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Física

Partícula rara decai e se desintegra sete vezes mais do que sua antipartícula em estudo feito por brasileiros no LHC

Resultado representa maior grau de violação de uma lei da física e pode ser pista para entender por que há mais matéria do que antimatéria no Universo

Instalações do experimento LHCb no Grande Colisor de Hádrons

Maximilien Brice / Cern

O decaimento de formas raras de uma efêmera partícula subatômica denominada méson B ocorre com uma frequência quase sete vezes maior do que com sua respectiva antipartícula. Essa diferença de comportamento entre matéria e antimatéria representa, até agora, o maior nível de violação registrado de uma lei fundamental da física denominada simetria de carga e paridade (CP).

O resultado, surpreendente, foi obtido em um estudo liderado por um grupo de 13 físicos (12 brasileiros) que fazem parte da colaboração internacional LHCb. Esse é um dos quatro experimentos principais conduzidos no maior acelerador de partículas do mundo, o Grande Colisor de Hádrons (LHC), situado nos arredores de Genebra, na Suíça. O grau de confiabilidade do dado produzido pelo trabalho ultrapassa 5 sigmas, ou seja, há menos de uma chance em 3,5 milhões de a medida final ser decorrente de um erro ou flutuação estatística.

“Esse nível de violação da simetria CP não era esperado”, comenta, em entrevista a Pesquisa FAPESP, o físico Ignácio Bediaga, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), coordenador do grupo brasileiro. “Ele pode ter sido decorrente de interferências quânticas ou de algum mecanismo físico que ainda não conhecemos.”

A exemplo de outras subpartículas, os mésons B são produzidos em decorrência de colisões entre prótons acelerados a velocidades próximas à da luz no interior do LHC, que faz parte do Centro Europeu para Pesquisa Nuclear (Cern), onde mais de 12 mil pesquisadores da física de altas energias de 70 países trabalham. No início de março, o governo federal assinou um acordo que prevê a entrada do Brasil como membro associado do Cern.

Além de ser relevante para a própria física de partículas, a medida pode ter implicações importantes na área de cosmologia que estuda a evolução do Universo, embora ainda seja prematuro, segundo os pesquisadores, avançar em demasia nesse tipo de especulação. Afora pesquisadores do CBPF e de brasileiros em universidades do exterior, a equipe inclui físicos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da Universidade de Brasília (UnB) e também uma colega da Universidade Nacional Autônoma de Honduras.

Nesse trabalho, cujos resultados fazem parte de um artigo científico ainda não submetido à publicação, os físicos observaram a frequência com que os mésons B com carga elétrica positiva ou negativa (e suas respectivas antipartículas) se transformam em uma de quatro combinações possíveis de três subpartículas mais leves: três píons; três káons; dois píons e um káon; e dois káons; e um píon. No início do Universo, entre outros processos, deve ter havido produção de mésons B e ocorrido esse tipo de decaimento.

LHCbReconstrução de evento de tomada de dados em 2016: partículas como píons e káons aparecem em cores distintasLHCb

A partir do registro de bilhões de colisões de prótons no LHC, os pesquisadores conseguiram observar cerca de 100 mil eventos em que, em trilionésimos de segundo, mésons B carregados eletricamente decaíram e geraram píons e káons. “Analisamos dados do segundo ciclo de colisões prótons que ocorreu no LHC entre 2015 e 2018”, diz a física Laís Soares Lavra, que faz estágio de pós-doutorado na Universidade de Clermont Auvergne, na França, e integra o grupo brasileiro do LHCb. “Estamos há cinco anos analisando os dados e produzindo esse estudo.” Em seu doutorado, Lavra trabalhou com dados preliminares do LHCb.

A quebra da simetria CP é o único princípio do chamado Modelo Padrão da física que tenta interpretar a produção ligeiramente desigual de matéria e antimatéria desde o Big Bang, a hipotética explosão inicial que teria dado origem ao Universo há cerca de 13,8 bilhões de anos. O Modelo Padrão é a teoria dominante que, há meio século, explica as partículas constituintes da matéria e suas interações, com exceção da gravidade.

A simetria CP prevê que a natureza deveria criar na mesma quantidade partículas de carga positiva e com uma determinada coordenada espacial e suas respectivas partículas-espelho, antipartículas exatamente iguais às primeiras, mas com carga negativa e coordenada oposta. Quando esse princípio é respeitado, a taxa de decaimento de uma dada partícula instável, como o méson B, e o de sua antipartícula, é idêntica. Nesse cenário, a partícula e sua antipartícula se aniquilam ao se encontrarem. Elas desaparecem instantaneamente e liberam radiação (energia).

Porém, como há mais matéria do que antimatéria conhecida no Universo, um pequeno grau de quebra dessa simetria teve de ser incorporado, há décadas, à teoria física para dar conta dessa situação intrigante. “Os resultados desse novo trabalho do grupo brasileiro no LHCb são muito importantes”, comenta o físico teórico Tobias Frederico, do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), que colabora com Bediaga do CBPF, sem, no entanto, fazer parte da equipe brasileira que atua no experimento internacional. “Mas ainda não é possível usá-los como uma possível explicação para o excesso de matéria em relação à antimatéria no Universo. Pode haver outras explicações que justifiquem esse grau de violação da simetria CP. No momento, fazer esse tipo de ligação seria um salto muito grande.”

Em material de divulgação sobre o estudo preparado pelo Cern, o físico polonês Piotr Traczyk do experimento CMS do LHC, enfatiza a importância da existência da quebra de simetria CP na natureza. “Infelizmente a quantidade de assimetria CP prevista no Modelo Padrão da física de partículas não é suficiente para explicar a composição do Universo”, diz Traczy. Por isso, mais estudos sobre o fenômeno, que possam apontar possíveis fontes e mecanismos associados a essa discrepância, são necessários.

O trabalho coordenado pela equipe brasileira ainda não foi submetido à publicação porque o Cern, que conta com a participação de pesquisadores russos em seus experimentos, decidiu não encaminhar seus artigos científicos para periódicos como forma de protesto contra a guerra na Ucrânia, invadida pela Rússia.

A edição impressa de abril de 2022 traz uma versão ampliada desta reportagem.

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