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Resenha

Persistências racistas da ascensão isolada

Negros de prestígio e poder: Ascensão social, estilos de vida e racismo na cidade de Salvador – Bahia | Ivo de Santana | Apeku | 404 páginas | R$ 80,00

À larga trajetória de estudos socioantropológicos que se dedicam aos processos de mobilidade social de negros e negras no Brasil, soma-se Negros de prestígio e poder, fruto do doutorado defendido por Ivo de Santana na Universidade Federal da Bahia, que investiga os percursos de ascensão de mulheres e homens negros em posições de prestígio na hierarquia do serviço público da cidade de Salvador.

As narrativas entrelaçadas foram levantadas entre 2005 e 2006, com homens e mulheres nascidos entre 1940 e 1950, que representam a primeira geração de suas famílias a alcançar certa mobilidade social. No livro, são discutidos os pormenores de aspectos relacionados às dinâmicas do núcleo familiar de origem, as relações estabelecidas nos ambientes domésticos e da vizinhança próxima. Acompanhamos como se conformam os projetos de investimento educacional como forma de conquistar a mobilidade socioeconômica e os novos vínculos constituídos ao longo desse percurso. A investigação ainda abarca as nuances de conformação de uma consciência racial, do envolvimento (ou não) dos sujeitos com o ativismo e a militância negra, da constituição de uma identidade negra e os enfrentamentos e estratégias individuais e coletivos implicados na produção da distinção e na manutenção do novo estatuto social alcançado.

À medida que a argumentação analítica é aprofundada entramos no centro mais precioso e delicado da pesquisa: as marcas subjetivas do processo de lidar com o racismo na experiência cotidiana da “ascensão isolada”. Nota-se o orgulho com que os sujeitos avalizam suas trajetórias, as mudanças que lograram proporcionar para suas famílias e o fato de tornarem-se exemplo e modelo para novas gerações. No entanto, toda a economia de comportamentos práticos e morais envolvidos na produção da distinção social, que começa a ser exercitada ainda antes dos primeiros passos da mobilidade socioeconômica de fato, parecem ter consequências dolorosas e duradouras. Os diferenciais de gênero chamam a atenção nesse processo.

A inserção nas camadas mais altas exige o aprendizado e o exercício de códigos da cultura dominante. Concomitantemente, uma série de estratégias individuais precisa ser desenvolvida pelas pessoas negras para lidar com as expectativas e os estereótipos negativos que persistem como mediadores das relações sociais estabelecidas nessas camadas. Os trechos de depoimentos e entrevistas revelam a existência de mecanismos perversos e ainda mais escamoteados de preconceito e discriminação presentes nas dinâmicas de inserção bem-sucedidas, porém profundamente incômodas e desconfortáveis: é comum o sentimento de se estar constantemente “fora de lugar” associado a outras nuances que remetem a uma experiência solitária.

Há inúmeras referências ao tom confessional com que foram reveladas situações outrora silenciadas ou não totalmente compreendidas como racismo no momento em que ocorreram. O silenciamento é visto também como uma estratégia mais ou menos calculada de sobrevivência em situações em que se avalia que “demonstrar fraqueza” ou vulnerabilidade pode ter consequências piores do que o fato ocorrido em si. Assim, por vezes, é preferível evitar o conflito aberto, entendido como uma “ameaça” às carreiras, além de imprimir ao sujeito a condição de “discriminável” e outras formas de sanção social ocasionada pela exposição. A armadilha da experiência de “ascensão isolada”, que parece marcar a geração dos sujeitos da pesquisa, reflete dinâmicas que tratam das habilidades adquiridas para lidar com preconceito e discriminação, variando segundo o contexto e a situação. De modo dramático, essas narrativas emulam ainda a percepção da experiência do racismo como uma questão individualizada, naturalizada e cercada de interditos, delegando aos sujeitos aprender a transitar e adaptar-se a cada circunstância.

A investigação cuidadosa de Santana se soma a um conjunto de estudos que aponta que o racismo vivido não se reduz à experiência de classe, como certo ideário ainda insiste em fazer crer. Trata-se de preconceitos raciais profundamente arraigados, distribuídos através de mecanismos naturalizados de hierarquização que tem como resultado a manutenção de uma estrutura desigual de distribuição de bens e direitos.

Silvia Aguião é antropóloga e pesquisadora associada do AFRO – Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial (AFRO/Cebrap) e do Centro Latino-americano em Sexualidade e Direitos Humanos (Clam-Uerj)

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