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Música

Os sons de um quase caos

Improvisação livre valoriza a criatividade dos intérpretes, é mais estudada e ganha espaço para apresentações

Podcast: Rogério Costa

 
     
Quem circula pelas universidades pode ter ouvido apresentações únicas, incomuns nos palcos tradicionais das cidades brasileiras. É a improvisação livre, um tipo de música experimental que surgiu há cerca de 50 anos nos Estados Unidos e na Europa e tem sido estudada e praticada por grupos brasileiros. Um sinal recente do interesse nessa área foi o lançamento do livro Música errante – O jogo da improvisação livre (Editora Perspectiva, 2016), em novembro de 2016, com uma síntese de 25 anos das pesquisas de Rogério Costa, saxofonista e professor do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).

Fortalecida com as renovações conceituais de músicos e teóricos como John Cage (1912-1992), nos Estados Unidos, Cornelius Cardew (1936-1981) e Derek Bailey (1930-2005), na Inglaterra, a improvisação livre derivou da hoje chamada improvisação idiomática – estratégia de produção musical que permite certa liberdade ao músico, valoriza a harmonia e a melodia e segue estilos previamente definidos, como o jazz e o choro –, mas é ainda mais desregrada.

A improvisação livre desfaz a tradicional separação entre intérprete e criador das obras e abdica de roteiros preestabelecidos e referenciais clássicos da composição e interpretação como a melodia e a harmonia. Também dilui a hierarquia, já que qualquer músico de um grupo pode começar a tocar, e faz do tempo algo flexível, porque a própria música tem a duração que seus intérpretes desejarem. E, por fim, explora as propriedades do som em vez de centrar-se na nota musical com intensidade e duração previamente definidas.

O multi-instrumentista Hermeto Pascoal, um dos expoentes da improvisação no Brasil

Patrícia Santos / Folhapress O multi-instrumentista Hermeto Pascoal, um dos expoentes da improvisação no BrasilPatrícia Santos / Folhapress

“Os ensaios são momentos de criatividade coletiva, cada um se colocando de modo pessoal, mas também buscando o equilíbrio com os outros músicos”, diz Costa. Quando seus alunos da USP perguntam o que devem tocar, sua resposta é simples: qualquer som. E quem começa? Também é simples: “Começa quem achar que pode começar”, ele recomenda. “O que interessa é construir um fluxo sonoro consistente e buscar soluções novas. A improvisação livre se opõe à repetição.” O resultado dessa estratégia, portanto, são obras apresentadas uma única vez, que não poderão ser reproduzidas por outros músicos porque nascem e morrem no momento em que são executadas.

Sax, violino e computador
Costa coordena a Orquestra Errante, formada por 13 estudantes, que fez seis apresentações em 2016, incluindo duas no Centro Cultural São Paulo. Seu grupo anterior, o Akronon, valorizava a música eletrônica. Sílvio Ferraz, seu ex-orientador de doutorado, também da ECA-USP, pilotava um computador com um programa chamado Pure Data que recebia os sons do sax ou da flauta produzidos por Costa e do violino de Edson Ezequiel, o outro integrante do grupo, e os devolvia de imediato, transformados eletronicamente, enquanto os dois músicos continuavam a tocar.

Para mostrar as possibilidades de uso da computação na improvisação livre, Costa fez um dueto com ele mesmo no estúdio de sua casa, próxima à USP. Ele se pôs a tocar seu sax e, segundos depois, começou a apertar com o pé os pedais conectados a um computador com o Pure Data e a uma caixa acústica que incorporava e reproduzia com efeitos trechos do que ele estava tocando. Parece uma orquestra, mas se vê apenas um músico.

John Cage (1912-1992): músico renovador

Bogaerts, Rob / AnefoJohn Cage (1912-1992): músico renovadorBogaerts, Rob / Anefo

No livro, Costa sintetiza seus estudos sobre esse modo de fazer música: “A livre improvisação só é possível no contexto de uma busca de superação do idiomático, do sistematizado, do controlado, do previsível, do estático, do identificado, do hierarquizado”, ele escreveu. No prefácio, Sílvio Ferraz comentou: “O ambiente da livre improvisação ‘é como a vida’, nele os corpos sonoros se cruzam e não há função privilegiada. Ninguém é acompanhamento, ninguém é voz principal, ninguém é imprescindível e todos são imprescindíveis”. Segundo Ferraz, há espaço para opostos, porque tanto vale “alguém parar de tocar” quanto “alguém tocar sem parar”.

Um bom exemplo de obra única resultante de improvisação livre foi a execução de Treatise, peça de três horas de duração apresentada pelo professor de música Manuel Falleiros e seus alunos para um público de cerca de 150 pessoas em uma sala de concertos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) na noite de 9 de junho de 2016. Na partitura de 193 páginas, Cardew, o autor da obra, fez indicações gerais, em vez das habituais instruções precisas de execução, para que os músicos se sentissem à vontade para criar suas próprias interpretações.

“Ensaiamos apenas as possibilidades de interação entre os músicos, porque o resultado na improvisação livre é imprevisível, como em um jogo. A música é criada na hora, a partir de decisões tomadas momento a momento”, diz Falleiros, supervisor da Escola Livre de Música da Unicamp. Por saber que nem sempre é simples sair das regras e entrar nesse quase caos, ele propõe vários exercícios para seus alunos: “Em um dos exercícios, eu peço: ‘Vamos tocar algo como o fogo’. Alguns exploram musicalmente a ideia de calor, outros o crepitar da lenha. Saem coisas muito bonitas”.

Violão com liberdade
Sob orientação de Costa, o violonista André Campos Machado concluiu em 2014 seu doutorado na USP sobre o uso dessa estratégia no ensino de violão e outros instrumentos de cordas dedilhadas. Professor da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), em Minas Gerais, ele pretende em 2017 colocar em prática seus roteiros para improvisação livre – desenvolvidos no doutorado e publicados pela editora da UFU – com os alunos dos conservatórios estaduais de música das cidades mineiras de Ituiutaba, Araguari, Uberaba e Uberlândia.

“A improvisação livre é uma excelente ferramenta pedagógica para a iniciação em qualquer instrumento musical, mas precisa ser mais divulgada”, diz Machado. Talvez essa abordagem possa reduzir as agruras dos próprios músicos. “Comecei a estudar violão aos 7 anos, tive de seguir o método clássico, aprender a segurar o instrumento, tocar as notas e depois os solfejos, e nunca me disseram para ser criativo e experimentar minha própria música”, lembrou-se Costa.

A improvisação livre, embora mais frequente em espaços abertos à música experimental, já conta com representantes conhecidos do grande público. O percussionista pernambucano Naná Vasconcelos (1944-2016) e os multi-instrumentistas como o alagoano Hermeto Pascoal, o fluminense Egberto Gismonti, o baiano Sivuca (1930-2006) e o paulista Paulo Moura (1932-2010) exercitaram e exercitam a liberdade total em seus espetáculos, embora apegados a estilos musicais. As apresentações que correm ao largo de conceitos clássicos do mundo da música deixam o público ora satisfeito, ora incomodado. Aos poucos, porém, ganham espaço em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.

Essa forma de produção de música experimental continua em construção, a começar por sua própria definição. Em um congresso de música realizado em 2013 em Natal, Rio Grande do Norte, Falleiros, da Unicamp, propôs o uso do termo hiperimprovisação. “Se chamar apenas de improvisação livre, os alunos associam com a música de protesto da década de 1970 e tentam reproduzi-la”, argumenta. “Mas essa atitude é o oposto da improvisação livre, que se propõe a fugir das regras, dos modismos e da estagnação dos estilos.” Segundo ele, quem faz improvisação livre tem de ter coragem para se arriscar em novas estruturas criativas, sem medo de se perder.

Projeto
A improvisação musical e suas conexões (nº 2011/07678-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Rogério Luiz Moraes Costa (ECA-USP); Investimento R$ 23.587,12.

Livro
COSTA, R. L. M. Música errante: O jogo da improvisação livre. São Paulo: Perspectiva, 2016, 280 p.

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