Logo ao abrir a apresentação “Mudando o modo de ver o mundo: indivíduos e Zeitkontext ou como o movimento browniano modificou o modo de fazer ciência”, no dia 11 de outubro, o físico da Unicamp Peter Schulz observou que o uso de um termo em alemão seria, como ele próprio disse, “uma pequena pedanteria”, embora útil para valorizar o contexto de uma época e não apenas o de um indivíduo. Schulz, que se considera historiador amador, contou em seguida de um comerciante e cientista holandês, Anton van Leeuwenhoek, que construiu um microscópio e foi o primeiro ser humano a observar microrganismos.
Na segunda metade do século XVII, Leeuwenhoek descobriu a impressionante diversidade de seres microscópicos que viviam no interior da boca de uma pessoa qualquer. Esses minúsculos seres, porém, como ele também notou, desapareciam após alguns goles de café quente. “Por que, apesar dessas evidências, a teoria dos germes só veio com Pasteur, dois séculos mais tarde?”, indagou Schulz. “No século XVII, as coisas que não podiam ser vistas não mereciam ser estudadas.” Esse desdém partia não de fanáticos, ele destacou, mas da própria comunidade científica.
Também com um microscópio, o botânico escocês Robert Brown observou partículas de pólen dançando. Ele escreveu um estudo de 25 páginas, A brief account of microscopical observation, mas esse novo problema científico recebeu pouca atenção por 80 anos, embora outros cientistas, como o químico escocês Thomas Graham, tivessem observado o mesmo fenômeno. Foi Graham quem cunhou o termo coloide para designar as misturas heterogêneas formadas por partículas em agitação contínua mais ou menos intensa, como no café, na geleia ou na atmosfera. Não foi o bastante, porém, para despertar o interesse de outros cientistas.
Einstein, lembrou Schulz, retomou um tema próximo ao movimento browniano, o tamanho de uma molécula, em sua tese de doutorado; mais tarde ele construiu uma teoria para o movimento browniano, publicada em 1905.
No início do século XX nem todos os cientistas aceitavam o conceito de átomos. Alguns até o rejeitavam. É o caso do químico alemão Wolfgang Ostwald, colega de Einstein, que afirmou: “Jamais poderemos, por definição, comprovar a existência de átomos”. Schulz contou que em 1901 o pai de Ostwald recusou um emprego a Einstein por discordar de suas ideias. “Essa antipatia”, comentou o físico da Unicamp, “mostra que mesmo mentes audaciosas podem ser obstruídas por preconceitos filosóficos”.
Mais tarde, um físico francês, Jean Perrin, por meio de observações no microscópio, comprovou as ideias de Einstein sobre o tamanho das partículas e a agitação das moléculas. Perrin desenhou em papel quadriculado a trajetória de uma partícula de poeira e demonstrou a existência de átomos. O antes dogmático Wolfgang Ostwald mudou de ideia e em 1915 ele já acreditava em átomos a ponto de escrever um livro intitulado O mundo das dimensões esquecidas. Surgia assim, finalmente, a ciência dos coloides, que em poucos anos levou a descobertas reconhecidas com três prêmios Nobel.
A nova ciência motivou também pesquisas interdisciplinares em busca de aplicações dos coloides na medicina ou na biologia. Não avançou muito, porém, porque a indústria dos polímeros atropelou a incipiente indústria dos coloides. “Durante a Segunda Guerra Mundial, meias de náilon como estas”, disse Schulz mostrando a foto de uma mulher sentada em uma calçada arrumando as meias de náilon, “era o sonho de consumo”. O contexto favorável à interdisciplinaridade só viria na segunda metade do século XX.
O imperativo cultural
Um físico norte-americano, Philip Warren Anderson, ajudou a construir uma nova perspectiva para os coloides não só por meio de seus estudos sobre sistemas físicos desordenados, como também ao apresentar uma ideia que Schulz retomou: “O todo é mais do que a soma das partes. É diferente”. Schulz mostrou em seguida uma pintura com frutas e legumes formando um rosto, de autoria de um artista do Renascimento italiano, Giuseppe Archimboldo. “Não é natureza-morta, é um retrato”, acentuou o físico da Unicamp. Anderson ajudou a criar um contexto de época favorável – um Zeitkontext – e a mostrar que os chamados problemas emergentes da ciência não poderiam ser explicados apenas pelas leis fundamentais da física: a biologia, por exemplo, não seria apenas uma aplicação da física, mas um campo de pesquisa com regras próprias.
Nos anos 1970, ele disse, as partículas coloidais ganham o nome de nanopartículas e começam a ser estudadas por grupos de pesquisadores de áreas diferentes, que procuram resolver grandes problemas. Uma trajetória análoga marcou a mecânica quântica, que, lembrou Schulz, só avançou na década de 1920 na Alemanha “porque o pessoal estava cansado do determinismo clássico e probabilístico” – de outro modo, de um mundo sem surpresas.
Schulz comentou que é o imperativo cultural, a seu ver, que explica “certas coisas que as pessoas querem que aconteçam”. Em um cartão-postal do início do século passado, no exemplo que ele mostrou, as pessoas já se imaginavam conversando enquanto viam as imagens delas próprias em uma tela, como hoje no Skype. “Aposto muito no diálogo entre arte e ciência”, comentou.
Em seguida, ele mostrou Les demoiselles de Avignon, um quadro do pintor espanhol Pablo Picasso que permite leituras variadas, de acordo com a perspectiva espacial adotada. “Arthur Miller [físico norte-americano e um dos próximos palestrantes] diz que arte e ciência modificam a visão de espaço e de tempo”, lembrou Schulz (ver na página 47 a síntese da apresentação de Arthur Miller).
No final, ao longo de um animado debate com a plateia, Schulz detalhou o que havia exposto lembrando que muitas vezes ideias novas avançam com dificuldade não só em razão de crenças e expectativas sociais, mas também por razões concretas, a exemplo da deficiência de equipamentos. Os estudos sobre coloides avançaram mais livremente depois da Segunda Guerra Mundial, quando os microscópios eletrônicos começaram a ser usados e com a construção de uma ideia mais clara de interdisciplinaridade.
Mudando o modo de ver o mundo: indivíduos e Zeitkontext ou como o movimento browniano modificou o modo de fazer ciência
Peter Alexander Bleinroth Schulz, físico e professor associado do Instituto de Física da Unicamp