de Curitiba
Poucas pessoas discordam do princípio de que deve haver alguma regulamentação internacional disciplinando o acesso e a repartição dos ganhos advindos da exploração comercial dos recursos genéticos de uma nação ou da apropriação do conhecimento dos povos indígenas sobre a biodiversidade. Embora pareça razoável, a idéia, quando debatida em seus pormenores, gera pontos de atrito. Foi o que ocorreu no final do mês passado em Curitiba, durante a 8ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (COP 8), fórum patrocinado pela Organização das Nações Unidas (ONU) para discutir a redação dos textos que visam criar uma política de proteção ambiental comum aos quase 190 países signatários do acordo.
O Brasil figura entre as nações que assinaram a convenção e, por deter de 15% a 20% de toda a biodiversidade do planeta, teme ser vítima preferencial da biopirataria internacional. Por isso, o governo federal é favorável à implantação de leis globais capazes de resguardar os direitos sobre seu patrimônio biológico. Apesar de louvável, essa postura, se levada a extremos, pode criar, segundo alguns cientistas, empecilhos ao estabelecimento de colaborações internacionais com projetos que estão criando grandes sistemas de informação, de acesso universal e gratuito, sobre as formas de vida da Terra.
Na visão desses pesquisadores, interligar os bancos de dados nacionais – como o speciesLink, que disponibiliza eletronicamente o acesso a 40 coleções biológicas de instituições do estado de São Paulo – a iniciativas globais não traria riscos ou prejuízos ao país. “Esse tipo de parceria é fundamental para a própria conservação ambiental e para os taxonomistas (especialistas na classificação de organismos)”, diz Vanderlei Perez Canhos, coordenador do Centro de Referência de Informação Ambiental (Cria), de Campinas, que desenvolveu o speciesLink e o banco de dados da versão eletrônica, lançada durante a COP 8, da Flora brasiliensis, livro de referência sobre a biodiversidade nacional produzido pelo botânico alemão Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868). “Ao optarmos por participar desses projetos internacionais, poderíamos restringir o acesso a informações que consideramos sensíveis, como a localização geográfica de espécies ameaçadas de extinção ou dados sobre organismos de importância econômica.”
As parcerias também acelerariam a repatriação do conhecimento sobre espécies brasileiras que foram retiradas do território nacional e hoje enriquecem as prateleiras de instituições do exterior. Embora abrigue um quinto da biodiversidade da Terra, o Brasil tem apenas 1% do material depositado nas coleções biológicas do mundo.
Uma das iniciativas internacionais que despertam a atenção dos cientistas brasileiros é o Species 2000. Por sinal, o projeto aproveitou o evento na capital paranaense para anunciar um feito: seu sistema eletrônico acaba de catalogar o nome científico (e algumas informações taxonômicas) de 880 mil espécies de animais, plantas, fungos e micróbios, metade do número total de espécies identificadas até agora pela ciência. “Fizemos a primeira parte do trabalho”, afirma Frank Bisby, da Universidade de Reading, Inglaterra, coordenador do Species 2000. Hoje cerca de 3 mil taxonomistas das mais diversas áreas participam da iniciativa, que congrega 37 bancos de dados. Há brasileiros envolvidos no projeto, mas não existe uma participação institucional do país nem de bancos de dados nacionais.
A situação se repete no que diz respeito ao Global Biodiversity Information Facility (GBIF), um projeto ainda maior. No GBIF, além de informação taxonômica, o sistema integra dados das coleções biológicas de museus internacionais e registros de observações feitas em campo. “Temos carência de informações sobre alguns grupos de animais”, afirma Jim Edwards, secretário executivo do GBIF, que contém cerca de 100 milhões de dados sobre espécies do planeta. “A entrada do Brasil no projeto nos ajudaria em certas áreas críticas.” Apoiada por 47 países e 32 entidades internacionais, a iniciativa digital é alimentada por 169 provedores de informação e 686 bancos de dados.
O Species 2000 e o GBIF não são os donos das informações que disseminam. O controle do que pode ou não aparecer é de cada provedor dos bancos de dados integrados aos projetos. Segundo Ione Egler, coordenadora-geral de Políticas e Programas de Pesquisa em Biodiversidade do Ministério da Ciência e Tecnologia, até quatro anos atrás a comunidade científica brasileira estava dividida sobre a conveniência de firmar parcerias com esse tipo de empreitada internacional. “Mas a idéia amadureceu e agora as sociedades científicas querem participar do GBIF”, afirma Ione, que toca um programa de digitalização das coleções de instituições de pesquisa nacional.
No entanto, ainda há obstáculos a serem vencidos. O Ministério das Relações Exteriores, que chefia a delegação brasileira encarregada de negociar os pontos da Convenção sobre Diversidade Biológica, pensa de maneira distinta dos cientistas. “Não há por que disponibilizarmos dados sobre as espécies brasileiras”, afirma Luiz Alberto Figueiredo Machado, chefe do Departamento de Meio Ambiente e Temas Especiais do Itamaraty. Bráulio Ferreira de Souza Dias, gerente de conservação de biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, tem uma posição mais moderada. Ele admite que há resistência à entrada do Brasil em inventários internacionais sobre a biodiversidade, mas diz que não há como impedir essa decisão.
Um ponto que o preocupa é a difusão no exterior do chamado conhecimento tradicional dos indígenas, sobretudo via textos científicos. “Ainda não há um marco legal sobre essa questão”, afirma Bráulio. “Por isso é preciso que haja ética na relação dos cientistas com os indígenas.” No GBIF, no entanto, os provedores de informação são instruÃdos a não divulgar informações oriundas das práticas dos povos da floresta.
Rotulagem de transgênicos
Também em Curitiba, uma semana antes da COP 8, houve a 3ª Reunião das Partes do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, a MOP 3. A principal decisão do encontro regulou a questão da rotulagem dos organismos vivos modificados (OVMs), os populares transgênicos, destinados à exportação. Ficou acordado que os países poderão usar nas cargas agrícolas voltadas para o mercado externo a expressão “pode conter OVMs” até 2012. Ou seja, as nações têm um prazo de seis anos para separar os produtos transgênicos dos que não são modificados e só então terão de adotar a expressão “contêm OVMs” para grãos e sementes geneticamente alterados.