Imprimir Republicar

Pesquisa na quarentena

“Percebemos um novo jeito de trabalhar, mais colaborativo, que também envolve as parcerias entre grupos de universidades distintas”

A biomédica Fernanda Crunfli trabalha intensamente para investigar a ação do Sars-CoV-2 no cérebro

Na sala de cultura de células, Fernanda Crunfli trabalha com equipamentos de proteção

Aline Valença

Quando começou a pandemia, eu estava no Rio de Janeiro fazendo um treinamento para mexer com as células-tronco de pluripotência induzida (iPS) e o cultivo de minicérebros, com a equipe do neurocientista Stevens Rehen no Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor). Quando entramos na sala de cultura, é preciso deixar chaves, celular, bolsa – tudo – do lado de fora. Um dia, quando saí depois de cinco ou seis horas, encontrei uma enormidade de mensagens no meu celular. Era o Daniel Martins-de-Souza, coordenador do Laboratório de Neuroproteômica da Unicamp, onde trabalho, avisando o nosso grupo de que a universidade tinha suspendido as atividades.

Nosso treinamento foi suspenso e voltamos para São Paulo. Fiquei por volta de duas semanas em casa e, estudando sobre o novo coronavírus, comecei a ver muitas coisas interessantes. Conversei com amigos médicos que trabalham na linha de frente e me relataram os sintomas neurológicos associados à doença, percebi que podíamos ter um papel nessa frente. O Daniel também chamou nossa atenção sobre o papel do vírus no sistema nervoso, evidenciado pela perda de olfato, e surgiu em nosso grupo um interesse coletivo por estudar os efeitos do novo coronavírus nessas células.

Nesse momento, os pesquisadores do Instituto de Biologia já estavam se mobilizando para engajar pesquisa e ajudar na parte de diagnóstico. Surgiu assim a força-tarefa da Unicamp. Decidimos contribuir com a parte do sistema nervoso central, quase todos os integrantes do Laboratório de Neuroproteômica quiseram participar. Foi corrido, escrevemos a proposta em três ou quatro dias para a chamada da FAPESP. Eu e o Victor Carregari, que é outro pesquisador em estágio de pós-doutorado do laboratório, ficamos como coordenadores do projeto em nosso laboratório: eu na parte celular, ele nos aspectos analíticos. Começamos então a estudar. Eu nunca tinha trabalhado com vírus, é todo um novo mundo. Deixei meu projeto de lado e começamos a nos dedicar totalmente ao coronavírus.

Somos 18 pessoas trabalhando desde abril em ritmo frenético, sete dias por semana, tentando trazer – o mais rápido possível – esclarecimentos em relação ao sistema nervoso central. Queremos entender se o vírus infecta neurônios, astrócitos e outras células, e como elas reagem.

Victor e o pós-doutorando Pedro Vendramini estão fazendo metabolômica e proteômica das amostras que estudamos. Além das células que geramos, temos algumas amostras a partir de colaborações com os campi de Ribeirão Preto e de São Paulo da USP [Universidade de São Paulo]. Enquanto isso, estou responsável pelo cultivo de células-tronco neurais, há todo um processo de diferenciação para elas se tornarem neurônios ou astrócitos. Depois que se desenvolvem, as levo ao laboratório do biólogo José Luiz Módena, com nível 3 de biossegurança, para infectá-las. Após 24 horas, coletamos as células e fazemos testes. Em setembro esperamos finalizar alguns trabalhos para planejar os próximos passos. A ideia é nos revezarmos para que os outros projetos possam começar a ser retomados no laboratório.

A Unicamp restringiu o trabalho, só quem tem projeto com Covid-19 e diagnóstico pode entrar nos laboratórios. Calculamos com cuidado quantas pessoas ficariam seguras para trabalhar. Chegamos ao número de quatro: não nos cruzamos, ficamos bem distantes, cada um fazendo sua parte. Como somos poucos, precisamos estar em sintonia para nos revezarmos. A pessoa que vem trabalhar dá andamento ao que o outro começou. Eu e o Victor, como somos coordenadores, estamos quase todos os dias na Unicamp e, às vezes, ficamos até meia-noite.

Minha vida se restringe a casa-laboratório, laboratório-casa. Me sinto segura porque vou direto para a sala de cultura de células, onde trabalho paramentada com jaleco, touca, óculos, o tempo todo de máscara e limpeza com muito álcool. Estou com a marca da máscara no nariz. Assim que termino, vou embora: como trabalho muito, tenho pouco contato com outras pessoas. Meu marido está trabalhando de casa, mais em isolamento do que eu. Ainda há muitos casos na região de Campinas, então é difícil não ter receio.

Apenas um integrante da força-tarefa teve teste positivo para Covid-19. Foi afastado logo que apresentou sintomas e todos reduzimos o ritmo, mantendo só o essencial. Passado um tempo, testamos os integrantes de todos os laboratórios e estávamos todos negativos. O Daniel comprou testes rápidos de uma das empresas que nos vendem reagentes, então verificamos a cada mês. A Unicamp nos dá a possibilidade de fazer testes na ala dedicada à Covid-19 do Cecom [Centro de Saúde da Comunidade], o hospital daqui, se tivermos sintomas.

É a primeira vez, como cientista, que vejo meu trabalho poder ter um impacto tão grande na sociedade. No nosso grupo, nunca trabalhamos tão motivados. Me surpreendeu bastante o companheirismo, a parceria de toda a força-tarefa. São vários laboratórios, nos ajudamos bastante e estamos conseguindo fazer as coisas mais depressa, de forma mais eficiente, buscando pôr nosso tijolinho para ajudar a construir tratamentos ou vacinas. Percebemos isso como um novo jeito de trabalhar, mais colaborativo, que também envolve as parcerias entre grupos de universidades distintas: não existe competição. Isso melhorou nosso desempenho, a quantidade de resultados que conseguimos produzir nesse tempo é imensa. Estamos tentando organizar de forma a conseguir levar essa motivação e esse companheirismo para trabalhos futuros. É um sentimento coletivo por aqui.

Aline Valença

Republicar