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Medicina

Ossos artificiais

Equipe da USP cria soluções inovadoras para próteses cirúrgicas na reconstrução óssea

EESC/USP Corpos-de-prova de polímero para prótese cirúrgica com estrutura interna densa e porosa no exteriorEESC/USP

Um dos grandes desafios para o desenvolvimento de ossos artificiais é criar materiais que sejam o mais próximo possível do tecido ósseo natural. As próteses devem ser réplicas não só na aparência como também nas propriedades biológicas e mecânicas. Essa é uma condição importante para o implante ser bem-sucedido e que não sofra rejeição por parte do organismo. Assim, dois novos materiais para a confecção de ossos artificiais desenvolvidos no campus da Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos, no interior paulista, se transformam em uma boa notícia para a área de implantes ósseos.

O principal diferencial dessas novas próteses cirúrgicas é sua estrutura superficial porosa e a presença de substâncias em sua composição que lhes conferem atividade biológica. Segundo os pesquisadores envolvidos na descoberta, essas características devem proporcionar a fabricação de implantes ósseos mais eficientes e duráveis. Os materiais – estruturas cerâmicas de alumina e compostos poliméricos de polimetilmetacrilato (PMMA) – já foram submetidos, com sucesso, a testes in vitro e a ensaios com animais, os testes in vivo. As primeiras cirurgias em seres humanos estão programadas para agosto.

Os dois materiais trabalhados pelo grupo da USP já são conhecidos e homologados pelas autoridades médicas para uso em implantes. São previsíveis em relação à sua ação no organismo e estáveis biologicamente. O que os pesquisadores fizeram foi modificar as propriedades da cerâmica de alumina e do PMMA. “Criamos uma peça com diferentes níveis de densidade, com um núcleo denso integrado a uma superfície porosa. Essa porosidade é importante porque facilita a vascularização e acelera a adesão dos tecidos ósseos e musculares ao implante”, explica o engenheiro mecânico Benedito de Moraes Purquerio, coordenador do grupo de pesquisas em biomateriais do Laboratório de Tribologia e Compósitos (LTC) da Escola de Engenharia de São Carlos da USP. Os poros existentes na superfície da prótese permitem que o osso cresça para dentro do implante, aderindo a ele.

“Estamos satisfeitos com os resultados obtidos até agora e confiantes no sucesso da aplicação da estrutura de cerâmica e polímero em implantes e próteses cirúrgicas”, diz Purquerio. De acordo com o pesquisador, as novas próteses deverão ser usadas em reconstruções da boca, mandíbula e faces, operação plástica do crânio e implantes ortopédicos em geral (joelho, quadril, punho etc.). Hoje os materiais mais empregados nessas cirurgias são ligas metálicas, especialmente as de titânio e aço inoxidável, materiais cerâmicos, como alumina, zircônia, biovidro e hidroxiapatita, e compostos polímeros, PMMA, poliuretano e polietileno. Esses materiais precisam ser biocompatíveis, inertes e não tóxicos e devem ter resistência e rigidez compatíveis com nosso sistema biológico.

EESC/USP Acima, amostras de material cerâmico com poros capazes de se ligarem aos tecidos orgânicosEESC/USP

A cerâmica possui poros abertos e interconectados com 50 a 400 micrômetros de dimensão, compatíveis com os processos de reparação óssea. A parte porosa do implante é bem superficial e tem espessura de apenas 0,5 a 1,0 milímetro. “Não há necessidade da porosidade nas camadas internas ser igual àquelas da superfície porque os tecidos penetram até certo ponto. Além disso, quanto mais espessa for a camada porosa externa, menos resistente poderá ficar todo o implante”, explica o engenheiro de materiais Carlos Alberto Fortulan, também da Escola de Engenharia de São Carlos, que integra a equipe.

Os pesquisadores adicionam sacarose na fase de preparação dos aglomerados cerâmicos para fornecer porosidade à cerâmica de alumina. Após a conformação da peça, a sacarose é removida por um processo de lixiviação (lavagem) em água. Em seguida ela é sinterizada (queimada). “As partículas de sacarose que, porventura, ainda restarem no implante são decompostas em dióxido de carbono na etapa de sinterização”, diz Fortulan.

A concepção das estruturas superficiais porosas de polímero é a mesma da cerâmica, com a diferença de que, nesse caso, a estrutura porosa ao PMMA é preparada com um polímero derivado da celulose, o carboximetilcelulose (CMC), embebido em água. Depois que a peça está pronta – seja ela a cerâmica ou o polímero –, os pesquisadores fazem uma impregnação a vácuo de hidroxiapatita e biovidro nas superfícies internas dos poros para aumentar a atividade biológica do implante. A hidroxiapatita é o mineral básico do osso e faz o organismo reconhecer o implante como uma estrutura similar a ele.

Primeiras cirurgias
“No processo de integração óssea, os vasos sangüíneos  e as células ósseas e musculares penetram nos poros da prótese cirúrgica possibilitando o crescimento de tecidos dentro da peça implantada. Em próteses convencionais desse tipo, feitas com materiais não porosos ou sem as características de bioatividade conferidas pela hidroxiapatita e biovidro, não ocorre integração entre os tecidos e o implante”, destaca o cirurgião buco-maxilo-facial Edelto dos Santos Antunes, chefe do serviço de cirurgia buco-maxilo facial do Hospital Santa Tereza, de Petrópolis, no Rio de Janeiro, local onde deve acontecer a primeira cirurgia de aplicação clínica dos novos materiais em pacientes. As cirurgias vão ocorrer em uma parceria do hospital com a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Outra vantagem da porosidade é dar, indiretamente, maior proteção contra infecções, na medida em que promove uma integração dos tecidos de cobertura com toda a superfície porosa da peça implantada. O periósteo é uma membrana muito vascularizada, fina e resistente que envolve por completo os ossos humanos. Durante o procedimento de colocação do implante, o cirurgião retira uma porção de periós­teo que recobre outro osso do corpo vizinho ao campo cirúrgico e encapsula a prótese. “Com isso, qualquer infecção tem ação apenas pontual. Sem esse encapsulamento, o material implantado fica mais exposto a possíveis infecções no futuro”, diz Antunes, que também integra o grupo de pesquisa. Segundo ele, as peças porosas de cerâmica de alumina e de PMMA infiltrados com hidroxiapatita e biovidro substituem com muito mais fidelidade o osso humano do que outros materiais usados atualmente em implantes porque suas propriedades biológicas e mecânicas são mais próximas das do osso.

ESC/USP Microscopia eletrônica: detalhes da superfície porosa do polímero…ESC/USP

“Essas peças dão mais previsibilidade e estabilidade aos resultados dos implantes. O material é capaz de resistir às solicitações mecânicas que incidem sobre o osso sem interferir tão drasticamente na fisiologia dos tecidos ao redor”, diz Antunes. “A técnica cirúrgica também tem sofrido adequações. É de fundamental importância que os tecidos de cobertura restabeleçam a anatomia de forma que eles se tornem bem definidos e sejam suficientes para minimizarem as possibilidades de exposição e contaminação da superfície porosa da prótese cirúrgica.”

As estruturas superficiais diferenciais de cerâmica de alumina e PMMA já passaram por estudos de citotoxicidade e integração óssea durante os testes in vitro e in vivo realizados em São Carlos. Os ensaios com ratos e coe­lhos ocorreram do final de 2007 ao início deste ano. “Os implantes foram inseridos nas tíbias dos animais e percebemos uma perfeita integração óssea com crescimento tecidual no interior dos poros”, conta Carlos Fortulan.

“As cirurgias em seres humanos vão começar com implantes em falhas cranianas menores, de até 10 centímetros quadrados, para, em seguida, passar a fazer reconstruções mais completas de crânio. Numa terceira etapa, passaremos para reconstruções mandibulares em que haja defeitos que comprometam apenas segmentos ósseos. Depois será a vez dos casos que envolvem segmentos ósseos e articulares, onde passaremos a utilizar implantes de compósitos de PMMA reforçados com fibras de carbono”, diz o cirurgião Edelto Antunes.

As próteses cirúrgicas completas de mandíbula, destinadas às cirurgias mais complexas, serão confeccionadas com os dois materiais, alumina e PMMA, ficando a estrutura cerâmica de alumina limitada ao componente articular, na junção com o osso da face. O restante da peça será fabricado com o polímero e reforçado internamente com um tubo de fibra de carbono. Até o começo do próximo ano os pesquisadores pretendem iniciar estudos visando ao desenvolvimento de próteses femurais. “Vamos começar o trabalho implantando hastes de PMMA reforçadas com fibras de carbono na tíbia de cabritos. Nosso intuito é que esses novos materiais sejam usados, no futuro, em qualquer tipo de cirurgia ortopédica”, afirma Antunes.

EESC/USP … restos do implante e crescimento ósseo no interior dos porosEESC/USP

Iniciada no final de 2004, a pesquisa para desenvolvimento das estruturas superficiais porosas de cerâmica de alumina e PMMA contou com financiamento de R$ 250 mil do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) do Ministério da Ciência e Tecnologia e Ministério da Saúde (Projeto Fundo Setorial da Saúde 2004), coordenado pelo professor Purquerio. O trabalho já gerou três depósitos de patente, uma delas específica sobre a criação de uma matriz cerâmica porosa bioativa. A produção científica também inclui quatro dissertações de mestrado, cinco teses de doutorado e 39 trabalhos acadêmicos. O grupo apresentou as estruturas de cerâmica de alumina no 8º Congresso Mundial de Biomateriais, em Amsterdã, na Holanda, em junho deste ano, e vai mostrar os resultados envolvendo o PMMA em dois eventos internacionais nos próximos meses: o simpósio de outono da Society for Biomaterials, em Atlanta, nos Estados Unidos, em setembro, e o International Bone-Tissue-Engineering Congress (Bone-Tec 2008), em Hannover, na Alemanha, em novembro.

Proteína para fraturas ósseas em forma de medicamento

Um medicamento injetável para tratamento de fraturas deverá, em breve, ser um novo aliado de pacientes e médicos. Pesquisadores do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP) desenvolveram uma proteína capaz de aumentar e melhorar a recuperação óssea. Chamada de proteína morfogenética óssea (BMP na sigla em inglês), ela pertence à classe dos fatores de crescimento celular e estimula a proliferação de células-tronco próximas ao local da fratura, promovendo sua diferenciação em células ósseas com acumulação de cálcio. “Nesse estágio já temos uma estrutura rígida mineralizada que compõe o osso. A aplicação dessa proteína é local e sua recomendação é para fraturas, nos casos em que não há união em ossos longos – por exemplo, no fêmur – e na coluna vertebral, um lugar de difícil recuperação óssea”, diz o biomédico Erik Halcsik, que integrou a equipe junto com o doutorando Juan Carlos Bustos-Valenzuela. Pacientes que sofrem de osteoporose e que fizeram implantes dentários também serão beneficiados com o medicamento.

As BMPs já são produzidas naturalmente pelo organismo humano ao longo do desenvolvimento do embrião e quando ocorrem fraturas, mas em quantidades muito pequenas. A proteína produzida pela USP seria um suplemento para tais células se desenvolverem mais rapidamente e garantir a formação de tecidos ósseos. A criação da proteína começou a partir de seqüências de DNA humano que correspondem aos genes das BMPs. Elas foram transferidas para um vetor, que são seqüências de DNA que auxiliam na inserção e manutenção do gene introduzido e depois transferidas para linhagens celulares especiais para produção de proteínas. Os pesquisadores, por fim, selecionaram as células que produzem as BMPs do tipo 2 e 7, ligadas ao crescimento ósseo, em grande quantidade.

Segundo a professora Mari Cleide Sogayar, coordenadora da pesquisa e do Núcleo de Terapia Celular e Molecular (Nucel) da USP, as seqüências de DNA que codificam essas duas proteínas foram identificadas a partir dos bancos de cDNA (ou DNA complementar) do Projeto Transcriptoma do Genoma do Câncer da FAPESP, conhecido como Transcript Finishing Initiative. “Foram quase seis anos de pesquisa e desenvolvimento até chegarmos a essas duas proteínas recombinantes”, conta Mari Sogayar.

Pelo menos três empresas norte-americanas já fabricam drogas similares na mesma plataforma utilizada na USP, que é a produção a partir de células de mamíferos. Mas muito pouco se sabe do processo de produção dessa proteína, porque as empresas que detêm o know-how o mantêm em segredo ou protegido por patentes. “Por isso tivemos que desenvolver nossa própria plataforma de produção a partir do DNA de células humanas”, diz Halcsik. As três empresas produzem a proteína com valores entre US$ 3,5 mil e US$ 4,5 mil a dose. “Nosso produto deverá custar menos do que o das empresas estrangeiras, mas seu valor final dependerá do escalonamento da produção industrial”, diz Halcsik. A previsão do grupo é de que o fármaco esteja no mercado dentro de três a cinco anos. Os estudos estão sendo realizados em parceria com uma empresa que deverá produzir o medicamento. Por força de contrato, os pesquisadores não podem revelar o nome dessa empresa.

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