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Pesquisa na quarentena

“Participei de um dos maiores experimentos em colaboração remota já feitos”

A cientista da computação Vanessa Testoni explica como a pandemia afetou seu trabalho como líder da delegação brasileira em comitê internacional que define padrões para a compressão e transmissão de áudio, imagem e vídeo

Em reunião no Marrocos em janeiro de 2019, como parte da delegação internacional da Samsung

Arquivo pessoal

Trabalho no Samsung Research Institute Brazil, em Campinas, onde lidero um grupo de pesquisa dedicado ao desenvolvimento de tecnologias de processamento digital de sinais, com foco nos formatos de compressão de imagem e vídeo. Com a pandemia, trocamos o escritório pelo home office. Trabalhar em casa não tem sido um problema. Para quem atua em empresas de tecnologia, a adaptação é bem fácil. Precisamos de um bom notebook, banda de internet e acesso a máquinas com grande poder computacional para rodar algoritmos – os servidores podem estar em qualquer lugar do mundo.

Os quatro pesquisadores do meu grupo e eu trabalhamos em conjunto com colaboradores de várias universidades e o contato com eles já era feito virtualmente. Eu gosto muito de conversar, mas tenho colegas com perfil mais introspectivo, que até preferem trabalhar sozinhos. Não me sinto só. Meu marido é pesquisador e estamos os dois trabalhando em home office.

Por conta de meus interesses de pesquisa, desde 2018 me tornei a líder da delegação brasileira do comitê internacional, vinculado à Organização Internacional de Normalização [ISO] e à Comissão Eletrotécnica Internacional [IEC], que define os padrões mundiais para codificar informações de multimídia em geral (áudio, imagem e vídeo). As reuniões desse comitê, que envolvem centenas de pesquisadores de todos os países, aconteciam presencialmente quatro vezes por ano – em anos anteriores estive em lugares como Marrocos, Portugal, Suíça e China. A pandemia faz parte do meu cotidiano desde o início do ano, quando as delegações começaram a discutir como prosseguir com as reuniões trimestrais.

Entre os dias 20 e 24 de abril, aconteceu a reunião para definir novos padrões para a compressão e transmissão de áudio, imagem e vídeo do MPEG, ou Grupo de Especialistas em Imagens com Movimento, formado pela ISO/IEC e pela ITU-T, o setor de normatização das telecomunicações da União Internacional de Telecomunicações.

Pela primeira vez, as plenárias e as votações aconteceram on-line. Foi um experimento interessantíssimo, um dos maiores em colaboração remota da história, com centenas de delegações conectadas durante muitas horas por dia. Como essa reunião aconteceria na Áustria, adotou-se o horário de lá como referência. Com isso, a delegação brasileira, que inclui pesquisadores de empresas e universidades, teve de trabalhar bastante à noite, entrando pela madrugada, nesses dias. É um trabalho fascinante. Os padrões de compressão são uma fronteira tecnológica importante. Além da relevância para serviços de streaming – de acordo com o relatório anual da Cisco, desde 2016 mais da metade de todo o tráfego de internet em geral já corresponde a vídeo e até 2021 cerca de 75% de todo o tráfego de rede móvel também corresponderá somente a vídeo –, esses padrões estão sendo adotados também em outras áreas que envolvem grandes volumes de informações, como a compressão de dados do genoma humano, por exemplo.

Em decorrência da pandemia, estima-se que o crescimento da quantidade de vídeo nas nossas redes será ainda maior, tendo em vista o crescimento acelerado do uso das várias ferramentas de conexão remota por vídeo que estão sendo usadas tanto para trabalho a distância quanto para contatos com familiares e amigos. Além disso, veremos um interesse mais acelerado em tecnologias de realidade virtual e aumentada para visitas remotas a museus, educação a distância e cirurgias remotas.

Os padrões existem para garantir interoperabilidade: um filme da Netflix precisa poder ser visto em celulares e aparelhos de TV de todos os fabricantes. Como a tecnologia está sempre evoluindo (4K, 8K, point clouds, multi-view, light fields, holografia), existe a necessidade constante de desenvolvimento de novos padrões de compressão. Nessas reuniões, cada empresa apresenta o que desenvolveu e submete à avaliação de outras empresas e especialistas. Há dezenas de subgrupos avaliando cada tipo de tecnologia associada ao MPEG e, após a avaliação técnica, vota-se (cada país tem um voto) e se define o que será adotado nos padrões internacionais. Essa adoção rende royalties para as empresas que criaram as tecnologias escolhidas e as patentes também servem como moeda de troca entre as empresas. Embora sejam empresas gigantes da tecnologia e concorrentes, é um trabalho que tem de ser feito de forma cooperativa entre empresas e países.

Se o trabalho remoto não tem sido um problema, me sinto angustiada com o que está acontecendo no Brasil e no mundo envolvendo a política, a crise econômica e a saúde pública. Uma pessoa muito próxima, um tio do meu marido, morreu em decorrência da Covid-19 há alguns dias. Foi para o hospital e morreu em questão de horas. Nem foi possível fazer um funeral. Perto do que está acontecendo e de como as pessoas estão sofrendo, os outros problemas se tornam relativos.

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