Da próxima vez que encontrar um peixe-leão (Pterois volitans) durante o mergulho livre, não se deixe seduzir por sua beleza. Mate-o sem dó com um arpão, tomando cuidado com os 18 espinhos venenosos em suas nadadeiras – não são letais, mas podem causar dor intensa. De origem indo-asiática, foi encontrado pela primeira vez na América do Norte, no litoral da Flórida, ao sul dos Estados Unidos, em 1985, talvez jogado ao mar por aquaristas. Em algumas décadas espalhou-se por toda a costa leste daquele país e ocupou também o golfo do México e o Caribe, em direção ao sul, vencendo as correntes em sentido oposto.
Em algum momento na década passada, começou a avançar em direção à costa sul-americana. Por volta de 2020, atravessou a pluma do rio Amazonas – região de águas turvas com forte correnteza de mais de 20 metros (m) de profundidade que penetra quase 200 quilômetros mar adentro –, uma barreira ecológica que mantém separadas muitas espécies do Caribe e do Brasil. Em três anos, ocupou trechos do litoral do Amapá e do Pará e infestou a costa do Piauí, Ceará e Fernando de Noronha, numa extensão total de mais de 2.700 quilômetros, segundo artigo publicado em abril na revista Journal of Environmental Management.
Julia Cherem Rodrigues/Revista Pesquisa FAPESP
“Alguns animais já chegaram em Pernambuco, onde a corrente em direção ao sul deve levar o peixe para todo o litoral brasileiro em cerca de um ano”, projeta o biólogo Marcelo Soares, da Universidade Federal do Ceará (UFC), primeiro autor do artigo. Com até 47 centímetros de comprimento e o corpo listrado de branco, vermelho-alaranjado e marrom, o peixe-leão se reproduz rapidamente, lançando na água cerca de 2 milhões de ovos por ano. “Além disso, é resistente a variações de temperatura e salinidade”, ressalta Soares.
Pouco se sabe sobre seus predadores nas regiões invadidas. Além de tubarões e garoupas, peixes que pesam até quase meia tonelada e chegam a 3 metros de comprimento, há relatos de ataques por moreias – peixes de corpo alongado e cilíndrico, com até 4 m de comprimento – e pelo verme bobbits (Eunice aphroditois), com até 3 m de comprimento e garras poderosas, capazes de cortar ao meio as presas que ataca em emboscadas.
O animal deve encontrar poucos obstáculos para sua multiplicação no litoral brasileiro, onde as águas turvas dificultam a caça e os tubarões, predadores de topo, são cada vez mais raros devido à pesca intensiva. Ele pouco se mexe durante o dia, e as espécies nativas, que não o reconhecem como predador, esbarram em seus espinhos venenosos e desistem do ataque. Quando isso acontece, ele projeta para fora suas mandíbulas grandes e flexíveis e abocanha praticamente tudo que se mexe na sua frente, desde filhotes de peixes comerciais, como badejos, pargos e garoupas, até peixes quase do seu tamanho.
Segundo Soares, os pescadores contam que quando um peixe-leão fica preso em armadilhas parecidas com gaiolas, chamadas manzuás e rengalhos, todos os outros peixes morrem com o veneno. São tão vorazes que poderiam causar a extinção local de espécies raras, inclusive algumas das 174 espécies únicas que vivem em recifes no litoral brasileiro. Embora seu ambiente original seja recifes de coral, esse peixe vive em ambientes variados de até 300 m de profundidade e já é visto nos manguezais, onde podem prejudicar a reprodução de peixes importantes para a pesca local.
“Será impossível exterminar o peixe-leão”, avisa Soares, que monitora a população da espécie e, diariamente, recebe relatos de animais encontrados por pescadores e mergulhadores, o que pode ser feito por meio de um site de monitoramento participativo. Segundo ele, quando o peixe aparece na costa já se estabeleceu em águas mais profundas, onde a caça é praticamente inviável. Conforme diminui o número de peixes da faixa mais rasa do litoral, jovens migram do fundo e recompõem a população.
No Brasil, não há um mapeamento completo do leito oceânico, que ajudaria os cientistas a localizar os ambientes favoráveis para os peixes-leão. Também seria útil se os barcos de pesca fizessem um levantamento dos tipos de peixes capturados, ajudando a localizar regiões com grande densidade da espécie – prática que deixou de ser obrigatória em 2012 devido a uma mudança na legislação.
Devastador dos mares
“O artigo mostra que é fundamental fazer o manejo do peixe-leão para proteger as espécies raras e comerciais, mas o país ainda não desenvolveu programas nacionais com esse objetivo”, assinala Hudson Pinheiro, do Centro de Biologia Marinha (CEBIMar) da Universidade de São Paulo (USP), que não participou do estudo. Pinheiro estudou a população caribenha da praga alguns anos antes da migração para o Brasil e verificou que houve uma transformação ecológica na região depois da chegada do animal.
Segundo o pesquisador, estudos sugerem a diminuição nos tamanhos das populações de peixes de várias espécies e também a alteração de hábitats profundos, que passaram a ter mais algas, em vez de corais e esponjas. “Algo semelhante pode acontecer no Brasil”, alerta. No Caribe, o número maior de tubarões favorece o controle da população do peixe-leão e as águas cristalinas facilitam a caça, que é incentivada pelos governos locais.
Considerada uma das mais destrutivas entre as invasoras marinhas, outra espécie de peixe-leão (Pterois miles) chegou ao mar Mediterrâneo em 2012 e se multiplica rapidamente por lá. “As espécies invasoras, seja no mar ou na terra, são a maior causa de perda de biodiversidade, depois da própria destruição do ambiente”, ressalta Soares.
“Falta regulamentação para o manejo do peixe-leão”, reconhece o biólogo Lívio Moreira de Gurjão, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e um dos autores do artigo. Segundo Soares, o improviso e a falta de preparo permitem que a espécie invasora se multiplique, aumentando o custo do controle.
Praga de luxo
“É preciso desenvolver programas educativos não só para conscientizar as pessoas sobre os efeitos nocivos do peixe-leão, mas também para ensiná-las a matá-lo de forma segura, o que pode ser feito com um arpão simples”, ressalta Pinheiro. Para evitar o contato com os espinhos venenosos, uma das soluções é guardar o peixe dentro de um tubo largo de plástico. Para comê-lo, basta remover os espinhos com luvas protetoras e uma tesoura apropriada.
“É muito gostoso”, conta Pinheiro, que participou de campeonatos para estimular a caça no Caribe, onde o consumo da carne é comum nos restaurantes da região, inclusive como sashimi.
No entanto, Soares alerta que o comércio pode estimular a criação descontrolada do bicho e sua fuga para a natureza. Além disso, segundo ele, estudos indicam que o peixe-leão pode estar contaminado com metais pesados no Brasil, exceto em locais protegidos, como Fernando de Noronha, onde a pesca é estimulada e ajuda a controlar a população. No Nordeste, objetos como carros, geladeiras, pneus ou tonéis de óleo são jogados ao mar e neles formam recifes artificiais, que atraem os peixes, e, com frequência, carregam substâncias tóxicas.
Caso o consumo não seja viável, uma alternativa é usar a espécie no artesanato e a pele do peixe para produzir assessórios, como carteiras que são vendidas nos Estados Unidos por mais de R$ 2 mil. Mas a exportação desse material também precisaria ser regulamentada e controlada pelo Ibama.
Artigo científico
SOARES, M. O. et al. Lessons from the invasion front: Integration of research and management of the lionfish invasion in Brazil. Journal of Environmental Management. v. 340, n.117954. ago. 2023.