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Ricardo Lísias

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The Academy of Sciences and Fine Arts.’ Engraving by Sebastien LeClerc, 1698. /Photoresearchers/LatinstockA sétima reunião ordinária da congregação do ano de 2012 começou atrasada porque o professor mais alto demorou para consertar o laptop. Como se não bastasse ter que ler o projeto de pós-doutorado do artista, o arquivo ainda tinha vindo com vírus. Deve ter sido de propósito, resmungou no corredor. Ele sabe que estou cuidando da editora e provavelmente quer prejudicar nossos próximos lançamentos.

Antigo na universidade, não foi brincando que o professor mais alto conquistou seu espaço. Em uma época cujos valores parecem todos muito desgastados, ele fez uma aposta na rigidez da formação: a academia para os acadêmicos, repetia sempre que encontrava os colegas. Quando o grupo chegou à reitoria, um pórtico com esse lema foi colocado em um dos portões do campus. Se os motivos da luta de toda a sua vida forem ameaçados, ele vira um leão.

Ao entrar na sala, segurando com força o texto do projeto no braço esquerdo (enrolado como se fosse um pequeno porrete), o professor mais alto olhou de relance para o último banco da segunda fileira, onde costuma se sentar o professor mais ansioso. Que besteira, pensou, não sabe com quem está lidando. Os novatos muitas vezes só aprendem mesmo no susto. Mas nosso trabalho é como uma missão: é preciso fazer o que precisa ser feito…

Como de costume, a questão dos pós-doutorandos demorou a entrar em discussão. Antes, era preciso tratar do problema dos mestrados, da diminuição do número de doutorandos e dos alunos de graduação, que não estão entendendo a filosofia do curso e, ao mesmo tempo, pedem apoio para reivindicar alguma coisa junto à reitoria. Uma hora eles vão amadurecer. São mais ou menos como os professores novatos.

Vai ser agora. O presidente da mesa está introduzindo, com firmeza mas muito cuidado, o assunto. Ainda bem, pois o professor mais alto não está aguentando de ansiedade e o mais ansioso quer que tudo acabe logo.

Quem pediu a palavra foi o professor mais gordo. Segundo ele, o pedido do artista não poderia ser aceito, pois ele não juntara ao processo de pós-doutorado o atestado de antecedentes. Fez de propósito, o professor mais alto balbuciou. A professora mais fechada ouviu e se policiou para não fazer nenhum gesto com o pescoço. Aproveitando a deixa (não do balbucio do professor mais alto, mas do lembrete do mais gordo), o professor mais cabeludo sugeriu que dali em diante não fossem incluídos na pauta processos de pós-doutorado cuja documentação ainda não estivesse conferida. Não podemos perder tempo com gente que não cumpre regras. Um sinal de amadurecimento é o respeito às determinações. Não é burocracia, mas sim ordem!

Boa sugestão, cumprimentou-lhe a professora mais maquiada. Ordem! No caso do artista, aliás, além de ordem também falta a declaração de imposto de renda. Ao ouvir isso, o professor mais alto suspirou, mas ficou quieto. Se fosse dizer o que estava pensando, talvez ofendesse o professor mais narigudo. É que o colega também arrisca uns quadros e está mais do que claro que o artista quer o dinheiro da bolsa de pós-doutorado para pintar outras telas que o pessoal elogia não sei como, pensou o mais alto. As pessoas estão perdendo a compostura.

Na verdade, a arte morreu. Tudo hoje está afogado em uma produção desinteressante, sem força e nenhum poder de impacto. Pintar não é mais preciso! Essas pessoas querem apenas tapinhas nas costas. Não se preocupam em planejar o futuro, por exemplo. Basta ver o caso dele próprio, ele próprio pensou: seus amigos são apenas aqueles que partilham seus ideais. Como por telepatia, o professor mais esotérico cobrou a importância da declaração de intenções. Com ela, sabemos que o pós-doutorando vai usar o dinheiro da bolsa para comprar os tijolinhos de sua carreira.

Com isso eu concordo, concordou o professor mais calorento: precisamos zelar para que todos os membros do programa de pós-doutorado gastem o dinheiro da bolsa com algo que indique que eles vão fazer uma sólida carreira acadêmica. Não podemos perder tempo com um aventureiro (aliás, pensou o professor mais alto: um bom sinônimo para a palavra “artista”…). Então, redarguiu o professor mais gordo, vamos instituir que o projeto deverá ser apresentado desde o início com a declaração de antecedentes, a de renda e a de compromisso.

Há ainda um outro detalhe importante, lembrou o professor mais importante. Precisamos de um atestado de sanidade. O mais alto, então, acabou não se segurando e falou: no caso específico do artista, é fundamental porque ele é arrogante e não aceita a opinião de ninguém. Não se pode dizer que toda a congregação tenha ouvido a opinião do professor mais alto, mas o fato é que o professor mais importante estava bem ao seu lado e concordou. Precisamos de pessoas que aceitem os outros, o que não é o caso, reforçou a professora mais assanhada. Estamos em um lugar onde a discórdia é importante, concordou o professor mais narigudo. Vejamos o nosso próprio caso. O departamento ocupa hoje a posição que ocupa hoje porque sempre fomos muito maduros e serenos nas nossas divergências. Nesse momento ele foi aplaudido em pé.

De um jeito ou de outro, temos que chegar a uma decisão, ponderou o professor mais ponderado e que até ali tinha ficado quieto, para ver se a confusão amainava. O mais quieto, por sua vez, pensou em fazer uma fala, mas o mais gordo se adiantou. Em primeiro lugar, encaminho para votação a proposta de que o departamento recuse o projeto de pós-doutorado do artista por ausência de documentação. Mas e se ele reunir os documentos que faltam?, perguntou, agora sem se conter, o professor mais alto.

Os outros fingiram que não tinham escutado. Mas o medo dele durou pouco: decidimos ainda, completou o professor mais gordo, que uma pessoa só pode apresentar uma única vez o seu projeto. Se não der certo, por qualquer motivo, perde a chance. Concordo, gritou o professor mais alto, erguendo-se. Com um enorme sorriso, ele virou para olhar a cara do professor mais ansioso. Que bobo, aceitar supervisionar o pós-doutorado do artista!

Mas o colega não estava na sala. Onde esse homem foi parar?, perguntaram-se todos em voz baixa. A única pessoa que teve coragem de sair da sala para ver o que tinha acontecido foi o professor mais inteligente. Ele resolveu aproveitar o último restinho de sol, respondeu-lhe a enfermeira.

Ricardo Lísias é escritor, autor de O livro dos mandarins e O céu dos suicidas. Foi eleito para integrar a antologia da revista inglesa Granta com Os melhores jovens escritores brasileiros

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