Uma nova análise dos artefatos mais antigos do mundo fora da África, no leste da Jordânia, no Oriente Médio, levou a conclusões surpreendentes sobre o sítio arqueológico que registra as primeiras migrações humanas. Segundo artigo publicado em janeiro na revista Journal of Paleolithic Archaeology, foram examinados 40 artefatos de pedra lascada coletados entre 2013 e 2016 nas terras arenosas do vale do rio Zarqa, quando arqueólogos de diferentes nacionalidades foram até a região munidos de colheres de pedreiro e soluções químicas para escavar o duro afloramento rochoso por onde já correu um rio. Os indícios encontrados pela equipe, que inclui pesquisadores das universidades de São Paulo (USP) e Federal do Paraná (UFPR), são de que os artefatos foram produzidos por uma espécie de hominídeo no próprio sítio, entre 2,5 milhões e 1,9 milhão de anos atrás, o que indica uma presença muito anterior ao que era aceito desde a década de 1980.
“Do meu ponto de vista, isso muda totalmente a interpretação anterior”, afirma o arqueólogo Astolfo Araujo, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP, um dos autores do artigo. O novo entendimento empolga os pesquisadores porque indicaria que os antepassados humanos que produziram aquelas ferramentas de pedra de fato viveram ali. “Eles estavam lascando naquele lugar, provavelmente para processar carnes e peles de animais”, sugere Araujo. Restos fossilizados de mamutes, equinos e bovinos já foram encontrados no sítio. O pesquisador destaca, contudo, que as novas conclusões valem apenas para alguns sítios, como o que foi alvo do estudo. Para outros, a interpretação original não está descartada: os fragmentos de outros locais podem ter chegado pelas águas.
Além de reanalisar as origens dos artefatos, os arqueólogos também tentavam desvendar o modo de produção das peças de pedra lascada. Eles já sabiam, por análises preliminares do material, que elas poderiam ser classificadas dentro da chamada indústria lítica Olduvaiense, associada aos seres humanos da espécie Homo habilis, a primeira espécie conhecida do gênero Homo, e datada em pelo menos 2,6 milhões de anos. Estudos indicavam que no continente africano as lascas dessa indústria, usadas para cortar ou raspar materiais que iam desde carne e couro até fibras vegetais, eram fabricadas por técnicas e métodos que variavam na forma que as lascas eram retiradas. O choque direto de uma pedra no bloco usado como matriz podia ocasionar a retirada das lascas, ou uma rocha ser usada como martelo e outra como bigorna. A operação podia acontecer diretamente sobre o solo ou seguir o caminho inverso, com a matriz sendo batida contra outra superfície rochosa. “Essa grande variabilidade na produção de lascas tinha sido observada no Quênia, mas não no Oriente Médio. Encontrá-la na Jordânia foi uma novidade mais geográfica do que tecnológica”, explica o arqueólogo italiano Fabio Parenti, da UFPR, primeiro autor do estudo, acrescentando que a descoberta é “um detalhe fundamental da indústria lítica”. Hoje radicado no Brasil, Parenti escava na Jordânia desde 1996. O trabalho conta com financiamento da FAPESP e da UFPR.
A arqueóloga jordaniana Maysoon al Nahar, da Universidade da Jordânia, reitera as conclusões da pesquisa. “Essa descoberta da Formação Dawqara inferior, no vale do rio Zarqa, sugere que a evolução da indústria lítica ocorreu tanto na África quanto fora dela”, disse a Pesquisa FAPESP, por e-mail. Os novos estudos podem ainda comparar as indústrias líticas Olduvaienses da Jordânia e da África, além de estudar como nos dois continentes esse tipo foi substituído pela indústria Acheulense, mais complexa e mais recente, com idade estimada em pelo menos 1,7 milhão de anos, associada a Homo erectus.
A região do vale do Zarqa é palco de estudos arqueológicos desde a década de 1950, sobretudo pela sua riqueza em materiais de diferentes períodos. Ao longo dessas décadas, o vale já foi estudado por equipes norte-americanas, francesas e italianas. Foram os italianos que, a partir de 1993, fizeram as escavações mais sistemáticas na região, até o início dos anos 2000. Dessa época a 2013 houve um hiato, até que o trabalho foi retomado por uma equipe ítalo-brasileira que atuou na área até 2016, em projetos coordenados por pesquisadores como o paleoantropólogo Walter Neves, da USP, e o geólogo Giancarlo Scardia, do campus de Rio Claro da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que foi o principal responsável por traçar a cronologia da região. Em 2019, novas datas publicadas por essa equipe revelaram que o sítio é, entre os conhecidos até hoje, o mais antigo fora da África, com cerca de 2,5 milhões de anos.
Para reavaliar a hipótese sobre a deposição dos materiais, os pesquisadores analisaram as marcas que o transporte pela água do rio poderia ter deixado e a distribuição das peças, que em muitos casos não são as ferramentas líticas em si, mas fragmentos deixados no processo de sua produção. “Quando raspamos a camada que está na base do afloramento, ficou nítido que existia, em um espaço de 20 a 25 metros [m] de extensão, uma concentração muito grande de artefatos. Mais adiante, passamos a encontrar um, dois artefatos; depois passamos por 20 a 30 m sem nada e achamos outro artefato. É muito díspar”, descreve Araujo. Isso é incongruente com a interpretação original. Quando sedimentos, peças arqueológicas ou fósseis são transportados pela água em um canal fluvial eles geralmente se distribuem de forma relativamente uniforme ao longo do caminho, o que não foi observado no sítio do vale do rio Zarqa.
Há outras pistas. Em um dos sítios, por exemplo, os arqueólogos conseguiram “remontar” um artefato lítico. Significa que reconstruíram a peça inteira, como um quebra-cabeça tridimensional, encaixando cacos encontrados próximos uns aos outros. Para outro artefato eles não encontraram todas as partes, então uniram o que havia e inferiram como seria a peça completa. “Essas duas lascas que citei agora estavam a 20 centímetros uma da outra”, diz Araujo. É um indicativo de que as peças desse sítio foram pouco transportadas.
Indícios contra a hipótese de produção local são que os gumes dos artefatos foram quebrados e todas as peças estão muito polidas pela areia do rio. Ambos são sinais de que poderiam ter sido transportadas pela água do rio, mas os autores do estudo têm argumentos contrários. Uma vez que as peças estavam em meio às pedras do antigo rio, chamadas de seixos ou calhaus, a depender do tamanho, qualquer impacto seria capaz de danificar os gumes. Parenti, que foi responsável pela análise do polimento e da quebra natural dos gumes, afirma que as peças podem de fato ter sido produzidas naquele local e não transportadas pela água por longas distâncias. Mesmo assim, apresentam um grau de polimento elevado. “Elas são polidas pela areia que passa por cima, não pelo transporte na água”, explica.
As investigações abrem portas para um debate mais aprofundado sobre a dispersão dos primeiros hominínios – grupo que reúne apenas as espécies extintas e a atual de seres humanos – para fora da África. A nova interpretação, quando somada à abundância de artefatos encontrados no sítio, confirma que houve uma ocupação intensiva naquela localidade na Jordânia. Até hoje, não há sítios dessa idade na região que inclui a Jordânia, Israel e a Cisjordânia. Isso pode corroborar a hipótese de que essa região tenha servido como zona de passagem para as primeiras populações humanas até chegarem ao outro lado do rifte – vale estreito e comprido, proveniente do abaixamento de um bloco na crosta terrestre entre zonas de falhas – que separa a Jordânia dos territórios mais a oeste.
Os pesquisadores esperam que o impacto desses resultados na compreensão das primeiras migrações humanas ressalte a importância desses locais. Os sítios pré-históricos carecem de preservação, apesar de totalizarem quase 60% de todos os sítios arqueológicos da Jordânia. “Eles não recebem a devida atenção de instituições relevantes do governo”, diz Nahar. “Os achados e o local não são somente uma herança jordaniana, mas uma herança global que precisa de muito mais atenção.”
Projetos
1. Evolução biocultural hominínia do vale do rio Zarqa, Jordânia: Uma abordagem paleoantropológica (n° 13/22631-2); Modalidade Projeto Regular; Pesquisador responsável Walter Alves Neves (USP); Investimento 048,98.
2. O Paleolítico Inferior do vale do Zarqa, Jordânia, no âmbito das mudanças ambientais e climáticas do Pleistoceno (n° 23/05601-4); Modalidade Projeto Regular; Pesquisador responsável Giancarlo Scardia (Unesp); Investimento R$ 274.429,16.
Artigo científico:
PARENTI, F. et al. The oldowan of Zarqa valley, Northern Jordan. Journal of Paleolithic Archaeology, v.7, n. 3. 20 jan. 2024.