Localizado a 80 quilômetros ao norte de Vitória, capital do Espírito Santo, o município de Aracruz abriga cerca de 2.500 indivíduos em três terras indígenas distribuídas por uma área de 18 mil hectares, equivalente a pouco mais de um décimo da cidade de São Paulo. A maior parte deles (cerca de 95%) declara pertencer à etnia Tupiniquim, a mesma que recepcionou os navegadores portugueses em 1500 e depois foi dizimada a ponto de desaparecer dos registros históricos e demográficos oficiais por quase um século.
Uma análise genética publicada em janeiro na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) confirma o que o relato desse povo já sugeria: os Tupiniquim, de fato, nunca foram extintos, embora a redução de sua população original os tenha levado a se miscigenar com descendentes de europeus e africanos. A validação biológica de que esses índios de Aracruz são Tupiniquim os torna, ao lado dos Tupinambá, da Bahia, e dos Potiguara, da Paraíba, os únicos representantes vivos dos povos tupis que habitavam o litoral quando os europeus aportaram nas terras do futuro Brasil. A reafirmação de que essa etnia do Espírito Santo é originária do litoral permitiu que seu DNA fosse usado para reconstituir como os Tupi, descendentes de grupos do sudoeste da Amazônia, teriam chegado ao litoral por volta de 1,2 mil anos atrás.
Os pesquisadores brasileiros chegaram às conclusões apresentadas no artigo da PNAS ao comparar as características genéticas dos Tupiniquim de Aracruz com as de integrantes de outros 14 povos atuais e extintos das Américas (entre eles, os Guarani-Mbyá, originários do sul do Brasil, e de etnias da Amazônia, como Wajãpi, Parakanã e Gavião), além de europeus e africanos. O material genético dos Tupiniquim e dos Guarani-Mbyá foi obtido pelos médicos Alexandre da Costa Pereira, do Instituto do Coração da Universidade de São Paulo (InCor-USP), e José Geraldo Mill, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), que há quase 15 anos acompanham a saúde dos integrantes dessas duas etnias. O geneticista Francisco Salzano (1928-2018), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), coletou amostras de sangue dos outros grupos em viagens à Amazônia – ele ainda revisou uma versão preliminar do artigo antes de morrer, em 2018, aos 90 anos.
A geneticista Tábita Hünemeier e sua equipe no Instituto de Biociências da USP confrontaram o material genético dos indígenas do Espirito Santo com o de outras etnias brasileiras e verificaram que, em média, 51% do DNA dos Tupiniquim é de origem nativa americana (26% são de origem europeia e 23% africana). Entre os Guarani-Mbyá, que nos anos 1960 migraram do Rio Grande do Sul para Aracruz, essa proporção do material genético indígena é mais alta. Eles têm, em média, 77,3% de DNA nativo americano, 15,6% europeu e 7,1% africano. Outras três etnias estudadas em detalhe (Wajãpi, Parakanã e Gavião) não guardam sinais de miscigenação com europeus e africanos.
Uma explicação para o grau maior de miscigenação dos Tupiniquim é o colapso populacional que enfrentaram. Quando Pedro Álvares Cabral e suas naus chegaram à região de Porto Seguro, no sul do atual estado da Bahia, em abril de 1500, cerca de 3 milhões de índios ocupavam o que hoje é o território brasileiro, segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Por volta de 900 mil, quase a população de Portugal à época, habitavam o litoral. Os Tupiniquim somavam, então, aproximadamente 90 mil indivíduos, número confirmado agora pelas análises genéticas, e ocupavam um trecho da costa que ia do sul da Bahia a São Paulo. Por volta de 1760, a população Tupiniquim havia diminuído para cerca de 3 mil integrantes e em 1876 era de apenas 55 indivíduos. Hoje há cerca de 2.400 Tupiniquim, situados quase exclusivamente em Aracruz. Eles moram em casas de alvenaria e só falam português. Sua língua original, uma das 41 do tronco linguístico tupi, perdeu-se com a redução populacional e a miscigenação.
“O grau de ancestralidade indígena dos Tupiniquim ainda é muito alto, embora haja indivíduos bastante miscigenados”, conta o geneticista Marcos Araújo Castro e Silva, que realiza doutorado sob orientação de Hünemeier na USP e é o primeiro autor do artigo publicado na PNAS. “Mesmo após terem quase desaparecido, eles conseguiram preservar muito de sua ancestralidade nativa americana”, completa a geneticista. Apenas para ser ter um parâmetro de comparação, a ancestralidade nativa americana é, em média, de 7% na população geral brasileira.
Avaliando como as variações genéticas características de cada povo se modificam com o tempo, Silva e Hünemeier identificaram três importantes pulsos de miscigenação dos Tupiniquim. O primeiro, com os europeus, ocorreu há 11 gerações (por volta de 300 anos atrás) e coincidiu com o ciclo econômico da mineração, no início do século XVIII, quando a população de imigrantes europeus no Brasil passou de 300 mil para 3 milhões de pessoas e os indígenas foram escravizados em massa. A segunda grande miscigenação teria acontecido quase um século mais tarde com a intensificação da entrada de escravos africanos após a vinda da família real para o país, em 1808. O último pulso de miscigenação, com europeus e africanos, começou há cinco gerações – no final do século XIX, com a abolição da escravatura e a chegada de novas levas de imigrantes europeus que substituem a mão de obra negra – e continua até os dias atuais.
A porção de DNA nativo americano dos Tupiniquim indica que eles não se misturaram com outros povos indígenas atuais. “O perfil genético deles é diferente do de todos os outros grupos”, relata Hünemeier. Para ela, esse dado confirma que os indígenas que se autodeclaram Tupiniquim são de fato desse grupo étnico. “Mostrar que os Tupiniquim têm uma identidade genética distinta da dos demais povos é importante para que se identifiquem como grupo”, afirma Mill, da Ufes, coautor do estudo.
Os Tupiniquim nunca se extinguiram, mas a redução de sua população os levou a se miscigenar com descendentes de europeus e de africanos
A análise da semelhança genética entre os Tupiniquim e outros povos indígenas atuais mostrou que eles são mais próximos dos Urubu-Kaapor, do Maranhão, e dos Parakanã, do Pará e Tocantins, povos que falam línguas do tronco tupi do norte do Brasil, do que dos Guarani-Mbyá, também falantes de uma língua tupi, mas do sul do país – os Tupiniquim e os Guarani-Mbyá compartilham ancestrais comuns, que teriam vivido há cerca de 3 mil anos na Amazônia. Essas informações permitiram aos pesquisadores recriar, com base nos dados genéticos, as rotas que os povos de língua tupi, originários do sudoeste da Amazônia, teriam percorrido quando iniciaram, por volta de 2 mil anos atrás, uma grande dispersão populacional: a chamada expansão tupi. Como resultado dessa expansão, essas populações ancestrais teriam se deslocado ao menos 4 mil quilômetros e alcançado o litoral por volta do ano 800, substituindo os antigos moradores da costa – índios caçadores e coletores que enterravam seus mortos em sambaquis (montes de conchas) e provavelmente integravam grupos falantes de línguas do tronco jê, como os atuais Xavante – e originando povos como os Tupinambá e os Tupiniquim.
Antropólogos e linguistas discutem há décadas por quais caminhos os povos falantes de línguas tupi teriam se espalhado pelo país. De acordo com a hipótese mais antiga, apresentada em 1927 pelo antropólogo suíço-argentino Alfred Métraux (1903-1963) e depois reafirmada por outros grupos, os ancestrais dos povos de língua tupi teriam saído da Amazônia rumo ao sul e se assentado em terras do atual Paraguai, Bolívia, Uruguai e Rio Grande do Sul, onde originaram os Guarani. Mais tarde, seguindo o curso dos afluentes do rio Paraná, teriam chegado ao litoral. Métraux e, depois, outros antropólogos, como o casal norte-americano Betty Meggers (1921-2012) e Clifford Evans (1920-1981), fundamentaram a hipótese em achados arqueológicos, informações linguísticas e dados ambientais de milhares de anos atrás. Há sinais de que a redução nas áreas de floresta, decorrente de mudanças no clima naquela época, teriam forçado os ancestrais dos falantes de línguas tupi, que viviam da caça, pesca e coleta de frutos, a migrar em busca de alimento.
Em meados dos anos 1980, o arqueólogo gaúcho José Proenza Brochado apresentou uma hipótese diferente. Havia evidências de que os ancestrais dos povos de língua tupi já produziam objetos de cerâmica e praticavam uma forma inicial de agricultura. Com base na evolução da cerâmica de povos atuais, como os Tupinambá, do litoral, e os Guarani, do sul do país, ambos de ascendência tupi, Brochado propôs que populações ancestrais teriam partido de uma área mais central da Amazônia rumo a noroeste, seguindo o rio Amazonas, e, depois, para o litoral, chegando até o atual estado de São Paulo. Mais tarde, eles teriam deixado a costa e se dirigido para o Sul. Outra leva teria saído da Amazônia central direto para o Sul, onde originaram os Guarani. De acordo com essa hipótese, o motivo da migração não seria o clima, mas o aumento contínuo da população e a necessidade de novas terras para produzir alimento. Mais tarde teria havido uma migração dos Guarani do sul do Brasil para o litoral, onde alcançaram o Espírito Santo nos anos 1960.
O estudo da PNAS reforça a segunda hipótese. Os dados genéticos sugerem a ocorrência de duas ondas migratórias com origem na mesma região e quase simultâneas. “São informações da biologia corroborando a hipótese de Brochado quase 50 anos mais tarde”, lembra o arqueólogo Eduardo Góes Neves, da USP, que realiza escavações na Amazônia com o objetivo de compreender a expansão tupi. “Dados arqueológicos que obtivemos nos últimos 10 anos favorecem uma explicação mista: o centro de dispersão estaria no sudoeste da Amazônia, como primeiro sugeriu Métraux, mas a separação dos ancestrais dos Tupi da costa e dos Tupi do sul teria ocorrido ainda na Amazônia, como propôs Brochado.”
Para Eduardo Tarazona, geneticista da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) que também estuda a ancestralidade dos brasileiros, uma contribuição importante do estudo atual é mostrar que a expansão tupi não foi apenas um fenômeno cultural, em que povos de ancestralidade distinta, por exemplo, falantes de línguas do tronco jê, poderiam ter adotado traços culturais tupis. “Com base nos dados desse trabalho”, conta Tarazona, “é possível afirmar que também foi um fenômeno biológico, provavelmente causado pelo aumento da população”.
Projeto
Diversidade genômica dos nativos americanos (nº 15/26875-9); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisadora responsável Tábita Hünemeier (USP); Investimento R$ 925.257,17.
Artigo científico
SILVA, M. A. C. et al. Genomic insight into the origins and dispersal of the Brazilian coastal natives. PNAS. 13 jan. 2020.