A partir do final do século XIX, quando passaram a ser incluídos no currículo de escolas primárias, inicialmente no Rio de Janeiro, os trabalhos manuais serviram como porta de entrada para noções básicas de geometria. Com a construção de objetos em papelão e madeira, meninos de 7 a 12 anos aprendiam sobre linhas perpendiculares, paralelas, ângulos e figuras planas. Em classes separadas para meninas, as atividades dispensavam saberes matemáticos complexos e ganhavam outro nome: trabalhos de agulha. Mais do que técnicas de costura e bordado, as alunas recebiam formação para se tornarem “mães e esposas”. A desigualdade de gênero nos primórdios do ensino formal de matemática é um dos aspectos abordados no recém-lançado Histórias do ensino de geometria nos anos iniciais e seus parceiros: Desenho, trabalhos manuais e medidas (Editora Livraria da Física), da professora de matemática Maria Célia Leme da Silva, do Departamento de Física da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus de Diadema.
O livro sintetiza os principais resultados de estudos recentes sobre a história do ensino de geometria no primário, realizados por pesquisadores brasileiros. Os trabalhos mostram como a história da educação matemática, um campo de pesquisa relativamente novo, pode ajudar a entender o papel desempenhado por embates teóricos e reformas políticas e sociais na maneira de ensinar a disciplina nas escolas. “Livros didáticos, programas de ensino, leis e revistas pedagógicas são fontes históricas importantes que apenas nas últimas duas décadas passaram a receber atenção”, observa Silva.
A visão de que a geometria deveria ser diversa para meninos e meninas estava presente em manuais pedagógicos de diversos países europeus, como França e Suécia, na virada do século XIX para o XX. “Boa parte dessa produção circulou no Brasil naquele período”, diz Silva. No país, a difusão dos primeiros materiais didáticos e cartilhas se deu pelas mãos de intelectuais que, em viagens ao exterior, tinham contato com movimentos como o da chamada Pedagogia Moderna. Essa corrente de pensamento surgiu na Europa, sendo um dos pioneiros o educador suíço Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827), e propunha um método intuitivo de ensino baseado na percepção sensorial das crianças.
O educador carioca Ezequiel Benigno de Vasconcellos Junior foi um dos responsáveis pela disseminação dessa proposta no Brasil. No livro Trabalho manual: Cartonagem escolar, de 1897, ele recomenda que professores estruturem aulas e exercícios usando figuras geométricas para estimular a inteligência e habilidades de raciocínio nos meninos – a distinção de gênero é feita pelo educador.
As ideias apresentadas por Vasconcellos disputavam espaço com visões mais tradicionais, como a do professor carioca Olavo Freire da Silva (1869-1941). Em Primeiras noções de geometria prática, livro de 1894, Freire defendeu um método de ensino da geometria mais rígido, menos experimental e mais abstrato, ancorado sobretudo no uso de régua e compasso. Também propunha que os alunos respondessem longos questionários. “No final das contas, essas lições testavam a capacidade das crianças de memorizar e reproduzir conceitos”, observa a pesquisadora.
Esse modelo foi o mais reproduzido no momento de criação do sistema educacional no país, sendo adotado em vários estados até meados do século XX, informa Silva. “Contribuiu para isso o fato de que a obra de Freire tinha sido lançada pela Livraria Francisco Alves, considerada à época uma das principais casas editoriais do Brasil, com forte poder de influência na distribuição e circulação de livros didáticos.”
De certa forma, a educação matemática advogada por Freire dialogava com a tradição do ensino militar, sublinha o professor de matemática Wagner Rodrigues Valente, pesquisador do Departamento de Educação da Unifesp e presidente do Grupo Associado de Estudos e Pesquisas em História da Educação Matemática (Ghemat), que reúne estudiosos do tema em quase todos os estados do país.
“Desde o Brasil Colônia, a matemática era ensinada com base na memorização e na repetição exaustiva de exercícios”, diz Valente, coordenador, com apoio da FAPESP, de um projeto dedicado a investigar processos históricos que afetaram a formação de professores de matemática entre 1890 e 1990. “Ao contrário do que se pode imaginar, os primeiros professores de matemática do Brasil foram militares, não jesuítas.” De acordo com o pesquisador, embora tivessem formação científica privilegiada (ver Pesquisa FAPESP nº 226), os padres jesuítas eram mais interessados nos aspectos filosóficos da disciplina.
“Aqui no país, cabia às escolas militares ensinar matemática com fins práticos, que envolviam o uso de armas de guerra e a construção de fortificações”, conta Valente, autor do livro Uma história da matemática escolar no Brasil: 1730-1930 (Editora Livraria da Física, 2020). Segundo ele, o primeiro modelo de ensino de matemática brasileiro foi criado em 1738, sob a denominação de Aulas de Artilharia e Fortificação do Rio de Janeiro, então capital do país. O curso permaneceu restrito a futuros oficiais militares até a Independência do Brasil em 1822.
“Após essa data, o saber matemático passou a fazer parte da formação geral das elites instruídas, basicamente funcionários de governo e profissionais liberais”, diz Valente. O mesmo ocorreu em países como França e Alemanha, nos quais diferentes ramos da matemática, entre eles a geometria, passaram a integrar o currículo de escolas primárias e secundárias na mesma época.
A partir da década de 1930, identifica-se um primeiro movimento que buscou modernizar o ensino da matemática, liderado pelo engenheiro sergipano Euclides Roxo (1890-1950), professor de matemática e diretor do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Até então, não havia propriamente a disciplina de matemática nas escolas, mas, sim, cursos separados de álgebra, aritmética e geometria.
Roxo foi um dos responsáveis pela fusão dessas áreas na nova disciplina escolar, a matemática. “A mudança ocorreu sob influência de Roxo, mas só se institucionalizou mediante a Reforma Francisco Campos, no primeiro governo de Getúlio Vargas [1882-1945]”, diz o matemático Antonio Vicente Marafioti Garnica, professor de pós-graduação em educação matemática da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Rio Claro.
Roxo também travou discussões com alguns de seus pares ao defender a diferenciação entre a matemática, como campo disciplinar, e o ensino de matemática. “Para ele, a formação de professores deveria mobilizar competências próprias do campo educacional, para além do conhecimento matemático”, salienta Garnica. Essa distinção, que ajudou a pavimentar o ensino da matemática como área de pesquisa no Brasil, é considerada o marco inicial para a historiografia da educação matemática, avalia Valente.
“Uma pergunta foi se estabelecendo: quem é que tem autoridade para dizer o que deve ser ensinado nas escolas? Os matemáticos ou quem lida com o ensino de matemática?”, observa Valente. Tensões entre matemáticos e educadores matemáticos tornaram-se mais frequentes conforme correntes pedagógicas ganhavam força nos Estados Unidos e na Europa, estimulando novas iniciativas de ensino em praticamente todas as disciplinas escolares.
Valente explica que, na perspectiva dos matemáticos, era preciso estruturar um programa de ensino voltado a formar “matemáticos mirins”. “Nessa lógica, os alunos tinham de ser expostos a conteúdos deliberadamente escolhidos como se todos fossem, um dia, se tornar matemáticos.” Essa estratégia revelou a preocupação de matemáticos em garantir a sobrevivência do campo científico em si – um pensamento com o qual muitos educadores não concordavam.
Em grande medida, esse debate segue controverso, observa Maria Laura Magalhães Gomes, estudiosa da história da educação matemática e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Lamentavelmente, ainda presenciamos situações em que o ensino da matemática mudou pouco com o tempo.” A ideia de que apenas alguns alunos têm um “dom” para apreender seus conhecimentos tornou-se senso comum, avalia Gomes.
Essa dinâmica, diz a pesquisadora, é alimentada por abordagens didáticas que seguem valorizando a memorização e a técnica, em vez de explorar o significado dos conceitos matemáticos. “É preciso considerar que a educação matemática deve se voltar para todos, e não para a minoria que, de fato, se dedicará profissionalmente à matemática no futuro.”
Nova investida contra modelos pedagógicos tradicionais foi feita nas primeiras décadas do século XX pelo movimento Escola Nova, que surgiu na Europa e logo ganhou terreno no Brasil, com a publicação do Manifesto dos pioneiros da educação nova em 1932. Entre os signatários estavam os educadores Fernando de Azevedo (1894-1974) e Anísio Teixeira (1900-1971). Essa corrente abriu espaço para a difusão de metodologias de ensino baseadas no protagonismo da criança. Isso foi visto com bons olhos por Roxo e outros educadores matemáticos.
“Os desenhos manuais passaram, naquele momento, a ganhar relevância para a disciplina”, comenta Silva. “Métodos experimentais, baseados em jogos e na solução de problemas concretos, integraram programas escolares em muitos estados, entre eles São Paulo.”
Com o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), uma nova onda de mudanças abalou a educação matemática. Em países europeus e nos Estados Unidos, difundiu-se a ideia de que era urgente uma reforma no ensino da disciplina, criando as bases do movimento da Matemática Moderna, conforme explicam os matemáticos Antônio Maurício Medeiros Alves e Denise Nascimento Silveira, ambos da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), em artigo publicado em 2017 na revista Tópicos Educacionais.
Representantes do movimento, entre eles o psicólogo suíço Jean Piaget (1896-1980), defendiam a reformulação do conteúdo ensinado nas escolas. Sugeriam, por exemplo, a introdução da teoria dos conjuntos, do matemático russo Georg Cantor (1845-1918). Queriam, com isso, apresentar aos estudantes noções de aritmética por meio de conjuntos, que são agrupamentos de elementos com as mesmas características, explicam Alves e Silveira. As ideias de Cantor não são de fácil entendimento, mas os “matemáticos modernos” deram um jeito de ajustá-las à grade escolar – sem privá-la, contudo, de elevado nível de abstração e complexidade.
“O movimento também tinha motivações geopolíticas”, afirma Valente. Em 1957, abalados com o sucesso do lançamento do satélite Sputnik 1, da antiga União Soviética, os Estados Unidos aumentaram os investimentos em pesquisa tecnológica. Nesse movimento, perceberam que, para resolver o problema da desvantagem tecnológica em relação aos soviéticos, era preciso repensar o ensino de ciências e matemática.
No Brasil, os primeiros livros didáticos influenciados pela Matemática Moderna foram publicados pelo educador e matemático paulista Osvaldo Sangiorgi (1921-2017). Essa corrente perdeu força nas décadas seguintes, apontada como rígida e excessivamente teórica, de acordo com críticas do matemático nova-iorquino Morris Kline (1908-1992), autor do livro O fracasso da Matemática Moderna, de 1976. “O grau de abstração proposto pela Matemática Moderna de fato não estava ao alcance dos alunos do ensino primário”, comenta Valente, lembrando que aqui o modelo foi revisto a partir de 1974.
Estudos em história da educação matemática começaram a despontar no Brasil no final dos anos 1990. Uma razão foi a inclusão da história da matemática como ingrediente importante no ensino a partir da publicação, em 1997, dos Parâmetros Curriculares Nacionais, que passaram a orientar o sistema público de educação. “A história da matemática possibilitou agregar ao ensino da matemática o conhecimento histórico”, diz Valente. “Isso abriu caminho para que a história da educação matemática se firmasse como área científica.”
Nos últimos anos, os pesquisadores desse campo – em sua maioria licenciados e bacharéis em matemática com interesse em história – passaram a investigar e mapear acervos contendo livros didáticos, projetos de leis de educação, entre outros documentos. Alguns também recorrem à metodologia da história oral para reconstruir acontecimentos ou analisar aspectos pouco contemplados pela historiografia tradicional, diz Garnica, que coordena o Grupo de Pesquisa
em História Oral e Educação Matemática (Ghoem) da Unesp. “Por mais que haja uma base curricular no país, cada colégio e cada professor adota estratégias de ensino diferentes”, explica. “Quando olhamos para o contexto regional, coletando depoimentos de professores e gestores, vemos que abordagens pedagógicas passam por adaptações e recombinações para atender necessidades locais.”
Projetos
1. Transformações de saberes geométricos no curso primário brasileiro (nº 17/09388-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Maria Célia Leme da Silva (Unifesp); Investimento R$ 28.716,36.
2. A matemática na formação de professores e no ensino: Processos e dinâmicas de produção de um saber profissional, 1890-1990 (nº 17/15751-2); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Wagner Rodrigues Valente (Unifesp); Investimento R$ 855.308,32.
Artigos científicos
VALENTE, W. R. História da educação matemática. Cadernos CEDES, 41 (115), set-dez, 2021.
ALVES, A. M. M. e SILVEIRA, D. N. Uma leitura sobre as origens do movimento da matemática moderna (MMM) no Brasil. Revista Tópicos Educacionais, v. 23, jan-jun, 2017.
Livros
LEME DA SILVA, M. C. Histórias do ensino de geometria nos anos iniciais e seus parceiros. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2021.
VALENTE, W. Uma história da matemática escolar no Brasil: 1730-1930. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2020