionava os dados numa tábua de relações com valores variáveis.

Tombuctu parecia em festa; e o nome dos sábios na mais alta conta. Estavam estes justamente na praça da assembléia expondo a tese de que apenas a verdade era invariável e irrelativa, quando surgiu um andarilho de riso debochado, fumando cachimbo e carregando um bornal. Parou no meio da praça, irritando as pessoas.

– De onde vens, andarilho?

– Como a própria Tombuctu concluiu, tanto faz responder ter vindo de Jené ou de Gao.

O povo explodiu em blasfêmias. Nunca um estrangeiro chegara à cidade para fazer graça com a ciência dos seus naturais. Os sábios de Tombuctu, atônitos, não conseguiam crer em tamanha petulância. Acalmaram o tumulto com a serenidade dos próprios semblantes e resolveram expô-lo ao ridículo.

– O andarilho, provavelmente, será vindo de bárbaras cidades – disse o sábio da esquerda.

– Para quem está na savana, hei vindo das florestas; para quem está no Sahel, hei vindo das savanas; para quem está no deserto, hei vindo do Sahel; para quem está no mar, hei vindo do deserto: venho, assim, de todos os lugares.

Ante o estupor geral, o sábio da direita intercedeu.

– Explica-nos, andarilho, qual então a razão de tua vinda.

– Não fui eu quem aqui vim, mas Tombuctu que veio a mim. Embora procure o bem, devo encontrar o mal. Mas o enigma do mundo jaz no fundo do meu bornal.

A gritaria, dessa vez, foi maior. Alguns homens chegaram a erguer os punhos, protestando contra o forasteiro insolente e pretensioso. Os sábios pareciam desconcertados. E o andarilho continuou.

– Não pode haver nem pretensão nem insolência maior que a de Tombuctu, a sábia. Pelo que sei, esses dois anciãos, que julgam ter chegado à essência do conhecimento, moram nessas duas casas, em frente à praça.

Mas além de Tombuctu há o Mali. E além do Mali há o mundo. Não é dado conhecer a verdade a quem vê o sol da porta da sua casa.

O sábio da direita exclamou:
– Se minha interpretação estiver correta, esse andarilho pretende que a própria verdade seja relativa!

Houve um princípio de tumulto. A gente insultava. O andarilho ria e fumava cachimbo. O sábio da esquerda prosseguiu:

– Pois exatamente no momento em que chegaste, andarilho, expúnhamos a doutrina de que a verdade é uma categoria absoluta, e não uma gradação da mentira. Se assim não fosse, não poderíamos ter compreendido a natureza relativa dos demais conceitos. E seria falso todo o conhecimento humano.

– Pois bem – disse o andarilho -, os sábios terão três dias para meditar sobre tudo que conheceram. Depois Tombuctu virá à assembléia. Os que morarem à esquerda da praça se posicionarão à esquerda; os que morarem à direita se posicionarão à direita. Então eu proporei o enigma; e serei escravo de quem o resolver.

E assim foi feito. No dia marcado, cada metade de Tombuctu se alinhou num dos lados da praça. Então o andarilho apareceu. Fumava o mesmo cachimbo e trazia o mesmo bornal. Mas tinha uma pequena carapuça sobre a cabeça. Caminhando perpendicularmente à reta imaginária que unia as casas dos sábios, sentou-se sobre ela e proferiu:
– Para quem é capaz de conhecer a verdade não será difícil revelar a cor da minha carapuça.

Um frêmito de hilaridade atingiu a população; e de tal forma que quase não se ouviram as respostas simultâneas dos dois sábios. É preta!, disse o da esquerda; é vermelha!, disse o da direita. Foi quando os risos cessaram. De cada lado da praça surgiam gritos de é preta! e é vermelha!, permeados de injúrias grosseiras, num crescendo de violência e intolerância. Alguns começaram a atirar pedras. Outros se evadiram, alarmados.

Quase abandonados à multidão furibunda, os sábios se enfrentaram num vasto olhar de ódio. O andarilho, então, num gesto rápido, repôs a carapuça no bornal.

– Como julgam dominar a verdade se não podem acordar sequer sobre a cor de uma carapuça?

E riu com seu cachimbo; e foi-se embora deixando atrás de si uma Tombuctu na iminência do conflito.

Pouco mais tarde, mensageiros do mansa anunciaram que o famoso arquiteto árabe Ishaq al-Tuadin daria início, naquela praça, à construção da fabulosa mesquita de Jinguereber. Destroçada em sua crença na possibilidade lógica da cognição, perdida no caos da relatividade absoluta, Tombuctu redimiu-se na fé do Profeta, que embasava num sistema de valores constantes.

Exceto os sábios. Desacreditados e sem função, foram trabalhadores braçais na ereção da mesquita. Mendigaram depois, aos andrajos. Passaram a invejar os ulemás que fariam a posteridade de Tombuctu. Mas nunca creram no Profeta. Nunca aprenderam uma surata do Alcorão. Rastejaram num rancor insano, buscando compreender a natureza do conhecimento. Até morrerem, míseros, ridículos, acanhados como a própria verdade.

Alberto Mussa é autor de O trono da rainha Jinga (Prêmio da Biblioteca Nacional, 1997) e O Enigma de Qaf (Prêmio Casa de Las Americas, 2005). Traduziu direto do árabe a coletânea de poemas pré-islâmicos Os poemas suspensos.

Republicar