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Literatura

Polonesa e austríaco vencem Nobel de Literatura

Consagrados na Europa, Olga Tokarczuk e Peter Handke têm poucos livros traduzidos no Brasil

Premiados em literatura: Olga Tokarczuk e Peter Handke

Niklas Elmehed / Nobel Media

Contrariando a expectativa de que se distanciaria do histórico de premiações eurocêntricas, a Academia Sueca anunciou em 10 de outubro os ganhadores das edições de 2018 e 2019 do Nobel de Literatura: a escritora e ativista polonesa Olga Tokarczuk e o escritor e dramaturgo austríaco Peter Handke.

Olga Tokarczuk é a 15ª mulher a receber o Nobel de Literatura, em 116 edições do prêmio. Best-seller na Polônia, ela possui apenas um livro traduzido no Brasil, Vagantes (Tinta Negra, 2014). A editora Todavia, responsável por sua obra a partir de novembro, prepara o lançamento de Sobre os ossos dos mortos.

No anúncio do prêmio, o editor, tradutor e crítico Henrik Petersen, porta-voz do júri, elogiou a “paixão enciclopédica” presente nos livros da autora. Para Henryk Siewierski, coordenador da Cátedra Cyprian Norwid de Estudos Poloneses da Universidade de Brasília (UnB), a menção faz referência ao trabalho minucioso de pesquisa histórica realizado pela escritora, com vistas ao resgate de aspectos que ficaram à margem do conhecimento canônico. “Ela é uma descobridora de riquezas e diversidades culturais ainda não exploradas”, afirma o pesquisador.

Durante um encontro com a autora, na Polônia, Siewierski escutou-a dizer que é introvertida e extrovertida ao mesmo tempo. “Da mesma forma que se volta para si mesma quando escreve, afirmou que precisava do contato direto com os leitores. Ela tem muito carisma e vontade de compartilhar sua experiência com o público”, destaca, lembrando que esse é o quinto Nobel concedido a autores de língua polonesa.

De acordo com o professor da UnB, os romances de Tokarczuk apresentam personagens femininos fortes, corajosos e empáticos. Esse aspecto também se manifesta no filme Pokot, de 2017, baseado no romance de Tokarczuk, Sobre os ossos dos mortos, realizado em parceria com a cineasta Agnieszka Holland e nomeado ao Oscar. “O filme retrata a vida de uma engenheira aposentada, professora de inglês em uma escola, vegetariana, que mora em uma aldeia da Polônia, e enfrenta o mundo patriarcal e corrupto em nome do amor aos animais, alvos dos caçadores, e da solidariedade com as pessoas marginalizadas e humilhadas”, conta Siewierski. Para o pesquisador, na obra, a caça pode ser lida como uma metáfora do poder e seus mecanismos.

Piotr Kilanowski, professor do Departamento de Polonês, Alemão e Letras Clássicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), chama a atenção para elementos de “realismo mágico” ou de “misticismo esotérico” que permeiam a obra da escritora, desde suas primeiras publicações, na década de 1990. “Em seus cerca de 20 livros, Tokarczuk traz à luz uma visão pouco ortodoxa da história polonesa, diferente daquela apresentada em grande parte dos livros didáticos”, conta. Nesse sentido, tece críticas à imagem cristalizada no imaginário da sociedade, segundo a qual a Polônia sempre foi vítima de opressores externos, e denuncia que o país também cometeu agressões contra minorias, no decorrer de sua história. Em 2015, na cerimônia de recebimento do prêmio literário Nike, o mais importante da Polônia, Tokarczuk abordou essa visão. Somado às críticas que faz ao nacionalismo de extrema direita do partido que atualmente está no poder, o Lei e Justiça, o discurso rendeu-lhe ameaças de morte em redes sociais e levou sua editora a contratar um guarda-costas para protegê-la. “O ministro da Cultura polonês, Piotr Glinski, que anteriormente tinha dito que nunca conseguira terminar um livro seu, afirmou que vai revisitar seu trabalho, após conhecer o resultado do Nobel”, relata Kilanowski. Tokarczuk nasceu em 1962, na cidade de Sulechów.

Vocação provocadora
Nascido em 1942 no município de Griffen, na fronteira da Áustria com a Eslovênia, Peter Handke é formado em direito, residindo atualmente em Paris, na França. Considerado inovador na literatura de língua alemã, publicou cerca de uma centena de livros, entre contos, romances, peças teatrais e roteiros para o cinema.

Em 1966, quando integrava o chamado “Grupo 47”, do qual faziam parte autores consagrados da literatura de língua alemã como Günter Grass (1927-2015), que recebeu o Nobel em 1999, Handke apareceu em um encontro em Princeton, nos Estados Unidos, vestido como um Beatle e proferiu um discurso agressivo contra o trabalho do grupo, que considerava desgastado. “Handke é um explorador da linguagem e investe contra todas convenções. Tenta apreender o mundo sem que o pensamento atravesse essa apreensão; interessam-lhe apenas sensações, numa busca de simplicidade, autenticidade e pureza”, observa Celeste Henriques Marquês Ribeiro de Sousa, professora do Programa de Pós-graduação em Língua e Literatura Alemã da Universidade de São Paulo (USP). De acordo com ela, além da própria linguagem, a migração e a solidão também são temas recorrentes em muitas de suas obras.

“O autor se propôs a ir além não só do tradicional teatro dramático de raiz aristotélica, mas também do teatro épico de Bertolt Brecht [1898-1956]. A encenação da peça Publikumbeschimpfung [Insulto ao público], em 1966, em Frankfurt, foi um escândalo”, conta Sousa. Com esse trabalho, ele criou a chamada Sprechstück, ou peça falada, em que os gestos espontâneos de agressividade das pessoas em shows, jogos de futebol e afins são imitados pelos atores, como forma de repensar a linguagem teatral.

Durante a guerra da Iugoslávia (1991-2001), Handke posicionou-se contra o que considerou um julgamento sumário, da imprensa, da ação sérvia contra bósnios e croatas. “No seu entender de advogado, era preciso colher provas e analisá-las antes da declaração da sentença. Ele mesmo viajou ao palco dos conflitos para ver com os próprios olhos a realidade da guerra”, diz a professora da USP. De acordo com ela, Handke deu por encerrado seu posicionamento político em relação à Sérvia no enterro de Slobodan Milosevic (1941-2006), quando fez um discurso em homenagem ao dirigente sérvio, acusado pelo Tribunal Penal Internacional de Crimes contra a Humanidade. O discurso levou o município alemão de Düsseldorf a retirar-lhe o Prêmio Literário Heinrich Heine, atribuído no mesmo ano.

“É difícil avaliar esse posicionamento com precisão. Sabe-se que Handke cultivou desde cedo um comportamento polêmico na esfera pública, mas ao endossar a violência do nacionalismo sérvio durante a Guerra da Iugoslávia, ele ultrapassou o sinal vermelho. Diante da barbárie, deu-se o direito de agir como um provocador inconsequente”, avalia Tercio Redondo, professor do Departamento de Letras Modernas (DLM) da USP, lembrando que durante a infância o escritor viveu em condições de pobreza com a mãe, que era eslovena, e o padrasto alemão, de quem herdou o sobrenome. Apesar de ser um autor de reconhecimento internacional, tendo ganhado inúmeros prêmios, Redondo lembra que a crítica se divide em relação ao percurso literário e biográfico de Handke.

De acordo com o professor da USP, algumas publicações alemãs reagiram com um misto de indignação e incompreensão ao anúncio do Nobel. “Em parte essa reação traduz um reparo à sua literatura, que uma parte da crítica considera subjetivista e, em alguns casos, egocêntrica”, diz o pesquisador. Porém, na sua avaliação, o que mais incomoda os alemães envolve, justamente, o posicionamento político controverso de Handke. “Apoiar abertamente um genocida como Milosevic é postura prontamente rechaçada num país que, como a Alemanha, guarda em sua experiência histórica o trauma dos campos nazistas de extermínio.”

“Handke faz parte da chamada ‘geração melancólica’, que teve de lidar com a herança trágica do nazismo e reconstruir a sensibilidade e o projeto estético alemão a partir das ruínas do pós-guerra”, comenta Pablo Gonçalo, professor da Faculdade de Comunicação da UnB. Tendo publicado seu primeiro livro aos 22 anos, o escritor foi pioneiro no gênero da “autoficção”, situado nos limites entre a ficção e a autobiografia. Nessa linha, lançou em 1972 a novela Bem-aventurada infelicidade, sobre o suicídio da mãe, que resgata a infância na Eslovênia e a experiência na Alemanha depois da Segunda Guerra Mundial. “Handke é um dos pioneiros a utilizar o elemento de ‘personagem-autor’ na obra literária”, observa.

Gonçalo lembra ainda que o escritor desenvolveu roteiros para quatro filmes de Wim Wenders, inclusive Asas do desejo, um dos mais famosos do cineasta alemão, além de ter realizado e dirigido outros dois. O pesquisador conta que os primeiros livros de Handke chegaram ao Brasil nos anos 1980, a partir do trabalho de editoras como Brasiliense e Rocco. Atualmente, ele tem cinco obras traduzidas no país.

É a primeira vez que dois prêmios Nobel consecutivos são concedidos no mesmo dia. No ano passado, a premiação foi cancelada depois de um escândalo envolvendo o fotógrafo franco-sueco Jean-Claude Arnault, condenado por estupro. Casado com a poeta Katarina Frostenson, integrante da Academia, ela foi acusada de antecipar ao marido os nomes de vencedores, com vistas a favorecer casas de apostas. Após a polêmica, Frostenson abandonou a cadeira e a Academia decidiu incluir cinco novos integrantes para participar do processo de escolha dos vencedores, que recebem 9 milhões de coroas suecas, o equivalente a cerca de US$ 1,1 milhão. São europeus 83 dos 166 autores já agraciados com o Nobel de Literatura – com 14 ganhadores, a França é o país com o maior número de contemplados. José Saramago (1922-2010) é o único autor de língua portuguesa premiado até hoje.

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