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Hermano Tavares

Pesquisa brasileira precisa de um novo perfil

O professor Hermano de Medeiros Ferreira Tavares, reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), já completou 25 anos de trabalho na universidade. É professor titular da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação. Com cerca de 90 trabalhos científicos publicados, suas principais áreas de atuação estão nos campos da pesquisa operacional/problemas combinatoriais, inteligência artificial, planejamento de sistemas telefônicos e análise de sistemas econômicos.

Tavares é engenheiro eletrônico, formado pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), de São José dos Campos, em 1964. Em 1966 e 1968, fez mestrado e doutorado na Universidade de Toulouse, na França. Antes de ir para a Unicamp, lecionou nas universidades federais da Paraíba e de Pernambuco, no ITA e na Escola de Engenharia da USP em São Carlos.

Apesar de relativamente nova, pois começou a funcionar em outubro de 1966, a Unicamp é uma das mais importantes universidades brasileiras. De seus institutos sai 15% da produção científica do país. Eles abrigam, ainda, 10% dos estudantes de pós-graduação. Com 2 mil professores, a Unicamp tem cerca de 10.500 alunos de graduação e 10 mil de pós-graduação.

Mais do que nunca, São Paulo precisa de iniciativas como este fórum. O Brasil atravessa uma década que não pode ser considerada perdida. Nos últimos dez anos, o país evoluiu e trilhou caminhos, embora sem qualquer planejamento. O professor Jacques Marcovitch, reitor da Universidade de São Paulo, referiu-se à possibilidade de que este fórum pense os próximos 25 anos, talvez o próximo século. Vou restringir-me a pensar os próximos dez anos.

Se este fórum fizer o trabalho de pensar os próximos dez anos do Estado de São Paulo, particularmente no que diz respeito ao desenvolvimento econômico e seu relacionamento com a ciência e a tecnologia, fará não somente um trabalho útil para toda a população. Será uma tarefa particularmente preponderante e indispensável para o desenvolvimento das universidades públicas do Estado de São Paulo, as quais, ao cabo de dez anos de autonomia, enfrentam dificuldades claríssimas.

A revista inglesa The Economist publicou recentemente dados sobre a evolução do Produto Nacional Bruto per capita da Europa Ocidental nos últimos 1.000 anos. Pela ausência de contas públicas rigorosas, esses dados, naturalmente, envolvem muitas suposições. Mas pode-se ver com clareza que do ano 1000 até por volta de 1700, a renda per capita do europeu manteve-se particularmente estável, oscilando por volta de US$ 700 anuais (em valores corrigidos para 1990).

Dentro do espaço de vida de um ser humano, que era de entre 40 e 50 anos, não havia, assim, qualquer evolução. De um ano para outro, o avanço econômico era quase que rigorosamente zero por cento. O avanço econômico era praticamente insignificante, resumindo-se basicamente a cobrir o aumento da população, que também era bastante lento. O ser humano nascia e vivia sem qualquer perspectiva de crescimento e mudança nas suas condições econômicas e em sua qualidade de vida.

Essa camisa de força, de dificuldade para a mudança econômica, foi rompida por volta de 1750, época em que se observa o início de um nítido avanço na renda per capita dos europeus. O processo se acelerou notavelmente nos últimos 100 anos. Em 1900, a renda per capita da Europa Ocidental era de cerca de US$ 2 mil por ano. Hoje, a cifra ultrapassa os US$ 20 mil dólares na maioria dos países europeus.

O que aconteceu nessa época para causar tal mudança? Houve o início do processo de incorporação da tecnologia à produção de bens, processo esse que a partir desse ponto se intensificou. Esse foi um fenômeno inicialmente europeu, mas que se irradiou para países como o Brasil, de cultura européia. Não é possível admitir, porém, sem qualquer possibilidade de erro, de que esse avanço seja algo inexorável.

Quando os portugueses chegaram ao Brasil, em 1500, a cultura mais importante do mundo, em termos científicos e tecnológicos, era a chinesa. Mas essa cultura sofreu percalços e não avançou. Pelo contrário, a qualidade de vida de seu povo piorou. Há outros exemplos que apontam nessa mesma direção. Um deles é o da cultura islâmica, que teve desenvolvimentos notáveis até 1300, sobretudo na área da Matemática. Mas esses desenvolvimentos não tiveram seqüência.

Portanto, não podemos presumir que o crescimento como o verificado na Europa vá continuar para sempre. Esse crescimento é decorrente da incorporação da tecnologia à produção. A tecnologia, por sua vez, é, com algum tempo de atraso, puxada pelo desenvolvimento das ciências básicas.O que garante a incorporação da tecnologia ao mundo produtivo é, provavelmente, um conjunto de valores culturais, instituições políticas e instituições econômicas. Portanto, é da maior importância que estejam juntos, como aqui neste fórum, segmentos universitários, que imprimem os valores culturais de um povo, e segmentos políticos, como o representado por esta Assembléia Legislativa. Juntos, como está proposto na carta básica do Fórum Século 21, eles podem pensar o futuro do estado, fixar metas e determinar trilhas para serem seguidas pelas autoridades.

A pesquisa científica no Brasil é feita, sobretudo, nas universidades públicas e nos centros de pesquisa do sistema do Ministério de Ciência e Tecnologia. Uma fração menor dessa atividade é encontrada nas empresas estatais e nos institutos de pesquisa estaduais. No Estado de São Paulo, em particular, existe um segmento bastante importante de institutos estaduais de pesquisa.Existe, por exemplo, a rede de institutos de pesquisa da Secretaria da Saúde, representada pelo Instituto Butantan e outros, igualmente notáveis. Há também a rede da Secretaria da Agricultura, representada pelo Instituto Agronômico de Campinas. Pode-se citar, também, o Instituto de Pesquisas Tecnológicas, muito importante, mais dirigido para a área produtiva, multissetorial.

As indústrias respondem, por sua vez, por uma parcela mínima do desenvolvimento da ciência e da tecnologia no Estado de São Paulo. Essa é uma das características básicas do sistema brasileiro.As universidades brasileiras tiveram um aparecimento bastante tardio. Rigorosamente, pode-se dizer que a primeira universidade brasileira, na acepção plena do termo, foi a Universidade de São Paulo, criada em 1934, por meio de um movimento extremamente meritório, facilitado pelo momento político vivido então pela Europa. Na década de 50, foram criadas várias outras universidades no país, sobretudo federais. Finalmente, na década de 70, ocorreu uma importante reforma na universidade brasileira, que levou ao modelo de universidade existente hoje e que, talvez, tenha chegado ao seu esgotamento.

Essa reforma universitária da década de 70 tinha como pilares básicos a organização em departamentos, com a derrubada das cátedras, a adoção do regime de dedicação exclusiva e a implantação da pós-graduação. A criação da pós-graduação talvez seja o fato mais relevante da evolução da universidade brasileira nos últimos 30 anos.Ela fixou a pesquisa e permitiu a criação de quadros renováveis, jovens que se dirigem cada vez mais para a universidade, dando ao Brasil uma posição ímpar no cenário mundial. O país tem, talvez, o melhor sistema de pós-graduação do Terceiro Mundo. Desse modo, embora tenha começado a montar suas universidades tardiamente, o Brasil tem hoje as melhores universidades da América Latina.

Na década de 70, assim, com a reforma pela qual passaram na ocasião, as universidades brasileiras assumiram papel de destaque. A principal característica desse papel foi a integração entre a pesquisa científica e o ensino de pós-graduação. Entretanto, por ser um país que pratica uma ciência relativamente nova, o Brasil tende a praticar uma ciência reflexa dos países avançados. A pesquisa desenvolvida nas universidades brasileiras não é, necessariamente, aquela da qual o país precisa. De certa maneira, ela segue a tendência acadêmica mundial, o que facilita, por exemplo, sua inclusão em grupos internacionais e a publicação de artigos em periódicos de circulação mundial.

É preciso, neste momento, com o amadurecimento da pós-graduação no Brasil e a necessidade de um desenvolvimento de um perfil competitivo no mercado mundial, que a pós-graduação e a pesquisa brasileira procurem caminhos próprios. Faz-se necessário, sobretudo, que seja incorporada à nossa pesquisa, que é de boa qualidade, a indispensável preocupação com problemas de relevância social para o país. É necessário fazer pesquisa que tenha relevância social e cuja aplicação possa ir ao encontro das necessidades de melhoria da qualidade de vida da população brasileira.

Oitenta por cento das atividades científicas brasileiras estão concentrados na Região Sudeste. É o que mostra o mapa. Boa parte desta concentração está em São Paulo, o estado mais rico e mais populoso. Nem por isso, aliás, a situação do estado é extremamente cômoda. Essa distorção geográfica decorre de um processo de desenvolvimento heterogêneo. Não poderá ser solucionado apenas com um esforço financeiro de promoção à pesquisa. É necessário um esforço mais profundo. Não se trata, simplesmente, de um problema de financiamento da pesquisa.

Um aspecto muito importante para a compreensão do problema está na distribuição da formação de quadros para o ensino superior. O Brasil, em termos de graduação, forma cerca de 300 mil bacharéis por ano. Nesse total, a contribuição das universidades públicas no Estado de São Paulo é bastante modesta, de cerca de 10 mil bacharéis, ou 3% do total brasileiro. As instituições federais de ensino superior, que de certa maneira constituem a espinha dorsal do ensino universitário, contribuem com cerca de 18% desse total.

Mas, quando se trata da pós-graduação, a posição das universidades públicas paulistas é bem mais expressiva. As cinco universidades públicas existentes no Estado de São Paulo, três estaduais (USP, Unesp e Unicamp) e duas federais (Unifesp e Universidade Federal de São Carlos) são as responsáveis por cerca de 50% da formação de doutores no país. De certa maneira, as universidades públicas paulistas são escolas de escolas. Elas formam uma boa parte dos profissionais que vão lecionar nas universidades brasileiras. Esse quadro é da maior importância quando se trata de pensar o futuro.

De qualquer maneira, deve-se estar atento para o fato de que apenas 15% da população potencialmente universitária do Brasil?os jovens com entre 20 e 24 anos?chegam às escolas superiores. Mesmo em São Paulo, onde se poderia esperar um resultado bem melhor, devido à sua situação com relação ao restante do país, essa proporção é de apenas 17%. Essa parcela é dramaticamente baixa. Para se ter um futuro melhor, é preciso estabelecer metas com cuja aplicação será possível dobrar esse número nos próximos dez anos. Não será necessária nenhuma mágica. O objetivo não é extremamente difícil. A Argentina e o Chile têm proporções superiores à brasileira. Não dos 15% atuais, mas do dobro, dos 30%.

Tenho 60 anos. Estou às portas da aposentadoria. Passei a vida trabalhando no sistema universitário. Esperei a vida inteira por uma oportunidade como a que existe no momento no estado. Temos, através deste Fórum São Paulo Século 21, a oportunidade de pensar, planejar e preparar o Brasil, e especialmente o Estado de São Paulo, para os próximos dez anos. E é mais que óbvio: o desenvolvimento científico, a melhoria da qualidade de vida e o resgate da dívida social passam necessariamente pelo crescimento de uma ciência e uma tecnologia que possam ser aplicadas à melhoria das condições de vida do povo brasileiro.

Existe a possibilidade de que isso seja feito agora. As universidades públicas devem ser colocadas a serviço desse objetivo. Não se pode adiar mais uma posição. É possível criar metas válidas para esses próximos dez anos, delineando, por exemplo, quantos estudantes universitários queremos ter no futuro e que tipo de pesquisa se pretende fazer.

Devem ser cobrados resultados dessas pesquisas e o processo de avaliação das universidades deve ser permanente. O financiamento das universidades públicas do Estado de São Paulo precisa ser encarado com o máximo de seriedade. Parte substancial desse financiamento é destinada, no momento, ao pagamento de inativos e à manutenção dos hospitais universitários. São pelo menos esses dois fatores que vêm estrangulando atualmente as universidades públicas estaduais paulistas.

Finalmente, há mais um fator que não pode deixar de ser pensado pelo Fórum São Paulo Século 21. Trata-se da necessidade de revigorar a rede de institutos de pesquisa do Estado de São Paulo. Essa rede é da maior importância. O desenvolvimento do sistema agrícola paulista, que é importantíssimo, dependeu fortemente dos institutos ligados à Secretaria da Agricultura. Mas boa parte deles mereceu, nas últimas décadas, um tratamento que não foi o melhor que poderiam ter recebido.

Essa rede de institutos é de importância fundamental para o desenvolvimento de nosso estado. Mesmo assim, não tem recebido a atenção e o tratamento adequados. É indispensável pensar no revigoramento e no crescimento desse sistema. E, ao seu lado, pensar também no problema do dimensionamento das universidades públicas e do seu financiamento.

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