Há uma perspectiva nos estudos atuais de história da arte, demarcados sobretudo pelo campo sociológico, de rever as produções e biografias de artistas brasileiros modernos ou que gravitaram em torno de questões do modernismo, à luz das novas pautas progressistas, resgatando-os dos pedestais erigidos pela elite de colecionadores e conservadores em que foram colocados desde o final da década de 1940. É dentro dessa perspectiva revisionista que se insere o livro Pancetti: O moderno periférico, de Felipe Scovino, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que se diga, de antemão, é muito bem-vindo, não por pretender esgotar os estudos sobre a obra desse pintor, mas, ao contrário, por reabrir o debate com vistas a reexaminá-la.
O autor deixa claro que um dos pontos de partida para a construção de sua “nova” leitura é o fato da gritante desproporção entre o sucesso de público e de mercado e a falta, inversamente, de estudos ou produção intelectual que sejam condizentes com o vulto histórico do personagem José Pancetti (1902-1958). Por isso, elege como o seu ponto de partida um ensaio publicado em livro há 45 anos, em 1979, por José Roberto Teixeira Leite, intitulado “Pancetti: O pintor-marinheiro”. Reconhecendo a importância dessa obra, mas posicionando-se criticamente em relação ao mesmo, Scovino problematiza o jargão “pintor-marinheiro, pintor de marinhas” e outros, porquanto o desenho de categorias assim totalizantes contribuiu e contribui para a sedimentação de clichês, enfraquecendo o levantamento de outros pontos de vista críticos. Ao invés de referendar esses lugares-comuns, Scovino pretende dirigir a sua análise para as razões internas da obra de Pancetti. Diz ele: “Interessa-me discutir suas escolhas pictóricas, enquadramentos, referências, distinções e questões sociais e psicológicas envolvidas em suas pinturas”.
Duas questões centrais parecem, no entanto, guiar essa discussão. Em primeiro lugar, ao recusar o lugar que fora imposto a Pancetti como um pintor à margem do modernismo, Scovino busca entendê-lo como um artista que teve um olhar genuinamente de caráter “sociopolítico”, inclinando-se a representar indivíduos subalternizados na sociedade brasileira. Lembra que a sua própria história foi demarcada também por uma condição de extrema pobreza, de desempregado vagando pelas ruas de Gênova a repatriado sem perspectivas de ocupação clara no Brasil, até seu ingresso na marinha militar em 1922. Pancetti gradualmente se tornaria pintor, fazendo de seus rudimentos no ofício uma atividade aquartelada, não entendida no início como belas-artes (pintava paredes, retocava cascos de navios etc.). Apenas em 1933, ao ingressar no Núcleo Bernardelli, no Rio de Janeiro, tendo como professor Bruno Lechowski e colegas como Aldo Malagoli, Manuel Santiago e Bustamante Sá, Pancetti começaria a definir os seus rumos como um artista. As cenas que passou a retratar então não pertenciam a lugares da elite. Eram ruas e cantos de praia afastados, lugares periféricos, suburbanos e que também em quase nada transmitiam as impressões de ambientes ligados à modernidade, urbanos e industriais.
Em segundo lugar, Scovino interpreta a “melancolia” presente nas inúmeras telas do artista menos como um traço idiossincrático e mais como uma adesão a uma característica estética transversal do nosso modernismo, identificado em autores como Mário de Andrade e outros. Para Scovino, “Pancetti se situa entre dois mundos antagônicos: o da melancolia, como um sentimento que faz parte da constituição do sujeito no Brasil, por conta substancialmente do processo escravocrata e servil que moldou e foi base dessa sociedade […], e o da alegria, fato que se tornará mais marcante em sua trajetória por volta de 1950, quando a luz da Bahia marca as suas pinturas como um sopro de vida”.
Distante da celebração heroica de tipos brasileiros, como os de Portinari ou Di Cavalcanti, mas aproximado das preocupações mais modestas de um artista como Oswaldo Goeldi, por exemplo, Pancetti soube traduzir de um modo sintético a luz solar brasileira, rebaixando a tonalidade de todo o quadro, limpando detalhes acessórios e construindo uma pintura que se mostra plena na medida em que abre mão da grandiloquência ou de atitudes imperativas.
Luiz Armando Bagolin é professor de história da arte e estética do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP).
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