Nada substitui o olho de um especialista para avaliar as particularidades de um quadro. Mas o emprego em importantes museus e instituições culturais do país de uma série de análises físicas e químicas tornou-se uma ferramenta adicional para entender o estilo e o processo criativo de certos pintores, dar parâmetros ao trabalho de conservação e restauração e trazer à tona facetas ocultas de algumas pinturas. Nesse sentido, a história do quadro Marinha, um óleo sobre madeira produzido provavelmente no início da década de 1940 pelo italiano Virgilio Guidi (1891-1984), é bastante ilustrativa. No catálogo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), onde se encontra guardada, essa tela abriga, oficialmente, apenas uma pintura: uma vista do Grande Canal de Veneza, com destaque para a Igreja de San Giorgio Maggiore. No entanto, basta virar o quadro para ver, a olho nu, em seu verso o retrato de uma mulher. Imagens no infravermelho desse lado B da tela revelaram uma terceira pintura escondida sob as tintas que deram forma à figura feminina: outra cena marítima da cidade italiana.
A descoberta do trabalho oculto no verso do quadro Marinha foi obtida com o uso de uma técnica óptica não destrutiva denominada reflectografia de infravermelho, que permite ver através das camadas de tinta e, assim, identificar desenhos ocultos pela pintura mais superficial. “Pensávamos que iríamos estudar duas pinturas de Guidi, a da frente e a de trás, mas acabamos descobrindo uma terceira”, diz Márcia Rizzutto, do Instituto de Física da USP, especialista em arqueometria, disciplina que usa métodos científicos para a análise de obras de arte e objetos arqueológicos. A física teve acesso à pintura italiana por meio de uma colaboração de trabalho com a historiadora da arte Ana Gonçalves Magalhães, do MAC, que, num projeto financiado pela FAPESP, está reavaliando e atualizando o catálogo do museu da universidade. “As informações científicas são hoje indispensáveis para o estudo e a conservação de obras de arte”, afirma Ana.
A reflectografia de infravermelho é uma técnica baseada na capacidade de reflexão e absorção que alguns elementos químicos possuem quando sujeitos a ondas eletromagnéticas. As imagens no infravermelho são captadas por uma câmera digital de alta resolução dotada de uma lente com um filtro de luz para esse comprimento de onda. A radiação eletromagnética incidente passa pelas camadas mais externas de tinta até ser absorvida e refletida de volta para a câmera por algum material. O efeito do método é tornar os pigmentos superficiais, que formam a imagem visível a olho nu, mais transparentes e aumentar o contraste de eventuais desenhos de fundo. Cada composto reflete de forma diferente no infravermelho. Pigmentos à base de carbono, muitas vezes utilizados pelos artistas para fazer versões preliminares ou esboços de quadros que posteriormente são cobertos por outras tintas, refletem bem no infravermelho. De acordo com os comprimentos de onda usados nas análises, a espessura das camadas de tintas superficiais e o tipo de pigmentos presentes numa obra, o resultado da equação transparência e contraste pode ser mais favorável à descoberta de surpresas, como a versão do Grande Canal de Veneza que o italiano Guidi preferiu encobrir com um retrato feminino.
A tela Marinha faz parte da Coleção Francisco Matarazzo Sobrinho, composta por 429 obras de artistas brasileiros e do exterior, que pertenceu ao antigo Museu de Arte Moderna de São Paulo e, desde 1963, foi transferida para o acervo do MAC. Em seu trabalho de catalogação das pinturas do museu paulista, Ana priorizou um lote de 70 telas produzidas por pintores italianos na primeira metade do século passado que foram compradas por Ciccillo Matarazzo, como o rico industrial ítalo-brasileiro era mais conhecido, logo após a Segunda Guerra Mundial. Dentro desse subconjunto de telas, cinco quadros chamaram a atenção da historiadora. Eles exibiam pinturas tanto na parte da frente como também no verso.
As obras que estavam na frente são as que Ciccillo oficialmente comprou. Sobre elas há informações nos registros do museu. As que estão na parte de trás, mesmo quando visíveis a olho nu, não têm documentação ou apresentam registros incompletos. “Nesses casos, Ciccillo comprou uma obra e acabou levando duas, a da frente e a de trás”, afirma Ana. A tela de Guidi é um caso extremo, em que há três pinturas no mesmo suporte, sendo uma invisível a olho nu. Por sinal, graças ao trabalho de catalogação da historiadora se descobriu que a figura feminina retratada no verso era a mulher do artista italiano.
Retoques revelados
Outro caso interessante é o da pintura Nu inacabado, um óleo sobre tela de 1943 de autoria do italiano Felice Casorati (1883-1963), que também compõe a Coleção Francisco Matarazzo Sobrinho. O quadro, devidamente catalogado no MAC, mostra uma mulher despida sentada numa cadeira. No verso da pintura aparece uma segunda obra, também visível a olho nu, sobre a qual não havia nenhuma informação: o retratro de um menino. Márcia Rizzutto fez imagens das duas pinturas usando diferentes métodos, como a reflectografia de infravermelho e também a fluorescência de luz ultravioleta. “Essa segunda técnica permite visualizar informações superficiais da camada pictórica e detectar sujidades, fungos, rasgos, fissuras e áreas retocadas”, explica a física da USP. Quando expostos à radiação ultravioleta, alguns materiais usados nas pinturas, como os diferentes tipos de verniz, tornam-se fluorescentes. Áreas retocadas, em que o verniz original foi removido e recoberto por outro pigmento, aparecem como manchas escuras quando vistas com essa técnica.
As imagens de ambos os lados do quadro obtidas com essas duas técnicas distintas evidenciaram que o estilo das pinturas era diferente. Casorati desenhou a cena do nu, com algum pigmento à base de carbono, antes de adicionar cor a ela. Já o autor do retrato do menino tinha um estilo mais impressionista. Não há desenho a carvão e o artista pintou fazendo pequenos borrões com a tinta. Essas informações, aliadas a uma pesquisa histórica sobre a vida de Casorati, levaram Ana a uma descoberta: a figura do menino foi pintada por Daphne Maugham Casorati (1897-1982), mulher de Casorati e mãe do garoto.
Às vezes, o casamento entre as várias técnicas de arqueometria e a análise artística das pinturas não produz resultados aparentemente tão espetaculares, como nos casos dos estudos das obras de Guidi e Casorati. Ainda assim, traços insuspeitos de uma pintura podem vir à tona quando a ciência joga luz sobre um quadro. Na tela A adivinha, do italiano Achille Funi (1890-1972), outro óleo sobre madeira da coleção de Ciccillo Matarazzo, Márcia e Ana perceberam que parte do cenário de fundo do lado direito da obra, onde havia uma parede e uma porta em arco, foi coberta por uma tinta escura. Por algum motivo, Funi mudou de ideia e ocultou essa parte do background. “Descobrimos alterações que os pintores fazem e não incorporam à obra final por meio da análise dos diversos tipos de imagem que podemos obter de um quadro”, diz Ana. Por sinal, esse quadro, embora não tenha nenhuma pintura oculta ou visível no verso, é inédito para a historiografia internacional e não consta do catálogo geral da obra de Funi na Itália.
Rotina de museu
Em grandes museus da Europa e dos Estados Unidos, como o Louvre em Paris, a National Gallery de Londres e o Metropolitan de Nova York, as análises arqueométricas já se incorporaram à rotina das instituições há décadas. Os próprios estabelecimentos contam com aparelhos e pessoal qualificado para fazer os estudos, não sendo necessário, em alguns casos, nem recorrer a parcerias com os pesquisadores de universidades. Aqui os museus começaram a se abrir para esse tipo de colaboração há poucos anos. Na Pinacoteca do Estado de São Paulo, por exemplo, toda peça que hoje entra no acervo passa obrigatoriamente por cinco exames: uma análise organoléptica (feita por um especialista em arte) e obtenção de imagens no infravermelho, ultravioleta, luz rasante (para detectar desníveis e fraturas na pintura) e luz transversa.
A maioria dos exames é feita no próprio museu. Em alguns casos, os quadros têm de ser levados até o Institudo de Física da USP, onde são realizados estudos dos pigmentos ou radiografias. “Essas análises foram incorporadas à documentação das obras”, diz Valeria de Mendonça, coordenadora do núcleo de conservação e restauro da Pinacoteca. “Elas serão úteis para eventuais restaurações no futuro e para pesquisas sobre o estilo de artistas.” Valeria calcula que cerca de 100 obras da Pinacoteca já foram alvo de exames arqueométricos pela equipe de Márcia. No momento há um grande estudo em curso, em parceria com a USP, sobre as características estilísticas e os tipos de pigmento usados pelo pintor brasileiro Oscar Pereira da Silva (1867-1939). A Pinacoteca dispõe de uma dezena de pinturas do artista, que são um bom material de análise.
Os projetos |
1. Reavaliação crítica e atualização da catalogação do acervo do MAC-USP – nº 2009/01041-7 2. Feixe externo de íons para caracterização não destrutiva de objetos arqueológicos e obras de arte do patrimônio cultural – nº 2007/08721-8 |
Modalidade |
Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa |
Coordenadoras |
1. Ana Gonçalves Magalhães – MAC-USP 2. Márcia Rizzutto – IF-USP |
Investimento |
1. R$ 18.400,00 (FAPESP) 2. US$ 38.000,00 e R$ 34.500,00 (FAPESP) |
Algumas técnicas arqueométricas permitem discriminar os pigmentos originalmente usados por um artista e diferenciar as tintas que foram posteriormente empregadas em restaurações da obra. A química Cristiane Calza, do Laboratório de Instrumentação Nuclear da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ), conta com um sistema portátil de fluorescência de raios X que tem produzido resultados interessantes quando seu feixe é apontado para telas e esculturas. Recentemente, com a ajuda do aparelho, a pesquisadora identificou 10 diferentes camadas de tinta na antiga estátua de São Sebastião da Igreja dos Capuchinhos, no Rio de Janeiro.
A camada original, que remete ao século XVI, quando a obra foi trazida de Portugal por Estácio de Sá, era composta pelo branco de chumbo misturado com um pouco de vermilion (à base de sulfeto de mercúrio). “Esse pigmento tinha o intuito de conferir um tom rosado à pele”, diz Cristiane. A composição da segunda à quinta camadas era a mesma da primeira, com maior ou menor adição de vermilion ao branco de chumbo. Na sexta e sétima camadas aparecem pigmentos que começaram a ser utilizados no século XIX: litopônio (um branco obtido com a mistura de sulfato de bário e sulfeto de zinco) e o vermelho ocre. Na oitava ressurge o branco de chumbo, agora misturado ao ocre e vermilion. Na nona há branco de zinco e ocre. Na última e atual camada, legado de um restauro realizado no século XX, foi caracterizado o emprego de branco de zinco, branco de titânio e ocre. “Com essas informações é possível pensar numa restauração da estátua que tente preservar as características originais da obra”, afirma Cristiane.
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