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obituário

Personalidade do cinema, Jean-Claude Bernardet morre aos 88 anos

Pesquisador, ator e escritor deixa amplo legado ao pensamento crítico e à cena artística

Bernardet em 2021, durante ensaio para divulgação do livro O corpo crítico

Renato Parada / Companhia das Letras

Jean-Claude Bernardet acabara de concluir um novo projeto. O livro Viver o medo – Uma novela pornô-gourmet, escrito a quatro mãos com a escritora e roteirista Sabina Anzuategui, professora na Faculdade Cásper Líbero, que transita entre as memórias mais íntimas e a ficção, está prestes a ser publicado pela Companhia das Letras. O pesquisador, crítico de cinema, cineasta e ator, para listar mais algumas de suas facetas profissionais, já tinha outros projetos em vista e escreveu até ser interrompido pelo acidente vascular cerebral (AVC) que o matou na madrugada de 12 de julho, aos 88 anos, em São Paulo.

Deixar trabalhos inacabados era um temor desde 1993, quando era professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e trabalhava no filme São Paulo – Sinfonia e cacofonia. Foi um dos primeiros projetos temáticos em humanidades financiados pela FAPESP. Na ocasião, testou positivamente para HIV, o vírus causador da Aids, um diagnóstico que equivalia a sentença de morte. Bernardet, então, abraçou o filme com a urgência de uma última obra. Ele e sua equipe conseguiram concluí-lo no final de 1994, mas não foi o fim. A chegada do coquetel antirretroviral, no ano seguinte, possibilitou-lhe outras três décadas de trabalhos marcantes, superando percalços da saúde como um câncer de próstata reincidente, que decidiu não tratar, e sucessivas fraturas.

Ao perder progressivamente a visão em consequência de uma degeneração macular – que deu nome à biografia Wet macula (Companhia das Letras, 2023), também escrita com Anzuategui a partir de projeto iniciado com a editora e tradutora Heloisa Jahn (1947-2022) –, manteve o costume de ir ao cinema desde que não precisasse ler legendas. Já não enxergava os detalhes e tornou-se cada vez mais desafiador ler e escrever.

Querer atuar e dançar costuma ser apartado da intelectualidade, mas ele era isso tudo; contemporâneo e futurístico

Reinventou-se então como ator, atividade antes ocasional. Arthur Autran, professor do Departamento de Artes e Comunicação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), relembra uma situação de quando era estudante da ECA-USP. O então estudante Vitor Ângelo propôs que Bernardet atuasse em seu curta-metragem Disseram que voltei americanizada (1995), e o professor topou o desafio. “Ele aparecia muito maquiado, em estilo drag queen, mas não se usava tanto esse termo na época”, conta. “Aos poucos ia tirando a maquiagem e contava para a câmera como percebeu as primeiras manchas na pele características da Aids; foi uma cena duríssima, fortíssima”, diz Autran, que presenciou a filmagem. “Já sabíamos que ele tinha o vírus, mas significava que estava desenvolvendo a doença.”

Ele destaca o gosto que Bernardet tinha pelo desafio, de si e dos outros. “Em Historiografia clássica do cinema brasileiro (Annablume, 1995), o crítico reavaliou autores clássicos, como Paulo Emílio Salles Gomes [1916-1977], que considerava seu mestre”, resume. “Isso foi visto como desrespeito, mas discordo: ele não aceitava monumentos e recolocou criticamente esses autores sob outro ângulo de visão.”

A mesma falta de reverência caracteriza Brasil em tempo de cinema (Civilização Brasileira, 1967), no qual ele analisou o Cinema Novo, que marcou época desde o final da década de 1950, e concluiu que os filmes que pretendiam retratar o povo brasileiro e dirigir-se a ele na verdade refletiam uma visão de classe média. Isso causou uma forte reação dos cineastas ligados ao movimento e, décadas depois, o diretor Eduardo Coutinho (1933-2014) declarou publicamente que fez o filme Cabra marcado para morrer (1984) em resposta. A versão de Brasil em tempo de cinema publicada em 2007 pela Companhia das Letras inclui uma transcrição dessa fala. A história evidencia o papel que Bernardet via para o crítico: ser “um participante cultural pleno” na produção e criação cinematográfica. “Para isso, eu precisava trabalhar com filmes e assuntos brasileiros porque era a única possibilidade de haver diálogo”, disse ele em entrevista concedida a Pesquisa FAPESP em 2014.

Nas reedições de livros, Bernardet não alterava os textos originais, mas os ressignificava com material novo – próprio e de outros. A segunda edição de Cinema brasileiro: Propostas para uma história (Companhia das Letras, 2009), que Autran ajudou a produzir, é um exemplo. “Incluímos entrevistas com três mulheres produtoras de cinema, porque ele achava que era um cargo central, mas faltava essa percepção no Brasil.” A opção por entrevistadas femininas também não foi ao acaso, segundo o professor da UFSCar: “Jean-Claude disse que as mulheres estavam se dedicando mais a isso naquele momento”.

ReproduçãoEntre borboletas em cena do filme Desconstruindo Jean-Claude Bernardet, de Claudia PriscilaReprodução

Ele foi professor na ECA-USP entre 1967 e 1997, com um intervalo de 11 anos durante os quais foi “aposentado” pelo governo militar. Após a anistia, obteve o doutorado e em 2012 tornou-se professor emérito da instituição. Segundo Autran, Bernardet “instigava os alunos de forma quase agressiva”. Anzuategui também teve essa experiência durante o terceiro e o quarto anos da graduação, quando cursava especialização em roteiro. Ela foi marcada pela visão original do professor, combinada ao “jeito francês de falar as coisas na cara, de uma maneira que o brasileiro estranha”. Enquanto alguns colegas se assustavam, ela admirou “a tolerância zero à hipocrisia”, a coragem de falar sem medo de ofender o interlocutor. Ela conta que Bernardet mostrava um trecho para os alunos comentarem, encontrarem o problema. Depois que todos falavam, ele apontava algo inesperado e certeiro.

Autran ressalta que Bernardet foi muito atuante até o fim, em parte fazendo parcerias com cineastas jovens, como Cristiano Burlan, Lincoln Péricles e Fábio Rogério. “Ele tinha uma abertura grande para as gerações mais novas, uma curiosidade sobre o que tínhamos a dizer”, concorda a jornalista Mariana Queen Nwabasili, que faz doutorado em meios e processos audiovisuais na ECA-USP.

Arquivo pessoalDepois dos 70 anos, pegou o gosto por saltos de paraquedasArquivo pessoal

Nwabasili procurou Bernardet há poucos anos, a partir da crítica da historiadora Maria Beatriz Nascimento (1942-1995) sobre o filme Xica da Silva (1976), de Cacá Diegues (1930-2015), publicada no jornal Opinião à época do lançamento. Ao ler Brasil em tempo de cinema, a jovem entendeu que havia mais essa camada: os cineastas da época não só eram de classe média, mas também homens brancos. “Eu queria falar com o Bernardet sobre a possibilidade de adensamento racial da discussão sobre os autores do Cinema Novo e ele teve generoso interesse”, conta a pesquisadora. Logo se desenvolveu uma proximidade que permitia discutir uma diversidade de assuntos, que não se restringiam à esfera acadêmica.

A pesquisadora define Bernardet como um amálgama entre o artístico e o intelectual. “Querer atuar e dançar costuma ser apartado da intelectualidade, mas ele era isso tudo; sempre foi contemporâneo e futurístico, deslocado de seu tempo, até agora.”

Para Sabina Anzuategui, a ficção sempre esteve no cerne de Bernardet. O pensamento cartesiano serviu à crítica cinematográfica, mas ele não se identificava como uma pessoa do cinema. A roteirista vê uma qualidade literária nos textos críticos que os torna boas leituras, independentemente da época e do filme em questão. “Ele não queria se definir, era uma espécie de órfão da existência, arrancado de seu país, de sua mãe.” Bernardet tinha origem francesa, embora nascido em Charleroi, na Bélgica, em 1936. Veio para o Brasil aos 13 anos com o pai, a madrasta e o irmão. “Tinha uma extrema inteligência e sensibilidade, era uma alma artística procurando onde pousar um pouquinho.”

O radicalismo não ficava só no pensamento. Aos 70 anos se empolgou com um salto de paraquedas e repetiu a experiência várias vezes. Na primeira delas adquiriu duas cópias do registro fotográfico: uma para a Cinemateca Brasileira, que abriga seu arquivo documental, e outra para a filha, Ligia. Além dela, Bernardet deixa a neta Alici. Ambas moram nos Estados Unidos, mas isso não impedia que jogassem cartas periodicamente, encontros remotos que ele adorava. No domingo anterior à sua morte, ganhou da família toda.

A reportagem acima foi publicada com o título “Um artista de voos radicais” na edição impressa nº 354, de agosto de 2025.

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