Imprimir Republicar

Astrofísica

Panorama do Universo extremo

Equipe brasileira produz o mais nítido mapa celeste das fontes cósmicas de raios gama e confirma emissões dessa radiação pelo buraco negro central da Via Láctea

Mapa em raios gama do Cosmo produzido por pesquisadores da USP a partir de dados coletados ao longo de 13 anos pelo telescópio espacial Fermi. As cores indicam a intensidade da energia emitida pelas fontes dessa radiação: baixa (vermelho), intermediária (verde) e alta (azul)

Um grupo de pesquisadores do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP) concluiu recentemente a versão mais nítida de uma imagem pouco comum do Universo. Ela mostra o brilho de raios gama dos objetos celestes de todo o Cosmo – em especial da Via Láctea, a galáxia que abriga o Sistema Solar – e foi produzida, com base em observações do telescópio espacial Fermi, da agência espacial norte-americana (Nasa), por Douglas Carlos e Lucas Siconato, que atualmente realizam mestrado no IAG-USP sob a orientação do astrofísico Rodrigo Nemmen. A dupla teve a ajuda do astrofísico Raniere Menezes, que faz estágio de pós-doutorado na USP.

“A nova imagem sintetiza o maior compêndio de informações sobre as emissões da radiação eletromagnética mais energética do Universo”, conta Nemmen. “É como uma foto de longa exposição com 13 anos de duração do céu inteiro”, explica o astrofísico. Os dados usados na construção desse mapa também estão permitindo confirmar teorias sobre como o gás quente acelerado quase à velocidade da luz nas proximidades de buracos negros no centro da Via Láctea e de outras galáxias emite raios gama.

“Não é fácil construir uma imagem com essa qualidade. A concretização dessa tarefa revela o sucesso em formação de recursos humanos no mais alto nível científico internacional”, afirma o físico Luiz Vitor de Souza, do Instituto de Física de São Carlos (IFSC), da USP, que não participou do trabalho.

Toda a radiação eletromagnética – da faixa do infravermelho aos raios gama, passando pela luz visível – é composta de partículas elementares chamadas de fótons. A diferença entre as várias formas de radiação eletromagnética está na energia dos fótons. A luz que os seres humanos enxergam é composta de fótons com energia da ordem de 2 a 3 elétron-volts (eV), enquanto os raios gama contêm fótons com energia superior a 500 mil eV. Invisíveis também para a maioria dos observatórios astronômicos em terra e no espaço, os raios gama só são detectados por meio de equipamentos bastante especializados, como os dois instrumentos a bordo do telescópio espacial Fermi, em órbita desde junho de 2008.

O grupo da USP é o único do Brasil a participar de um consórcio com 400 integrantes de 12 países que analisa os dados do telescópio de grande área (LAT) do Fermi. Esse equipamento realiza uma varredura constante do céu, registrando informações sobre as fontes persistentes de raios gama no Universo. Em 2013, cinco anos depois do lançamento do Fermi, a colaboração do LAT divulgou uma imagem do céu inteiro em raios gama. O mapa produzido agora pelo grupo da USP foi elaborado com base em dados coletados por 13 anos. “Nossa imagem foi feita com mais do que o dobro de fótons da primeira, o que tornou o sinal das fontes cósmicas cerca de 1,6 vez mais nítido em relação ao ruído de fundo”, diz Nemmen.

O novo mapa elaborado pelos brasileiros utiliza três cores para visualizar as fontes de raios gama. O vermelho representa os raios de energia baixa, entre 100 milhões de eV (MeV) e 1 bilhão de eV (1 GeV); o verde mostra os raios gama com energia intermediária, entre 1 GeV e 10 GeV; e o azul os de energia mais elevada, entre 10 GeV e 1.000 GeV – o equivalente a 1 trilhão de eV, ou 1 TeV.

Os fenômenos naturais capazes de produzir raios gama tão energéticos são relativamente raros no Universo. Apenas alguns tipos de corpos e ambientes celestes apresentam as altíssimas densidades de energia e as outras condições físicas necessárias para acelerar partículas subatômicas a velocidades muito próximas à da luz. No espaço, essas partículas altamente energéticas e ultrarrápidas – os chamados raios cósmicos, formados por prótons ou aglomerados de prótons e nêutrons – podem produzir raios gama com energia da ordem de dezenas de TeV ao colidir com os átomos que encontram no caminho. Na superfície da Terra, raios gama tão energéticos podem ser produzidos apenas durante a explosão de bombas nucleares.

Nasa / DOE / Fermi LAT Collaboration Imagem do Universo em raios gama produzida em 2013 com dados coletados pelo telescópio FermiNasa / DOE / Fermi LAT Collaboration

As leis físicas das reações entre essas partículas foram elucidadas pela primeira vez nos anos 1940 pelo físico ítalo-americano Enrico Fermi (1901-1954), homenageado no nome do telescópio espacial. O brilho de raios gama da maioria das estrelas quase não aparece no mapa celeste criado a partir de dados do Fermi porque se perde em meio à luminosidade difusa dos raios gama gerados pela colisão dos raios cósmicos com o meio interestelar da Via Láctea, que é mostrado como uma faixa horizontal brilhante no centro da imagem.

As principais fontes cósmicas de raios gama são os buracos negros supermassivos localizados no centro das galáxias. Segundo a teoria, essa radiação é gerada a partir de fenômenos que ocorrem muito perto dos buracos negros. Partículas aceleradas que escapam de cair no buraco negro são desviadas por campos magnéticos e expulsas para longe na forma de dois jatos. Ao colidir com o material do meio interestelar, as partículas do jato produzem raios gama (ver Pesquisa FAPESP nº 224). Quando os mais poderosos desses jatos apontam na direção da Terra, eles aparecem como fontes pontuais muito brilhantes dessa forma de radiação, conhecidas como blazares (ver Pesquisa FAPESP 270). A maioria dos pontos mostrados na imagem são blazares, sendo o 3C 454.3 o mais brilhante deles. Outras fontes pontuais possíveis são os remanescentes de supernovas. Essas explosões de estrelas gigantes resultaram na formação de pulsares, estrelas de nêutrons com jatos de partículas energéticas. Muitos raios gama são gerados quando as partículas aceleradas no jato do pulsar colidem com a nuvem de gás e poeira do que restou da explosão da estrela gigante. O pulsar de Vela, localizado na constelação de mesmo nome, e a Nebulosa do Caranguejo, na constelação de Touro, são os remanescentes de supernovas da Via Láctea mais brilhantes no céu na faixa dos raios gama.

Outra fonte que chama a atenção no mapa celeste de raios gama são as bolhas de Fermi, que aparecem como duas nuvens difusas de cor azulada no centro da imagem, acima e abaixo do plano da Via Láctea. As bolhas de Fermi foram descobertas em 2010 pelos astrofísicos Meng Su e Tracy Slatyer, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), e Douglas Finkbeiner, da Universidade Harvard, ambos nos Estados Unidos, ao analisar imagens do Fermi-LAT. Os dados sugerem que elas sejam o resquício de uma atividade anormalmente alta de ejeção de gás, produzida pelo buraco negro supermassivo no centro da Via Láctea, conhecido como Sagitário A*, há dezenas de milhões de anos.

Até recentemente, as observações do Fermi não permitiam um estudo mais detalhado das emissões de raios gama vindas de Sagitário A*. Agora, com dados suficientes, foi possível isolar os raios gama vindos desse buraco negro daqueles emitidos pelo restante da região central da galáxia. Durante o doutorado realizado sob a orientação de Nemmen, o astrofísico Fabio Cafardo analisou em detalhes essas informações e concluiu que a fonte de raios gama em Sagitário A* se comporta exatamente como um buraco negro. Um artigo com parte dos resultados da tese foi disponibilizado em julho no servidor de preprints arXiv e foi aceito para publicação na revista Astrophysical Journal. “Agora podemos afirmar com bastante propriedade que a origem dos raios gama do centro de nossa galáxia é o buraco negro supermassivo central da Via Láctea”, afirma Nemmen.

O acúmulo de observações do Fermi também tem permitido aos pesquisadores estudar fontes cósmicas muito fracas, que eram impossíveis de ser analisadas nos primeiros anos da missão. “Pela primeira vez estamos conseguindo entender e caracterizar a emissão de raios gama dos buracos negros supermassivos centrais de galáxias próximas que possuem baixa atividade”, conta o pesquisador da USP. Esses buracos negros são chamados núcleos de galáxias ativas (AGN) de baixa luminosidade, porque têm atividade muito pequena em comparação com a dos blazares, mas um pouco superior à baixíssima atividade de Sagitário A*.

Em colaboração com colegas da USP e dos Estados Unidos, Raniere Menezes analisou uma amostra de 200 AGN de baixa luminosidade que também foram observados por telescópios de raios X. Menezes descobriu que apenas cinco desses AGN emitem raios gama o suficiente para aparecer como fontes pontuais nas imagens do Fermi. Um deles fica no centro da galáxia M87, onde está o primeiro buraco negro supermassivo observado diretamente em 2019 pelo Event Horizon Telescope (ver Pesquisa FAPESP nº 279). Publicado na revista Monthly Notices of the Royal Astronomical Society em março de 2020, esse trabalho também mostrou que os modelos de geração dos raios gama nos jatos dos buracos negros supermassivos são o que melhor explicam as emissões dos cinco AGN. “É muito importante que brasileiros participem dessas descobertas científicas, pois elas representam um avanço real do nosso conhecimento sobre a natureza do Universo”, comenta Souza, do IFSC-USP.

A missão do telescópio espacial Fermi foi planejada para durar 10 anos. Ele, no entanto, pode continuar realizando observações por mais tempo, enquanto seus instrumentos se mantiverem funcionando, assim como ocorre com o seu primo mais velho e persistente, o telescópio espacial óptico Hubble. Isso, claro, se o Fermi não colidir com o lixo espacial, como quase ocorreu em 2012.

Artigos científicos
CAFARDO, F. e NEMMEN, R. Fermi LAT observations of Sagittarius A*: Imaging analysis. arXiv. 1º jul. 2021.
MENEZES, R. et al. Gamma-ray observations of low-luminosity active galactic nuclei. Monthly Notices of the Royal Astronomical Society. 16 jan. 2020.

Republicar