Imprimir PDF Republicar

Humanidades

Para ler e sentir

Equipe do Instituto de Psicologia da USP prepara o primeiro dicionário da língua de sinais usada no Brasil

Se você conhece uma família que tem uma criança com suspeita de ter problemas auditivos, muita atenção. O período ideal para que seja feito o diagnóstico e para que a criança tome contato com a linguagem dos sinais, a mais eficiente para as pessoas surdas, é extremamente curto. Vai apenas dos 6 meses aos 6 anos de idade. Se não houver a imersão numa comunidade que use a linguagem dos sinais nesse período, a criança pode ter desenvolvimentos lingüístico, cognitivo e social afetados. Não são casos tão raros. Estudos internacionais mostram que nada menos de 10% da população mundial sofre, num grau maior ou menor, de distúrbios na audição. No Brasil, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), são 15 milhões de pessoas com perdas auditivas, 350 mil que nada conseguem ouvir.

Depois do diagnóstico, será preciso ter à mão os instrumentos adequados para o desenvolvimento da criança. Uma lacuna importante nesse campo, uma sistematização da Libras, a linguagem brasileira dos sinais, será preenchida ainda este ano. Uma equipe de pesquisadores do Laboratório de Neuropsicolingüística Cognitiva Experimental, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), dirigida pelo professor Fernando Capovilla, acaba de completar o Dicionário de língua brasileira de sinais: ilustração e escrita visual direta de 3.500 sinais usados por surdos em São Paulo , que faz justamente esse trabalho.

O dicionário está em fase final de revisão pela Federação Nacional de Educação e de Integração dos Surdos (Feneis). Uma versão em CD-ROM será lançada, provavelmente, no fim do ano 2000. Financiamentos da FAPESP ajudaram a realizar o projeto de pesquisa e a elaborar um sistema computadorizado de comunicação com base em sinais. Um pedido de auxílio para a publicação do dicionário já foi apresentado à Fundação. Além da FAPESP, colaboraram com o projeto a Fundação de Apoio à USP, as Pró-Reitorias de Pesquisa ede Cultura e Extensão da USP e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). As informações foram colhidas com o auxílio da Feneis e da Cooperativa Padre Vicente (Copavi).

As perspectivas são enormes. “O dicionário pode ser um primeiro passo para a padronização dos sinais”, diz a coordenadora da Escola Especial de Crianças Surdas da Fundação de Rotarianos de São Paulo, a fonoaudióloga Sabine Vergamini. Ela afirma que uma das grandes dificuldades dos educadores é encontrar, mesmo dentro da cidade de São Paulo, sinais diferentes para a mesma palavra. Ela afirma também que as publicações usadas atualmente têm muitos problemas, como o de trazer sinais importados de outras línguas de sinais, especialmente a usada nos Estados Unidos.

No dicionário em papel, os sinais estão indexados pela ordem alfabética das palavras correspondentes em português. A versão eletrônica terá também um índice organizado pelas características morfológicas. No CD-ROM, os sinais poderão ser selecionados diretamente, pelo mouse ou por tela sensível ao toque. Mas também haverá acessos indiretos, por varredura automática e dispositivos sensíveis ao sopro, ao piscar e a movimentos discretos. Assim, a versão eletrônica poderá ser usada por pessoas tetraplégicas ou com distúrbios motores severos.

Fonte confiável
O dicionário terá muitas utilidades como obra de consulta e estudos, até mesmo para professores surdos de Libras, que poderão empregá-lo para o ensino da estrutura e gramática dessa língua. Mas sua principal aplicação será, sem dúvida, no dia-a-dia, no ensino das crianças surdas. Pela primeira vez, as professoras dessa área terão uma fonte de consulta confiável, composta para surdos e a partir de informantes surdos, revisada por organizações especializadas na educação de surdos.

A obra terá cerca de mil páginas, com aproximadamente 15 mil ilustrações. Cada sinal será mostrado com desenhos que exibem a articulação das mãos, o local da articulação com relação ao corpo, o movimento do sinal e a expressão facial associada ao sinal. Os movimentos são mostrados em seqüências, com o auxílio de setas. Na versão em CD-ROM, será mostrado o próprio movimento.

À esquerda da ilustração do sinal aparece a ilustração de seu significado e abaixo dela aparece a palavra correspondente em português, com classificação gramatical e definição. Isso é importante para a criança surda, que normalmente aprende primeiro a se expressar em Libras e só depois passa para o português. Além da definição, aparece também uma frase mostrando o contexto em que o sinal pode ser usado, em português e em Libras. Há também uma descrição precisa e detalhada do sinal, importante para estudos lingüísticos sobre a estrutura do sinal e para comparações com sinais usados em outras regiões e países.

Linguagem estruturada
No lado direito da ilustração, o sinal aparece escrito na escrita visual direta SignWriting, por meio do programa SignWriter, um sistema internacional de escrita de sinais usado em todo o mundo. Isso é importante. Como a escrita alfabética mapeia os sons da fala, explica o professor Capovilla, beneficia bem mais o desenvolvimento da fala na criança ouvinte do que faz o desenvolvimento da língua dos sinais na criança surda. A escrita visual direta faz pela criança surda e pela língua de sinais o mesmo que a alfabética faz pela ouvinte e pela língua falada: estrutura e formaliza a linguagem, acabando por beneficiar a criança e a própria cultura.

Assim, o sistema SignWriting vem sendo usado em todo o mundo, para escrever cartas, artigos, textos literários e livros inteiros na língua de sinais própria de cada país ou região. Sua função principal, porém, não é a de substituir a escrita alfabética. É a de dar à criança surda, no período ideal para a aquisição da leitura e escrita, um instrumento de desenvolvimento psicolingüístico tão poderoso como é a escrita alfabética para a criança ouvinte.

A partir dos sinais do dicionário, o professor Capovilla e sua equipe estão terminando um sistema de comunicação multimídia, chamado SignoFone. Ele poderá ser usado em comunicações face a face por computador e para contatos em rede. O sistema terá uma forma ilustrada, com animações gráficas, e outra escrita, por SignWriting, ambas com voz digitalizada associada. Para permitir comunicações internacionais, poderá cifrar mensagens em sinais entre a Libras e a língua de sinais usada nos Estados Unidos. Os textos escritos e falados poderão ser mudados também entre português e inglês.

O programa poderá ser ativado também por varredura automática ou por dispositivos sensíveis. Assim, mesmo os surdos tetraplégicos poderão usar o sistema, enviando mensagens na linguagem dos sinais, imprimi-las em português ou em inglês, soá-las com voz digitalizada nas duas línguas ou armazená-las. Portanto, ao contrário do que acontece com os telefones de texto, os surdos terão à disposição uma maneira para comunicar-se com outros surdos, mesmo fora do Brasil, na própria linguagem dos sinais. Como se vê, o esforço dos pesquisadores do Instituto de Psicologia abre caminhos que não se limitam mais às utilidades de um dicionário.

Perfil
O professor Fernando Capovilla, do Laboratório de Neuropsicolingüística Cognitiva Experimental do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), trabalha há dez anos com crianças portadoras de distúrbios de comunicação e linguagem, resultantes de comprometimentos neurológicos, sensoriais ou cognitivos. Ele e seus colaboradores desenvolveram mais de cem programas de computador destinados a diagnosticar e tratar distúrbios de comunicação e linguagem em crianças e adultos. Capovilla obteve o doutorado em psicologia experimental em 1989, pela Universidade Temple, da Pennsylvania, nos Estados Unidos, e ocupa o cargo de presidente eleito (1996-2000) da Divisão Brasileira da International Society for Augmentative and Alternative Communication, organização internacional dedicada a pessoas com distúrbios sensórios-motores e cognitivos.

Juntos ou separados?
O debate continua. O que é melhor para uma criança surda? Agrupá-la com outras crianças surdas em classes especiais ou dispersá-la em classes comuns, junto com as crianças ouvintes, para que não se sinta discriminada? Para o professor Fernando Capovilla, da USP, não há dúvidas: as classes especiais obtêm resultados bem melhores. “A política de classes comuns é bem-intencionada, mas privilegia a integração social e não o desenvolvimento cognitivo e lingüístico do aluno surdo sem que ele tenha condições de acesso pleno à vida da comunidade”, afirma. “Em nome da integração, acaba discriminando e, nessas condições, o desempenho do aluno especial não acompanha o dos colegas ouvintes.”

A origem do problema está num congresso internacional que reuniu especialistas em educação de surdos de todo o mundo em 1880, em Milão, na Itália. O congresso aprovou resolução banindo das escolas as classes especiais e a linguagem dos sinais e recomendando, inclusive, a demissão sumária dos professores e funcionários surdos. Essa foi a tendência dominante até a década de 1970, quando se adotou o princípio da chamada comunicação total, o uso dos sinais para apoiar o ensino da leitura labial.

Não deu certo. As professoras, nas salas de aula, tentavam falar e sinalizar ao mesmo tempo. Pesquisadores dinamarqueses filmaram algumas aulas dadas nessas condições. Omitiram o som e pediram às professoras filmadas que observassem os movimentos dos lábios e repetissem o que tinham dito aos alunos. Nenhuma conseguiu. Quando prestavam mais atenção à fala, tendiam a omitir sinais. Quando se preocupavam mais com os sinais, esqueciam as palavras. As crianças raras vezes conseguiam obter a leitura completa, quer pelos sinais, quer pela leitura dos lábios.

Atualmente, ganha força a filosofia educacional do bilingüismo, que defende o ensino primeiro da língua de sinais, depois da leitura da palavra escrita. Isso se baseia na constatação de que a criança surda, quando entende tudo o que o professor comunica por meio de sinais, aprende a ler e escrever com a palavra escrita muito mais facilmente. A pequena Nicarágua, na América Central, reformulou o atendimento aos estudantes surdos dentro desses princípios, com a criação de salas especiais e o ensino dos sinais. Hoje, é exemplo para o resto do mundo.

No Brasil, apesar da discussão entre as varias tendências, é oficial, pela nova Lei de Diretrizes e Bases, a existência de salas ou escolas especiais para surdos. Mas ressalva que isso só é obrigatório “quando for possível”. De qualquer maneira, Capovilla ressalva que a criança surda deve ser introduzida na língua de sinais nos seis primeiros anos de vida. Em caso contrário, adverte, haverá um prejuízo considerável. A criança terá dificuldades para desenvolver-se plenamente e exercer, mais tarde, profissões que requeiram um domínio maior da linguagem.

Republicar